terça-feira, 31 de março de 2015

Pepe Escobar no Donbass: Uivo em Donetsk

30/3/2015, [*] Pepe EscobarAsia Times Online
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu


Soldados da RPD escoltam prisioneiros de guerra do exército da Ucrânia pelo centro de Donetsk (24/8/2014)
Estou chegando da República Popular em luta de Donetsk. Volto, pois, à esplêndida arrogância e insolência do OTANstão.

Muita gente – no Donbass, em Moscou e agora na Europa – quis saber o que mais me abalou em toda a visita.

Poderia começar parafraseando Allen Ginsberg em Uivo – “Vi as melhores cabeças da minha geração destruídas pela loucura”.

Mas eram os anos da Guerra Fria, meados dos anos 1950s. Agora estamos na Guerra Fria 2.0 do início do século XXI.

Assim sendo, o que vi foram os horrendos efeitos colaterais das piores cabeças da minha geração – e de mais uma geração subsequente – corroídas pela loucura (da guerra).

Vi refugiados no lado russo da fronteira, a maioria famílias da nossa classe média europeia, cujos filhos, quando entraram pela primeira vez no abrigo antibombas, corriam para baixo das mesas, quando ouviam barulho de avião no céu.

Vi o Dylan de Donetsk encolhido em seu quarto numa antiga moradia de veteranos convertida em abrigo para refugiados, que, para enfrentar a tristeza e a desesperança, canta cantos de amor e heroísmo.

O Dylan de Donetsk
Vi famílias inteiras amontoadas em abrigos antibombas completamente decorados da era soviética, assustados demais para sair à rua durante o dia, traumatizados pelos bombardeios orquestrados pelas “operações antiterroristas” de Kiev.

Abrigo antibombas ainda da era soviética
Vi uma cidade moderna, industrial, de muito trabalho esvaziada pela metade, no mínimo, e parcialmente destruída, mas nem por isso curvada, ainda capaz de sobreviver das próprias entranhas e do próprio talento, com pequena ajuda dos comboios humanitários russos.

Vi belas moças conversando ao pé da estátua de Lênin numa praça central, lamentando que só tivessem, para ir, festinhas familiares nas casas umas das outras, porque a vida noturna morreu e “estamos em guerra”.

Moças de Donetsk junto à estátua de Lênin
Vi praticamente todo o bairro de Oktyabrski próximo ao aeroporto bombardeado como Grozny e praticamente deserto, exceto por algumas poucas babushkas solitárias e sem ter para onde ir, orgulhosas demais para abandonar as fotos de família de heróis da IIª Guerra Mundial.

Bairro de Oktyabrski bombardeado até virar ruína
Vi postos policiais de controle, como se estivesse em Bagdá na “avançada” de Petraeus.

Vi o principal médico traumatologista no principal hospital de Donetsk confirmar que não houve nenhuma ajuda da Cruz Vermelha nem qualquer ajuda humanitária internacional para o povo de Donetsk.

Hospital de Oktyabrski (ao fundo) bombardeado
Vi Stanislava, das melhores e mais experientes atiradoras de precisão da República Popular de Donetsk, encarregada de nossa segurança, chorar ao depor uma flor no local de batalha feroz, na qual o grupo dela esteve sob fogo pesado, 20 soldados gravemente feridos e um morto, e ela foi ferida por estilhaços, mas sobreviveu.

Vi igrejas ortodoxas completamente destruídas pelas bombas de Kiev.

Vi a bandeira russa ainda no topo de um prédio anti-Maidan, que é agora a Casa do Governo da República Popular de Donetsk (RPD).

Vi a fulgurante arena do Donbass, casa do time Shaktar Donetsk e como OVNI numa cidade em ruínas, vazia, sem vivalma nas arquibancadas.

Vi a estação de trens de Donetsk, bombardeada pelos bandidos de Kiev.

Vi um mendigo sem-teto gritando “Robert Plant!” e “Jimmy Page!” e quando descobri que ele continuava apaixonado por Led Zeppelin e guardava os vinis.

Vi uma pilha de livros jamais derrotados ou rendidos por trás do vidro quebrado de janelas bombardeadas em Oktyabrski.

Vi os túmulos recentes onde a República Popular de Donetsk enterra os heróis de sua resistência.

