terça-feira, 30 de junho de 2015

Ucrânia: “Essa gente venderia baratinha a Novorrússia”


17/6/2015, [*] Rostislav Ishchenko, The Vineyard of the Saker
Traduzido do russo para inglês por Gideon e do inglês para português pela Vila Vudu
Novorrússia e região
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Gente é coisa que sempre me impressiona. Por exemplo, muitos russos creem sinceramente que tipos diferentes de russos vivem na Crimeia, no Donbass, em Odessa e Carcóvia, porque a Crimeia agora é Rússia, porque há guerra no Donbass e porque Carcóvia e Odessa ainda estão ocupadas e sob repressão.
Pode-se dizer então que os cidadãos de Moscou são 1,5 vezes melhores que os de Volgogrado, 2 vezes melhores que os cidadãos de Kursk e três vezes melhores que cidadãos da Carcóvia e Rostov-on-the-Don, porque durante a 2ª Guerra Mundial os alemães capturaram Carcóvia e Rostov 3 vezes, Kursk uma, mas jamais ocuparam completamente Stalingrado e jamais puseram os pés em Moscou. Claro, Petropavlovsk-Kamchatsky é população de traidores, os quais, quando nosso país combatia, lá estavam, em segurança, por trás do front.

Operação Barbarossa – Alemanha ataca a URSS (clique na imagem para aumentar)

Não há exagero algum: aquela ideia geral é partilhada pelos russos médios, sobre os eventos em curso para desestabilizar o mundo e nosso país hoje. Mas esse tipo de confusão não é fenômeno exclusivamente russo.
Na Ucrânia, o presidente Putin apareceu consistentemente à frente dos demais “candidatos”, quando pesquisas perguntaram “Em quem você votaria, se políticos estrangeiros pudessem concorrer com políticos locais, em eleições na Ucrânia?”.
Como se não bastasse, se, na Rússia, o índice de aprovação do governo Putin subiu para 80-85% depois que a Crimeia voltou a ser russa, na Ucrânia Putin venceu no primeiro turno, com 75-80% dos votos, essas eleições hipotéticas, todos os anos, durante cinco anos.
Recentemente conversei com um sociólogo meu amigo, que ainda faz esse tipo de pesquisa sem publicar os resultados, e ele diz que em 2014 Putin venceu outra vez, logo no primeiro turno, aquelas hipotéticas eleições na Ucrânia, e mantém praticamente sem alteração o índice de aprovação de antes. O que nós ouvimos cá, “do lado de cá”, é que metade dos cidadãos ucranianos acreditam sinceramente que o país está em guerra contra a Rússia e que “Putin, o amaldiçoado” inventou aquela guerra.
Além do mais, a Ucrânia não está simplesmente em guerra. Aquela guerra é vista pela parte da população que tem orientação pró-Europa como uma luta da democracia contra o totalitarismo: de tudo que é bom, contra tudo que é mau. E Putin encarna pessoalmente o “totalitarismo russo” e tudo que não presta. Pois mesmo assim... os ucranianos “democratas” só querem saber de Putin, para ser presidente deles!
A fraternidade das redes sociais russas frequentemente zomba dos compatriotas euro-obcecados, argumentando, com razão, que eles lá atribuem a Putin traços verdadeiramente divinos. É Deus. Sem a intervenção de Putin-Deus, nada teria acontecido, nem na, nem em torno da, Ucrânia. E ninguém parece dar-se conta de que a consciência das massas russas passa por processo muito semelhante. Mas ali a divisão no pensamento das massas é outra.
Putin é visto como homem capaz de fazer absolutamente qualquer coisa. Por exemplo: pode pôr os EUA no lugar subalterno que eles bem merecem, com um erguer de sobrancelhas; pode pôr fim à crise ucraniana, pode expulsar da Síria o “Estado Islâmico” e criar um paraíso na Terra, antes do café da manhã. É só Putin querer! Mas, ninguém sabe por quê, Putin não parece querer fazer nada disso! Assim sendo, centenas de blogueiros começaram a lhe dar conselhos amigáveis do tipo “Mexa-se, Vladimir Vladimirovich! Estrangule o inimigo!”.

Surpresa...?

