sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

O porquê dos assassinatos em Charlie Hebdo: O mais espetacular fracasso da imprensa-empresa

14/1/2015, [*] Shamus CookeCounterpunch
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu


Tarefa essencial do jornalismo é responder à pergunta “por quê?” É dever de todos os jornalistas explicar por que tal ou qual evento aconteceu, de modo que os leitores e telespectadores tenham chance justa de compreender o que leiam ou vejam.

Se o porquê não é investigado e fica como que apagado, silenciado, deixado de lado, os mais ensandecidos pressupostos e estereótipos saltam de todos os cantos para ocupar todos os espaços, enunciados por “especialistas” e políticos cujas ridículas “explicações” a imprensa-empresa não questiona.

Dado que nenhum verdadeiro porquê do massacre na redação de Charlie Hebdo foi investigado e oferecido à opinião pública pelos jornalistas da imprensa-empresa, sobrou espaço para que um falso culpado aparecesse por “geração espontânea”, o que levou à mais estúpida discussão nacional na imprensa-empresa dos EUA, sobre se o Islã seria “inerentemente” violento.

O mero fato de um veículo de imprensa-empresa divulgar essa imbecilidade já é prova de que estamos cercados pela mais asinina ignorância “midiática” sobre o Oriente Médio e o Islã, ou, então, é prova do desejo consciente de manipular as emoções das pessoas, o que explica perfeitamente por que os “jornalistas” e “âncoras” só entrevistam alguns “especialistas” capazes de enunciar tal estupidez, e sempre os mesmos.

Jornalistas e especialistas “midiáticos” já deveriam saber que desde os anos 1980s o fundamentalismo islamista desapareceu no Oriente Médio – e só sobrevive na Arábia Saudita, ditadura que os EUA apoiam, e cuja família real reinante só ainda reina porque conta com a proteção dos EUA. A religião oficial na Arábia Saudita é uma versão fundamentalista única dentro do Islã, a qual, com a própria família real, são as duas âncoras do poder do governo saudita.

Antes dos anos 1980s, a ideologia dominante no Oriente Médio foi o socialismo pan-árabe – ideologia secular que via o fundamentalismo islamista como econômica e socialmente atrasado e atrasista. Os fundamentalistas islamistas começaram com ataques terroristas conta os governos “socialistas pan-árabes” do Egito, da Síria, da Líbia, do Iraque e outros que se alinharam com os socialistas pan-árabes em diferentes momentos. 

O fundamentalismo islamista foi virtualmente extinto entre 1950-1980, deixando a Arábia Saudita e depois o Qatar na função de último bastião e base para cobertura e apoio de fundamentalistas exilados de países com governos seculares.

Durante a Guerra Fria, essa dinâmica foi acentuada, quando os EUA aliaram-se ao fundamentalismo islamista – Arábia Saudita e Estados do Golfo – enquanto a União Soviética aliou-se aos governos seculares de nações que se identificavam como “socialistas”.

Guerrilheiros revolucionários de Saur, 1978
Quando a revolução Saur, de 1978, no Afeganistão, resultou em mais um governo de inspiração socialista, os EUA reagiram com uma união com a Arábia Saudita para dar toneladas de armas, além de treinamento e malas de dinheiro aos primeiros terroristas do movimento então ainda nascente. Essa ação ajudou a transformar aqueles primeiros fundamentalistas ainda localizados, numa força social regional, que em pouco tempo tornou-se os Talibã e a al-Qaeda.

Os fundamentalistas afegãos mantidos pelos EUA foram a origem do moderno movimento de fundamentalismo islamista. O movimento atraiu e ajudou a organizar fundamentalistas por toda a região, e as ditaduras do Golfo, aliadas dos EUA, usaram a religião de Estado para autopromover as próprias ditaduras. Combatentes que viajavam para lutar no Afeganistão retornavam aos países natais com treinamento e experiência de guerra e status de heróis, o que inspirava outros a unir-se ao mesmo movimento.

Depois, os EUA ajudaram os fundamentalistas ao invadir o Afeganistão e o Iraque, ao destruir a Líbia e ao fazer a mais estúpida e fanatizada guerra à distância contra o governo da Síria. Os fundamentalistas serviram-se dessas invasões e da destruição subsequente de nações, para mostrar que o ocidente estava em guerra contra o Islã.

O fundamentalismo islamista cresceu sem parar durante aquele período, até que deu mais um gigantesco salto adiante, que começou com a guerra que os EUA patrocinam contra o governo da Síria, patrocínio que criou um fundamentalismo islamista literalmente inflado “de esteróides”.

Mais uma vez, o governo dos EUA alinhou-se ao lado dos fundamentalistas islamistas, que foram os principais grupos que lutavam para derrubar o governo da Síria desde 2012. Para arregimentar os milhares de combatentes estrangeiros necessários para aquela guerra, Arábia Saudita, Qatar e outros estados do Golfo passaram a promover o fundamentalismo com sua própria imprensa-empresa, suas figuras religiosos e seus doadores muito ricos, enriquecidos sempre mais pelo petróleo.