Vi o topo da colina em Saur-mogila que a resistência da RPD perdeu e depois reconquistou, e aquela solitária bandeira vermelha-branca-azul que lá tremula ao vento.

Alto da colina em Saur-mogila
Vi o Super-homem erguendo-se da destruição em Saur-mogila – a estátua tombada num monumento aos heróis da IIª Guerra Mundial, que 70 anos atrás combatia o fascismo e agora foi ferido, mas não destruído, por fascistas.

Estátua do super-homem erguendo-se da destruição, em Saur-mogila
Vi o caldeirão de Debaltsevo ao longe, e pude ver, na geografia, como as táticas da RPD cercaram e esmagaram os desmoralizados combatentes de Kiev.

Vi os militares da RPD em manobras ao lado da estrada, de Donetsk a Lugansk.

Vi o Ministro de Relações Exteriores da RPD, esperançoso de que haja solução política, em vez de guerra, e admitindo que ele, pessoalmente, sonha com uma RPD como nação independente.

Vi dois comandantes cossacos casca grossíssima, que me disseram, numa fazenda de criação de cavalos na terra santa dos cossacos, que a verdadeira guerra ainda nem começou.

Não pude ver o aeroporto de Donetsk totalmente destruído, porque os militares da RPD estavam muito preocupados com nossa segurança e não concordaram com nos dar autorização para aquela área, porque o aeroporto ainda está sendo bombardeado – como desafio contra Minsk-2; mas vi a destruição e a pilha de cadáveres de soldados do exército ucraniano no telefone celular de um combatente sérvio da resistência na RPD.

Não vi – nem os observadores internacionais da Organização para Segurança e Cooperação na Europa tampouco viram – as colunas e mais colunas de tanques e soldados russos que o “Dr. Fantástico” atualmente de plantão na OTAN, o general Breedlove, digo, Breed-ódio, vê todos os dias em seus sonhos alucinados de “Rússia-invadiu-Ucrânia”, que se repetem sem parar.

E não vi a arrogância, a ignorância, a pouca-vergonha e as mentiras que distorcem todas as caras manicuradas em Kiev, Washington e Bruxelas, que só fazem repetir, e repetir, e repetir, que toda a população do Donbass, babushkas e crianças traumatizadas incluídas, não passariam de “terroristas”.

Afinal, são a “civilização” ocidental – covardes bem equipados que não se atrevem nem a mostrar as suas caras sujas, ao povo do Donbass. Esse então é o meu presente para eles.

Um uivo de raiva e meu ilimitado desprezo.
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[*] Pepe Escobar (1954) é jornalista, brasileiro, vive em São Paulo, Hong Kong e Paris, mas publica exclusivamente em inglês. Mantém coluna (The Roving Eye) no Asia Times Online; é também analista de política de blogs e sites como: SputinikTom Dispatch, Information Clearing HouseRed Voltaire e outros; é correspondente/ articulista das redes Russia TodayThe Real News Network Televison e Al-Jazeera. Seus artigos podem ser lidos, traduzidos para o português pelo Coletivo de Tradutores da Vila Vudu e João Aroldo, no blog redecastorphoto
Livros:
− Obama Does Globalistan, Nimble Books, 2009.
− Adquira seu novo livro, Empire of Chaos, publicado no final de 2014 pela Nimble Books.

segunda-feira, 30 de março de 2015

A estrutura do caos

30/3/2015
[*] Adriano Benayon
Texto enviado pelo autor



1. A taxa de juros SELIC, a taxa base para títulos do Tesouro Nacional já estava demasiado alta em 11.25 pontos percentuais em novembro de 2014. Após sucessivas elevações, o COPOM (Conselho de Política Monetária), “orientado” pelo BANCO CENTRAL a elevou para 12.75 pontos percentuais.

2. A taxa efetiva, basicamente determinada pelo cartel de bancos credenciados comodealers desses títulos oficiais, fica, em média, três pontos acima da taxa básica (hoje quase 16% aa.), ou ainda mais em períodos turbulentos.

3. Tais juros - sem paralelo em países não submetidos ao império financeiro, controlado pela oligarquia angloamericana – causam intensa hemorragia nas finanças públicas, um de cujos efeitos é elevar a conta dos juros a cada ano e fazer crescer incontrolavelmente o estoque da dívida.

4. Isso se dá em função da capitalização dos juros através da emissão de novos títulos para liquidar os que vão vencendo, pois as receitas tributárias (das quais vem o superávit primário) são, de longe, insuficientes.