E há também outra dessas lendas paralelas, segundo a qual haveria uma “quinta coluna” de liberais dentro do governo, os oligarcas que Putin libertou e aos quais deu carta branca – os Rockefellers, os Morgans, os ubíquos Rothschilds, os Maçons e a conspiração sionista mundial e mais sortimento variado de forças do mal. E essas forças do mal, às quais, numa vida anterior, Putin jurou fidelidade, não permitem que o povo russo e seus verdadeiros defensores derrotem para sempre o Reich norte-americano em seu próprio terreno... E por isso aquelas forças estão fazendo de tudo para derrotar o invencível Donbass.
Segundo essa versão, Putin está(ria) em guerra com ele mesmo, e a única razão pela qual os EUA ainda não devoraram a Rússia é porque Putin, como Viiy, [1] personagem de Gogol, ainda não ergueu as pálpebras, mas já está quase começando a erguê-las.
O único sujeito mais durão que Putin é Surkov. Surkov é coisa séria. Em todas as versões, ele articula para trair o Donbass e, na sequência, destrói Putin, depois a Rússia. Para conseguir isso, forçou Putin a assinar os acordos Minsk-1 e Minsk-2. Também espremeu para fora do Donbass um aspirante a marechal de campo que há um ano só faz contar como tudo está vindo abaixo dada a ausência dele mesmo. Surkov indicou gente sua para todas as funções no Donbass; e essa gente já roubou tudo, receberam propinas inimagináveis e agora estão querendo que o Donbass renda-se. Nada conseguiram em um ano, mas todos os discursos públicos do “marechal de campo” terminam com a declaração de que mais cedo ou mais tarde o astuto Surkov achará seu próprio caminho.
Ocasionalmente, alguém se vê obrigado a reconhecer que a “cambada local” que está no poder no Donbass recusa-se a entregar o Donbass. Mas nem isso abala a onipotência de Surkov.
Essa versão, na verdade, dispensa a presença de Putin. Putin é redundante nesse esquema. É um custo explicar o que faz Putin, se só Surkov e suas intrigas fazem acontecer tudo que acontece. Mas quem perderia tempo com esses detalhes? A frase “Surkov enganou Putin” é o resumo da ópera. Ninguém sequer se dá o trabalho de considerar que há o FSB (Serviço Federal de Segurança da Rússia) (FSB) e o que faz; ou o Serviço de Inteligência Exterior, ou, mesmo, o Diretorato Central de Inteligência do Comando Geral (GRU), com o qual o Serviço Secreto da Ucrânia sonha todas as noites. O que fazem todos esses serviços?
Como seria possível que um assessor enganasse tão flagrantemente o presidente, o qual, em todas as ocasiões públicas sempre manifesta nível notavelmente alto de conhecimento e compreensão do que se passa no país, no mundo e nos arredores do sistema solar? Estará Putin proibido de receber informações de Ivanov, Medvedev, Fratkov e Bortnikov? Ou, quem sabe, Surkov enganou também todos esses?

Vladislav Surkov e Vladimir Putin

Posso construir aqui centenas dessas narrativas deliradas. Alguém poderia me explicar, por favor, por que gente capaz de desenhar naves espaciais, construir pontes, resolver equações complexas, curar doenças, ensinar ao mesmo tempo 30 crianças numa mesma sala, quando a maioria mal dá conta de uma ou duas crianças por vez, passaria, de repente, em plena luz do dia, a não conseguir usar o próprio pensamento racional e se poria a aceitar e repetir a mais alucinada versão de conspiração inventada... para “explicar” a situação política?
Por que os ucranianos não admitem logo que, se insistentemente “elegem” e “reelegem” Putin para a presidência da Ucrânia (mesmo que, ao fazê-lo, estejam interessados só nos talentos gerenciais do “candidato”), não pode haver dúvida alguma de que, sim, o que os ucranianos mais desejam é um sistema russo de governo? Como é possível não ver que isso significa que os ucranianos sentem e sabem que a vida é melhor na Rússia; e que, portanto, ninguém lá está lutando contra a Rússia, mas só, exclusivamente, contra os próprios preconceitos e complexos?
Os russos devem refletir realmente sobre o seguinte fato: a Crimeia, que recebeu cidadania russa em 2014 só difere do infeliz Donbass encharcado em sangue, porque a Marinha Russa está ancorada na Crimeia. Fosse o contrário, o Donbass estaria incorporado à Rússia e o povo da Crimeia estaria lutando no Perekop ou, talvez, teria sido reprimido como foram Odessa e Carcóvia.
Por que ambos, tanto os caçadores de agendas ocultas como os que só se interessam por explicações simples e erradas e que não conseguem compreender por que Putin simplesmente não manda seus soldados e canhões para resolver o caso do Donbass, não tratam de recordar que, em 2000, Putin foi eleito presidente de um país imenso em tamanho, mas mínimo em termos de influência política?
O país que Putin recebeu para governar em 2000 era comparável à Ucrânia no governo Kuchma. Naquele momento, os dois países patrocinaram o processo de paz na Transdnístria, e a Ucrânia, naquele momento, participava ativamente da resolução de conflitos na Abcássia, na Ossétia Sul e em Nagorno-Karabakh.
Depois de apenas 15 anos, a Ucrânia cai aos pedaços diante dos nossos olhos, consumida no fogo de uma guerra civil. E Putin, hoje, é presidente de uma superpotência. Sejamos bem claros nesse ponto: ninguém no mundo, hoje, discorda de que a Rússia é, sim, uma superpotência. Há cinco anos, a expressão “superpotência” era menos discutida que ridicularizada, e havia até diplomatas russos que rejeitavam a expressão.
Não será o caso, quem sabe, de Putin ser político mais hábil, mais inteligente, melhor democrata e mais bem informado que os “blogueiros” “livres” e “independentes” da “oposição” e que os grandes “marechais de campo”, que escrevem e pensam como se tudo soubessem, não só os próprios “blogueiros” “livres” mas também seus seguidores e leitores igualmente “livres”, cada um dos quais se apresenta, se não como um perfeito Aristóteles, sempre, no mínimo, como um neo-Alexandre o Grande?