Áreas dominadas pelo ISIS/ISIL, mapa de 5/11/2014
Enquanto os grupos fundamentalistas prosperavam na Síria, a imprensa-empresa e os “especialistas” norte-americanos mantiveram-se em total silêncio, mesmo quando já se sabia que grupos como al-Qaeda e ISIS estavam crescendo exponencialmente graças às quantidades estonteantes de dinheiro e armas que os estados do Golfo lhes forneciam.

O governo Obama, na prática, fez como se não soubesse de nada disso. Até que o ISIS, que invadiu o Iraque, chegou em 2014 ao Curdistão que os EUA protegiam.

Em versão resumida, as guerras dos EUA no Afeganistão, Iraque, Líbia e Síria destruíram quatro civilizações em nações de maioria muçulmana. Gente orgulhosa de si e da própria, história nacional foi destruída, aos milhões, pela guerra – mortos, feridos, mutilados, convertidos em refugiados ou desgraçados pela miséria, pela falta de emprego e pela fome. Essas são as condições ideais para que floresça o fundamentalismo islamista de estilo saudita, quando até as promessas mais ocas, de qualquer dignidade e qualquer tipo de poder, encontram eco na alma de pessoas às quais tudo foi roubado.

Outro grave fracasso do jornalismo e dos jornalistas da imprensa-empresa norte-americana na cobertura dos crimes contra Charlie Hebdo é o modo como se discutiu o que seja “sátira” – e as ações do semanário foram elogiadas como se ali estivesse manifestação do mais alto princípio da liberdade de manifestação do pensamento e de liberdade de imprensa.

É importante saber o que é sátira política, e o que absolutamente não é. Embora a definição não seja estrita, entende-se que a sátira política seja dirigida contra governos ou indivíduos poderosos. É forma muito potente de crítica e análise política que merece ser absolutamente assegurada e protegida pela liberdade de manifestação do pensamento.

Contudo, quando a potência da sátira política passa a ser dirigida contra minorias oprimidas – e os muçulmanos na França são uma minoria oprimida – já não se pode falar de sátira e já se tem de considerá-la como ferramenta (mais uma!) de opressão, de criminalização de uma religião, e de racismo.

Discriminação contra os muçulmanos na França
A discriminação que os muçulmanos franceses enfrentam aumentou dramaticamente ao longo dos anos, com os muçulmanos tomados como alvo de discriminação na política e nos veículos da grande imprensa-empresa – sendo que a mais repugnante manifestação dessa discriminação foi, em 2010, na França, a proibição de “cobrir a cabeça”, dirigida contra o véu que as mulheres muçulmanas usam.

A discriminação aumentou ao mesmo ritmo em que a classe trabalhadora francesa passou a sofrer o aguilhão da “austeridade”. Essa dinâmica acelerou-se a partir da recessão mundial de 2008; e, consequentemente, políticos populistas servem-se, como bodes expiatórios, cada vez mais frequentemente, de muçulmanos, africanos e qualquer um que seja visto como imigrante.

Nesse contexto, as charges que ofendem os muçulmanos quando ridicularizam seu profeta Maomé – ofensa tipificada e considerada muito grave dentro do Islã – são muito insultantes e, sim, têm de ser vistas como incitamento ao ódio racista na França, onde árabes e norte-africanos são frequentemente alvos de ataques da extrema direita contra imigrantes.

É sinal de o quão profundamente a França decaiu em termos políticos, que tanta gente se apresente em solidariedade ao jornal Charlie Hebdo, que produziu e publicou algumas das charges mais racistas e incendiárias de incitamento ao ódio racista contra muçulmanos, árabes e pessoas originais do norte da África, que tanto contribuíram para alimentar a cultura de ódio que resultou em ataques físicos contra muçulmanos depois do massacre na redação de Charlie Hebdo. É exatamente a mesma dinâmica política racista que levou Hitler a usar os judeus como seus bodes expiatórios.

Tudo indica que o racismo na França já tenha superado até o racismo nos EUA. Afinal, é inimaginável que, se a Ku Klux Klan fosse atacada nos EUA por seu discurso de ódio contra os mexicanos, os “inteligentíssimos” norte-americanos pôr-se-iam a distribuir milhões de selfies em que declarariam “Sou KKK”.

Charlie Hebdo e reações da imprensa-empresa
Sabe-se que Charlie Hebdo não é jornal da extrema direita. Mas os consistentes ataques contra muçulmanos e africanos mostram o quanto o semanário foi incorporado pelo establishment político francês, que agora cada vez mais confia no expediente de servir-se de minorias como seus bodes expiatórios para permanecer no poder, porque assim impede que as grandes empresas-imprensa e outras e os mais ricos sejam acusados de ter convertido em inferno a vida da classe trabalhadora na França.

Melhor culpar os sindicatos e quaisquer minorias pelo estado esfrangalhado em que está a economia francesa, comandada, afinal, por empresas e empresários e financistas pressupostos competentíssimos.

O único modo de combater as táticas de os ricos usarem os mais pobres como bodes expiatórios políticos é nunca perder de vista quais são as forças sociais responsáveis pela crise econômica e obrigá-las a pagar pelas soluções pelas quais os ricos estão exigindo que a classe trabalhadora pague com salários arrochados e “austeridade”. 

[*] Shamus Cooke é trabalhador de Serviço Social, sindicalista e escritor ligado a Workers Action.


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