5. Para uma ideia do estrago desencadeado por poucos pontos percentuais na taxa, basta fazer simulações com a composição anual dos juros.

6. Os juros incorporados ao principal - supondo que não se liquidassem juros e amortizações, em dinheiro, durante 30 anos - fariam ascender os 3 trilhões de reais, no momento, da dívida interna), para os seguintes montantes:

  1. 12% aa. = R$ 89,9 trilhões, (multiplicaria a dívida por 30);
  2. 15% aa. = R$ 198,6 trilhões, (a multiplicaria por 66);
  3. 18 % aa. = R$ 430,1 trilhões (a multiplicaria por 144).

Juros da Dívida Pública
7. Portanto, a cada três pontos percentuais de aumento, o multiplicador mais que dobraria. Do jeito que vai a presente taxa efetiva (18% aa.), a dívida atingiria quantia equivalente a US$ 143 trilhões, ou seja, quantia igual a duas vezes a soma dos PIBs de todos os países do mundo.

8. Tenho explicado que os formadores de opinião, montados no monopólio da comunicação social – cujo negócio é desinformar – fazem a maior parte do público comprar a ideia de que as elevações das taxas de juros seriam necessárias para conter a inflação dos preços.

9. As artes da desinformação incluem fazer acreditar numa entidade misteriosa chamada “mercado”, a que se atribui exigir os injustificáveis juros estratosféricos. Então, aos olhos do público esses juros deixam de ser o instrumento do saqueio cometido pelo cartel dos bancos e são imputados ao abstrato “mercado” e a supostas leis econômicas, igualmente abstratas.

10. A armação a serviço dos concentradores financeiros desvia a  discussão do terreno dos fatos para o das teorias econômicas e para o das doutrinas político-filosóficas.

11. A questão não é doutrinária: não são neoliberais nem necessariamente partidários da direita os defensores e aproveitadores da política de juros altos, tal como os da política de  subsidiar trilionariamente os cartéis transnacionais.

12. Trata-se simplesmente de arrancar do Brasil quantias e recursos naturais incalculáveis. É pirataria, assalto, extorsão, reminiscente das proezas imperiais do século XIX, como as guerras do ópio, que o império britânico desencadeou contra a China, de1839 a 1842 e de 1856 a 1860.

Primeira Guerra do Ópio
13. O objetivo inicial dessas guerras foi deixar de pagar em ouro (mesmo dispondo a Inglaterra abundantemente do metal proveniente do Brasil e alhures) as importações das manufaturas produzidas na China, bem como apropriar-se das indústrias e roubar-lhe as técnicas de produção, tal como já havia feito na Índia.

14. Falando nesta, para produzir o ópio destinado à China, era só explorar os trabalhadores e a terra da Índia, saqueada de 1757 a 1863, em recursos equivalentes ao dobro dos investimentos feitos na Inglaterra, inclusive em imóveis.  

15. A Grã-Bretanha havia transformado o grosso de suas importações da Índia em pilhagem escancarada, deixando de pagar o que quer que fosse por elas. Vide André G. FRANK, Acumulação Mundial 1492-1789. Rio de Janeiro, 1977, pp. 178 et segs.

16. Ao contrário do que se imagina, a Índia não era pobre e só no Século XIX é que afundou na miséria extrema, com milhões com fome, dormindo na rua em Calcultá. Os incautos admiradores brasileiros do império angloamericano não percebem que, no curso atual, é para algo assim que o País se encaminha.

17. Os juros abusivos nos títulos públicos - e mais ainda no crédito a empresas e a pessoas físicas - bem como os espantosos subsídios às aplicações financeiras e às empresas transnacionais - são apenas alguns dos mecanismos montados para tornar falido o Brasil e acelerar sua dilaceração sob as bicadas de vorazes abutres financeiros.

18. Informa-se agora sobre propinas na Receita Federal de empresas transnacionais, e bancos estrangeiros e locais, para deixar de pagar impostos devidos. O mais notável é que esses bancos e empresas são extremamente favorecidos pela legislação: para saquear, nem precisam sonegar nem inadimplir impostos, mas o fazem para aumentar o butim.


19. As transnacionais são, ademais, cumuladas de inacreditáveis favores fiscais e subsídios, tendo elas praticamente assumido o poder desde o governo militar-udenista que derrubou Vargas em 1954.