É muito possível que uma equipe tenha trabalhado incansavelmente ao longo de 15 anos, com revezamentos, mas sempre preservando a dinâmica geral do grupo, e que Surkov não passe de mais um assessor, com espaço de manobra tão limitado como os demais. Nenhuma capacidade além das que se leem na descrição do cargo & funções. Se hoje se dedica a assuntos da Ucrânia absolutamente não significa que ninguém mais o faça.
Absolutamente não estou supondo que na tal equipe todos gostem muito uns dos outros. Estou, aliás, convencido, que alguns membros da equipe não são os melhores amigos, para dizê-lo com suavidade. Mas não esperamos que nos sirvam “harmonias familiares”: precisamos que nos sirvam sucessos políticos. Uma pessoa que esteja pensando que esse arranjo não é eficiente, que atire a primeira pedra em mim.
Lembro aos duvidadores que nos anos 1989-1991 toda a audiência do programa “Look” e leitores do jornal “Twinkle” compreendiam os erros do passado e como construir o luminoso futuro. Mas dessa “sabedoria” [no Brasil, foi a “sabedoria” da tucanaria uspeana udenista do ex-FHC e atual NADA [2]], surgiram os “dissolutos anos 1990s”, ao qual muitos não sobreviveram e os que sobreviveram não conseguem compreender como conseguiram fazer o que fizeram e como o país sobreviveu.
Eis por que não podemos confiar cegamente no primeiro que aparece e diz que sabe tudo antes dos demais. Yeltsin era desses, considerado infalível por muitos. É suficiente propor perguntas diretas e dar respostas plausíveis.
O mais importante de tudo: que ninguém pense que, se o primeiro acordo de Minsk (Minsk-1) foi considerado natimorto por metade dos comentaristas e que 99% deles descreveram o acordo Minsk-2 nos mesmos termos, daí se pode(ria) concluir que Putin não compreende coisas que “qualquer um” compreende perfeitamente.
Se Surkov realmente tem alguma responsabilidade pela Ucrânia, e a Ucrânia, por mais de um ano, caminha inequivocamente na direção de uma guerra, nesse caso o resultado não aconteceria contra a vontade dele. Se Surkov tivesse trabalhado pela paz a qualquer preço (mesmo ao preço de cair em desgraça), ou já teria havido alguma paz vergonhosa ou Surkov já teria sido demitido.
A vida não é roteiro de filme de suspense Hollywoodiano, com trama complexa, na qual o mal é onipresente e insidioso. A variedade de desejos pessoais, interesses, aspirações dos que têm influência pode tornar muito previsíveis as decisões políticas. A vitória depende de compreensão mais profunda da ampla gama de possibilidade de encontrar um curso de ações que o opositor não espere.




Isso é o que o governo russo faz brilhantemente. Nada tem de agradável, é claro, que o governo russo não partilhe seus planos com o grande público. Mas lembramos bem o que o velho Mueller, representado por Bronevoy, diz em 17 Moments of Spring: “Se duas pessoas sabem, até o porco sabe”.
A conclusão é que é melhor que os russos nos preocupemos um pouco, que alertar aqueles nossos “amigos e parceiros” do ocidente; melhor nos preocuparmos um pouco, que ceder nossos trunfos às práticas miseráveis daquela gente.

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Notas dos tradutores
[1] O conto “Viiy” pode ser lido e português em O Capote e outras histórias, São Paulo: Editora 34 (trad. do russo de Paulo Bezerra). Lá se lê: “Viiy é uma criação colossal da imaginação popular. É o nome que os ucranianos dão ao rei dos gnomos, cujas pálpebras chegam ao chão. Toda essa história é lenda popular. Por não querer submetê-la a qualquer modificação, narro-a quase com a mesma simplicidade com que a ouvi contar”.


[2] “A inflação acumulada do ano de 1990 foi de 1.476,56%. [EM 1993] O ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso, anuncia o programa de estabilização econômica. O chamado Plano FHC cria a URV (Unidade Real de Valor), indexador que será base para a nova moeda, o Real. Nesse ano, 1993, FHC ministro da Fazenda, a inflação acumulada foi de 2.780,6%” [com informações de Almanaque].
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[*] Rostislav Shchenko é Presidente do Centro de Análise Sistemática e Previsões Políticas da Ucrânia.

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