20. Daí – não obstante a quantidade colossal das exportações agrícolas e minerais  continua crescendo até hoje,  agora em ritmo acima de mais de US$ 90 bilhões/ano, o déficit de transações correntes com o exterior, por causa das transferências ao exterior dos imensos lucros das transnacionais, sob as mais diversas formas contábeis.

21. Mesmo alguns governos militares que tinham a meta de ampliar o poder nacional através de estatais, especialmente em áreas estratégicas, viram-se frustrados pela armadilha da dívida externa, ficando reféns do “sistema financeiro internacional” a comandar a área financeira do governo.

22. Esse sistema engendrou a Nova República e, mediante a mesma chantagem da dívida, desnacionalizou mais segmentos da economia, inclusive estatais, ficando as eleições dependentes do poder financeiro concentrado e da grande mídia, sempre a serviço do império.

23. A corrupção é, pois, sistêmica, e os desmandos na Petrobrás são uma de suas menos expressivas manifestações. Mas servem aos agentes do império e a seu cartel do petróleo para apossar-se de uma das maiores reservas, do mundo, dessa altamente estratégica fonte de energia.
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[*] Adriano Benayon: Consultor em finanças e em biomassa. Doutor em Economia, pela Universidade de Hamburgo, Bacharel em Direito, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ. Diplomado no Curso de Altos Estudos do Instituto Rio Branco, Itamaraty. Diplomata de carreira, postos na Holanda, Paraguai, Bulgária, Alemanha, Estados Unidos e México. Delegado do Brasil em reuniões multilaterais nas áreas econômica e tecnológica. Consultor Legislativo da Câmara dos Deputados e do Senado Federal na área de economia. Professor da Universidade de Brasília (Empresas Multinacionais; Sistema Financeiro Internacional; Estado e Desenvolvimento no Brasil). Autor de Globalização versus Desenvolvimento, 2ª ed. Editora Escrituras, São Paulo.
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Outros artigos do professor Benayon, além dos listados abaixo, podem ser encontrados no blog redecastorphoto via buscador localizado à esquerda das postagens.

·  24/11/2014, redecastorphoto em: Golpe, Modelo e Dívida
·  12/11/2013, redecastorphoto em: O estratégico nióbio
·  7/5/2013, redecastorphoto em: A crescente desnacionalização da indústria no Brasil
·  10/11/2014, redecastorphoto em: País dividido?
·  1/9/2014, redecastorphoto em: Brasil. Como sobreviver?
·  20/10/2014, redecastorphoto em: Posso saber em quem votei?
·  3/6/2014, redecastorphoto em: Para sobreviver, sair do dólar
·  30/1/2014, redecastorphoto em: É a estrutura, enroladores!
·  11/3/2014, redecastorphoto em: UCRÂNIA E Brasil
·  22/2/2014, redecastorphoto em: A oligarquia internacional deseja a depressão e o caos político
·  1/12/2011, redecastorphoto em: A crise acaba com o capitalismo?
·  12/9/2012, redecastorphoto em: Três aniversários
·  18/7/2012, redecastorphoto em: Por que o Brasil se atrasa
·  3/4/2012, redecastorphoto em: O cartório dos bancos
·  20/8/2013, redecastorphoto em: Desgoverno mundial totalitário
·  15/10/2012, redecastorphoto em: Sair da “crise”
·  8/10/2013, redecastorphoto em: A realidade é outra
·  25/7/2013, redecastorphoto em: Soberania e sobrevivência
·  26/3/2013, redecastorphoto em: O modelo dependente é incurável
·  5/2/2013, redecastorphoto em: Finança mundial
·  28/8/2013, redecastorphoto em: Mais uma crise
·  15/12/2013, redecastorphoto em: As raízes e as fontes da DÍVIDA PÚBLICA BRASILEIRA


Geopolítica da guerra dos EUA no Iêmen (I)

30/3/2015, [*] Mahdi Darius NazemroayaStrategic Culture
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu



Os EUA e o reino da Arábia Saudita ficaram muito ansiosos quando o movimento iemenita dos houthis, ou Ansarallah (ar. “pilares de Deus”) conquistou o controle sobre a capital do Iêmen, Sanaa/Sana, em setembro de 2014. O presidente do Iêmen Abdrabbuh Manour Al-Hadi, apoiado pelos EUA, foi humilhantemente forçado a dividir o poder com os houthis e a coalizão de tribos do norte do Iêmen que haviam ajudado os houthis a tomar Sana. Al-Hadi declarou que haveria negociações para a formação de um governo de unidade nacional do Iêmen, e seus aliados – EUA e Arábia Saudita tentaram usar um novo diálogo nacional e mediaram conversações, no esforço para cooptar e pacificar os houthis.

A verdade foi virada de pernas para o ar, em tudo que tenha a ver com a guerra no Iêmen. A guerra e a derrubada do presidente Abdrabbuh Manour Al-Hadi no Iêmen não são efeito de algum “golpe houthi” que tivesse acontecido no Iêmen. É o contrário disso: Al-Hadi foi derrubado porque ele tentou um golpe, apoiado por sauditas e EUA, para escapar das regras de partilha do poder que o presidente havia assinado; e para devolver o Iêmen à regra autoritária de antes. A derrubada do presidente Al-Hadi pelos houthis e seus aliados políticos foi reação não prevista à tentativa de golpe, para voltar ao poder autoritário de antes, empreendida por Al-Hadi com apoio e planejamento de Washington e da Casa de Saud.

Os houthis e seus aliados representam como uma “fatia” exemplar da diversificada sociedade iemenita e da maioria dos iemenitas. A aliança doméstica dos houthis contra o presidente Al-Hadi inclui muçulmanos xiitas e também muçulmanos sunitas. Os EUA e a Casa de Saud jamais supuseram que os houthis insistiriam em fazer valer os acordos firmados com o governo, a ponto de derrubar o presidente que se recusava a honrar aqueles acordos, mas a verdade é que essa reação estava em preparação há uma década.

Iêmen e a região conflituada
Com a Casa de Saud, Al-Hadi, já desde antes de tornar-se presidente, envolveu-se na perseguição aos houthis e na manipulação da política tribal no Iêmen. Quando se tornou presidente, fincou os pés e pôs-se a trabalhar contra a implementação de tudo que fora fixado consensualmente nas negociações do Diálogo Nacional do Iêmen, realizado depois que Ali Abdullah Saleh foi obrigado a deixar o poder em 2011.

Golpe ou contragolpe: o que realmente aconteceu no Iêmen?

Primeiro, quando tomaram a capital Sana no final de 2014, os houthis rejeitaram as propostas de Al-Hadi e suas novas ofertas para um acordo formal de partilha do poder, acusando Al-Hadi de ser homem sem moral que estava, de fato, renegando tudo que se comprometera a fazer quando assinara os acordos de partilha do poder. Naquele momento, a atitude submissa e subalterna do presidente Al-Hadi frente a Washington e à Casa de Saud já o havia tornado terrivelmente impopular no Iêmen, detestado pela maioria da população. Dois meses depois, dia 8/11/2014, o próprio partido do presidente Al-Hadi (Congresso Geral Iemenita do Povo), também já o destituíra do posto de líder do partido.

Os houthis chegaram a prender o presidente Al-Hadi e, dia 20/1/2015, tomaram o palácio presidencial e outros prédios do governo. Com apoio popular, cerca de duas semanas adiante, dia 6/2/2015, os houthis constituíram formalmente um governo iemenita de transição. Al-Hadi foi obrigado a renunciar. Dia 26/2/2015, em declaração oficial, os houthis denunciaram que os EUA e a Arábia Saudita preparavam-se para atacar e devastar o Iêmen.

A deposição de Al-Hadi foi duro golpe contra a política exterior dos EUA. A tal ponto que resultou em operação militar de emergência da CIA e do Pentágono, forçados a retirar do Iêmen, às pressas, todo o seu pessoal militar e de inteligência.

Destruição em bairro residencial em Sanaa
pela Força Aérea Saudita (26/3/2015)
Los Angeles Times noticiou dia 25/3/2015, citando funcionários dos EUA, que os houthis haviam confiscado grande quantidade de documentos secretos quando tomaram o prédio do Gabinete de Segurança Nacional do Iêmen, que trabalhava em íntima coordenação com a CIA, documentos que comprometiam as operações de Washington no Iêmen.

Al-Hadi fugiu da capital Sana para Aden, dia 21/2/2015 e dia 7/3/2015 declarou Aden capital do Iêmen. EUA, França, Turquia e seus mais íntimos aliados europeus fecharam suas embaixadas. Pouco depois, em movimento que provavelmente foi coordenado com os EUA, a Arábia Saudita, o Kuwait, o  Bahrain, o Qatar e os Emirados Árabes Unidos reabriram as respectivas embaixadas, já em Aden. Al-Hadi cancelou sua carta de renúncia à presidência e declarou que estava formando um novo governo no exílio.

Os houthis e respectivos aliados políticos recusaram-se a conceder as exigências de EUA e Arábia Saudita, que estavam sendo articuladas através de Al-Hadi em Aden, com a participação de uma Riad cada dia mais histérica. Resultado, o Ministro do Exterior de Al-Hadi, Riyadh Yaseen, pediu que Arábia Saudita e os petro-emirados árabes interviessem militarmente para impedir que os houthis alcançassem, dia 23/3/2015, o controle sobre o espaço aéreo do Iêmen. Yaseen disse ao jornal Al-Sharg Al-Awsa, porta-voz dos sauditas, que era absolutamente necessária uma campanha de bombardeios e que tinha de ser imposta sobre o Iêmen uma zona aérea de exclusão.

Os houthis perceberam que começaria a guerra e que seriam atacados – e esse é o motivo pelo qual os houthis e seus aliados no exército do Iêmen correram a ocupar a maior quantidade possível de campos de pouso e bases aéreas do país, o mais rapidamente que puderam, como, dentre outras, Al-Anad. Para neutralizar Al-Hadi, dia 25/3/2015 os houthis invadiram Aden.

Abdrabbuh Mansour Al-Hadi
Quando os houthis e aliados entraram em Aden, Al-Hadi já fugira para um porto iemenita. E só ressurgiria para o mundo já na Arábia Saudita, quando a Casa de Saud começou a bombardear o Iêmen, dia 26/3/2015. Da Arábia Saudita, Abdrabbuh Mansour Al-Hadi voaria até o Egito para uma reunião da Liga Árabe, convocada para legitimar a guerra contra o Iêmen.

Iêmen e a mutável equação estratégica no Oriente Médio

A tomada de Sana pelos houthis aconteceu no mesmo cronograma que uma série de outros eventos, todos de vitórias regionais para o Irã, o Hezbollah, a Síria e o Bloco da Resistência e esses e outros atores locais formam coletivamente. Na Síria, o governo sírio conseguiu firmar-se em suas posições, enquanto no Iraque o movimento ISIL/ISIS/Daesh estava sendo forçado a retroceder pelo Iraque, com uma muito visível ajuda do Irã e de milícias iraquianas aliadas de Teerã.

A equação estratégica no Oriente Médio começou a mudar, quando se tornou claro que o Irã ia-se convertendo em item central da arquitetura de segurança e da estabilidade na região.

A Casa de Saud e o Primeiro-Ministro israelense, Benjamin Netanyahu, puseram-se a gemer e a reclamar que o Irã já controlava quatro capitais regionais – Beirute, Damasco, Bagdá e Sana – e que algo teria de ser feito para conter a expansão iraniana. Resultado da nova equação estratégica, os israelenses e a Casa de Saud tornaram-se perfeitamente alinhadas, em termos estratégicos, com o objetivo de neutralizar o Irã e seus aliados regionais. “Quando israelenses e árabes estão na mesma página, todos devem prestar atenção” – disse à Fox News o embaixador israelense Ron Dermer, dia 5/3/2015, comentando o alinhamento Israel-Arábia Saudita.

A construção frenética de medo promovida por israelenses e sauditas não deu certo. Segundo pesquisa do instituto Gallup, apenas 9% dos cidadãos norte-americanos consideravam o Irã como o pior inimigo dos EUA, no momento em que Netanyahu chegou a Washington para falar contra qualquer acordo entre EUA e Irã.

Objetivos geoestratégicos de EUA e sauditas, por trás da guerra no Iêmen

Embora, por seu lado, a Casa de Saudi sempre tenha considerado o Iêmen como província subordinada e parte da esfera de influência de Riad, os EUA querem assegurar o controle sobre o estreito de Bab Al-Mandeb, o Golfo de Aden e as ilhas Socotra. Bab Al-Mandeb é importante ponto estratégico para o comércio marítimo internacional e embarques de energia, que conecta o Golfo Pérsico, pelo Oceano Índico, com o Mar Mediterrâneo via o Mar Vermelho. É tão importante quanto o Canal de Suez para as rotas marítimas comerciais entre África, Ásia e Europa.

mapa: Oriente Médio-mapa-estreitos estratégicos


Israel também se envolveu, porque com o Iêmen controlado por houthis, Israel perde o acesso ao Oceano Índico via o Mar Vermelho e deixa de poder mandar seus submarinos para o Golfo Pérsico para ameaçar o Irã. Essa é a razão pela qual o controle sobre o Iêmen foi um dos pontos sobre os quais Netanyahu discursou no Capitólio quando falou ao Congresso dos EUA sobre o Irã, dia 3/3/2015, no que o próprio New York Times, logo quem, chamou de “o discurso nada convincente de Mr. Netanyahu ao Congresso”.

A Arábia Saudita visivelmente temia que o Iêmen viesse a alinhar-se formalmente ao lado do Irã, e que isso, naquela área, viesse a resultar em novas rebeliões contra a Casa de Saud na Península Arábica. Os EUA também visivelmente temem que isso aconteça, mas pensavam, mais, em termos de rivalidades globais. Impedir que Irã, Rússia ou China consigam firmar algum pé estratégico no Iêmen, como meio de impedir que outras potências venham a poder controlar o Golfo de Aden e se posicionem no estreito de Bab Al-Mandeb era uma das maiores preocupações dos EUA.

Além da importância geopolítica do Iêmen na supervisão de corredores marítimos altamente estratégicos, há também seu arsenal de mísseis militares. Mísseis do Iêmen podem alcançar qualquer navio no Golfo de Aden ou no estreito de Bab Al-Mandeb. Quanto a isso, o ataque saudita contra os depósitos de mísseis estratégicos do Iêmen interessam muito aos EUA e a Israel. O objetivo não é só impedir que os mísseis sejam usados para retaliar contra forças avançadas do exército saudita, mas, também, impedir que os mísseis estejam disponíveis para algum eventual governo iemenita que se alie ao Irã, à Rússia ou à China.

Protesto no Iêmen (25/3/2015)
Numa posição pública que contradiz totalmente a política de Riad para a Síria, os sauditas ameaçaram usar força militar se os houthis e seus aliados políticos não aceitassem negociar com Al-Hadi. Resultados de mais essas ameaças dos sauditas, dia 25/3/2015 irromperam protestos de rua por todo o Iêmen contra a Casa de Saud. E assim as engrenagens foram postas em marcha para mais uma guerra no Oriente Médio, quando EUA, Arábia Saudita, Bahrain, Emirados Árabes Unidos, Qatar e Kuwait começaram a preparar-se para reinstalar Al-Hadi no governo.

Os sauditas vão à guerra no Iêmen e Novo Front contra o Irã

Por mais que se fale da Arábia Saudita como potência regional, não é potência suficiente para confrontar, sozinha, o Irã. A estratégia da Casa de Saud tem sido formar ou reforçar um sistema de aliança regional para qualquer confronto contra o Irã e o Bloco da Resistência. Para isso, a Arábia Saudita precisa de Egito, Turquia e Paquistão – mal identificados pelo nome de aliança ou eixo “sunita” – para ajudá-la a enfrentar o Irã e seus aliados regionais.

Dia 17/3/2015, o príncipe coroado Mohammed bin Zayed bin Sultan Al Nahyan, o príncipe coroado do Emirado de Abu Dhabi e o Vice-Comandante Supremo do exército dos Emirados Árabes Unidos visitou o Marrocos, para falar sobre alguma resposta militar coletiva contra o Iêmen, dos petro-emirados, Marrocos, Jordânia e Egito. Dia 21/3/2015, Mohammed bin Zayed reuniu-se com o rei saudita Salman Salman bin Abdulaziz Al-Saud, para discutir também uma resposta militar ao Iêmen. Tudo isso enquanto Al-Hadi conclamava a Arábia Saudita e o Conselho de Cooperação do Golfo (CCG) para que o ajudasse com uma intervenção militar no Iêmen. Depois das reuniões, houve conversas sobre um novo pacto regional de segurança para os petro-emirados árabes.

Dentre os cinco membros do CCG, o Sultanato de Omã manteve-se à parte. Omã recusou-se a participar da guerra contra o Iêmen. Muscat tem relações amistosas com Teerã. Além disso, os omanitas desconfiam do projeto saudita e do CCG de usarem sectarismos para incendiar um confronto com o Irã e seus aliados. A maioria dos omanitas não são nem muçulmanos sunitas nem muçulmanos xiitas; são muçulmanos Ibadi e temem o incêndio que os EUA, a Casa de Saud e os outros emirados árabes estão tentando soprar sobre toda a região.

Países do CCG - Conselho de Cooperação do Golfo
Os propagandistas sauditas trabalharam muitas horas extras para disseminar a ideia, falsa, de que a guerra seria uma resposta às tropas que o Irã estaria deslocando para as fronteiras da Arábia Saudita. A Turquia anunciaria, em seguida, apoio à guerra no Iêmen. No dia em que a guerra começou, Erdogan na Turquia disse que o Irã estaria tentando dominar toda a região, e que Turquia, Arábia Saudita e o CCG estavam gravemente incomodados.

Durante esses eventos, Sisi do Egito declarou que a segurança do Cairo, da Arábia Saudita e dos petro-emirados é una e indivisível. Na verdade, dia 25/3/2015, o Egito declarou que não se envolveria em guerra no Iêmen, mas, no dia seguinte, Cairo uniu-se à Arábia Saudita no ataque de Riad contra o Iêmen (o Egito enviou jatos e navios para o Iêmen).

Nessa mesma linha, o Primeiro-Ministro do Paquistão, Nawaz Sharif, distribuiu declarações, dia 26/3/2015, segundo as quais qualquer ameaça à Arábia Saudita geraria “resposta forte” do Paquistão. A mensagem tacitamente estava dirigida ao Irã.

Papéis de EUA e Israel na guerra no Iêmen

Dia 27/3/2015, foi anunciado no Iêmen que Israel estava ajudando a Arábia Saudita no ataque ao país árabe. “É a primeira vez que os sionistas unem-se em operação conjunta com árabes” – Hassan Zayd, líder do partido Al-Haq do Iêmen, escreveu pela internet, chamando a atenção para os interesses convergentes entre Arábia Saudita e Israel.

Mas essa aliança Israel-sauditas contra o Iêmen não é novidade. Os israelenses ajudaram a Casa de Saud durante a Guerra Civil do Iêmen do Norte, iniciada em 1962; naquela ocasião, Israel forneceu armas à Arábia Saudita para ajudar os monarquistas, contra os republicanos do Iêmen do Norte.


Os EUA também estão envolvidos, liderando “dos fundos”, ou à distância. Ao mesmo tempo em que querem um acordo nuclear com o Irã, trabalham para manter uma aliança contra Teerã, usando os sauditas. O Pentágono garantirá o que chamou de “apoio logístico e de inteligência” à Casa de Saud. Que ninguém se engane sobre esse ponto: a guerra contra o Iêmen também é guerra de Washington. O CCG atirou-se contra o Iêmen obedecendo ordens dos EUA.

Há muito se fala sobre a formação de uma força militar pan-árabe, mas as propostas voltaram à mesa, renovadas, dia 9/3/2015, com o selo da Liga Árabe. As propostas de uma força militar árabe unificada interessam aos EUA, a Israel e aos sauditas. A conversa sobre um exército pan-árabe foi motivada pelos preparativos desse mesmo trio para atacar o Iêmen, repor Al-Hadi no governo e confrontar regionalmente o Irã, a Síria, o Hezbollah e o Bloco da Resistência.

[Continua]
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[*] Mahdi Darius Nazemroaya é cientista social, escritor premiado, colunista e pesquisador. Suas obras são reconhecidas internacionalmente em uma ampla série de publicações e foram traduzidas para mais de vinte idiomas, incluindo alemão, árabe, italiano, russo, turco, espanhol, português, chinês, coreano, polonês, armênio, persa, holandês e romeno. Seu trabalho em ciências geopolíticas e estudos estratégicos tem sido usado por várias instituições acadêmicas e de defesa de teses em universidades e escolas preparatórias de oficiais militares. É convidado freqüente em redes internacionais de notícias como analista de geopolítica e especialista em Oriente Médio.
Recentemente, em viagem pela América Central, contactou a Frente Sandinista de Libertação Nacional, em sua base em León, na Nicarágua. Como Observador Internacional esteve em El Salvador no primeiro turno das eleições.