quarta-feira, 1 de outubro de 2014

A política de poder da expansão do capitalismo


29/9/2014, [*] Norman PollackCounterpunch
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

O rótulo da KGB tem alto valor propagandístico na campanha de demonização de Putin, mas não há registro de que Putin algum dia tenha pessoalmente “ticado nome-sim nome-não”, numa lista de gente a ser assassinada por drones e ataques aéreos, como faz Obama em seu mundo cercado por bases militares.

E a KGB seria, por acaso, talvez, mais repressiva e mais assassina que a CIA ou Forças Especiais dos EUA, quando promovem “mudança de regime”? Ou mais invasiva, contra a privacidade dos cidadãos, que os programas de vigilância em massa da Agência de Segurança Nacional de Obama?

Vladimir Putin, segundo a imprensa-empresa "ocidental"
Vale tudo, para demonizar Putin, mesmo se, como hoje, a acusação é que ele viveria cercado de oligarcas – o que é muito mais a própria cara dos EUA, se se olhasse no espelho. Não preciso nem quero discutir ou explicar os negócios da plutocracia local que modelaram a economia russa pós-soviética. Sinceramente, a visão distópica de Jeffrey Sachs, que manda rasgar o socialismo em farrapos, é pior que só ideia infeliz; a aceitação operacional que essa visão recebe na Rússia é trair um Mundo Socialista que, depois da morte de Stálin, poderia ter feito avançar a democratização de largas porções da economia política internacional e mordido porção considerável do poder e do desempenho econômico dos EUA. Em vez disso, parece estar acontecendo o exato inverso.

Agora a Rússia, depois, sem demora a China, entram na alça de mira para serem politicamente enfraquecidas e na sequência politicamente desmembradas e/ou empurradas para o retrocesso econômico, porque a militarização pelos EUA do capital monopolista não tolerará oposição em sua estrutura recém definida de rivalidades intracapitalistas.

Putin e Li romperam a conexão histórica com Marx. Por isso eu, valha o que valer, quero se que veja em Rússia e China versão abastardada do capitalismo de Estado, não alguma espécie de clara opção pelo socialismo democrático. Os bilionários, os palácios de veraneio na Côte d’Azur, os condomínios que são cidades completamente privatizadas na Belgravia, arrastam aqueles países para o nível mais norte-americano de consumismo e desigualdade estrutural.

Mesmo assim, enfatizo aqui a Rússia, porque há uma diferença: Putin não saiu por aí armado para conquistar o mundo; uma Rússia estável numa ordem internacional igualmente estável parece bastar, e mantém dentro de limites estreitos quaisquer aspirações à hegemonia, se houver.

Com Putin, nada há da retórica grandiloquente de Obama sobre salvar o mundo para a liberdade e a democracia; nada de orçamento militar que estrangula a sobrevivência do país e que, parece que por projeto, já destruiu a rede de proteção social; e nada, tampouco, com Putin, da expansão drástica da modernização nuclear, para tornar letal todo o estoque de armas e aperfeiçoar os meios para transporte e detonação das armas. Putin é líder mundial muito mais circunspecto que Obama e seus predecessores.

O rótulo da KGB tem alto valor propagandístico na campanha de demonização de Putin, mas não há registro de que Putin algum dia tenha pessoalmente “ticado nome-sim nome-não”, numa lista de gente a ser assassinada por drones e ataques aéreos, como no mundo cercado por bases militares em que reina Obama.

E a KGB seria, por acaso, talvez, mais repressiva e mais assassina que a CIA ou Forças Especiais dos EUA, promovendo mudança de regime? Ou mais invasiva, contra a privacidade dos cidadãos, que os programas de vigilância em massa da Agência de Segurança Nacional de Obama?

Vladimir Putin - agente da KGB
Mas, sim, oligarcas são detestáveis, não importa a nacionalidade. E o The New York Times publicou artigo assinado por Steven Lee Myers, Jo Becker e Jim Yardley, intitulado Bancos Privados Alimentam Fortunas no Círculo Íntimo de Putin  (ing., 28/9/2014), que lança luz sobre a ascensão de Putin ao poder e – embora os EUA insistam em ignorar o assunto e não se veja nenhuma referência ao tema na imprensa-empresa de “informação” − mesmo que seja item que muito contribuiria para demonizar Putin – lança luz também sobre os custos sociais destrutivos da PRIVATIZAÇÃO de recursos do Estado.

Quando a Rússia põe-se sistematicamente a seguir os EUA, causa dano grave ao próprio potencial e realidade humanista. Paradoxalmente, a Velha Guerra Fria refletia diferenças ideológicas; mas a Nova Guerra Fria está parcialmente apagando aquelas diferenças, embora, sim, esteja subindo as apostas, porque dentro do capitalismo esconde-se hoje besta muito mais feroz do que a que se conhecia antes de 1917 e da Revolução Bolchevique: a da competição sem trégua pela supremacia planetária.

De diferente hoje, também, que a Rússia não dá sinais de estar disposta, no governo de Putin, a entrar no jogo; como se invertesse, para parafrasear, o mote de Stálin: “capitalismo num só país”. Quanto a Obama, por que parar às portas da Rússia?

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A matéria do NYT  “denuncia” a ação do Bank Rossiya que teria apoiado Putin e agora recebeu sanções dos EUA. A matéria não é importante [mais do mesmo incansável “denuncismo” de um tipo de jornalismo que visaria a construir mercados & consumidores “éticos” (NTs)], nem confiável. [Interessantes, só, os comentários de Pollack (NTs)].

Obama é mais capitalista, que nacionalista: quando favorece JPMorgan, Chase, Boeing, etc., não mistura, embora possa deliberadamente jogar um/uma contra o/a outro/a, o banco, o banqueiro ou a empresa, e a nação. Porque a nação, para Obama, é secundária ante os interesses dos grupos que o apoiam (razão pela qual as comunidades militar e de inteligência são consideradas ferramentas indispensáveis).  

[E, adiante:] Mas os jornalistas do NYT não informam que várias das tais atividades pouco recomendáveis no Banco Rossiya aconteceram em abril, depois de as sanções já terem sido declaradas; o banco reagiu contra o regime de sanções, muito mais do que “recompensou empresários amigos”. Seja como for, o Bank Rossiya – se se desconta a retórica incendiária dos jornalistas – contribuiu para converter em bilionários “vários apoiadores de Putin, cuja influência sobre setores estratégicos da economia auxiliaram Putin a manter-se firmemente agarrado ao poder”. Parece ser verdade que, sim, a amizade com Putin alterou a distribuição da riqueza, mesmo que Putin, pessoalmente, não se tenha beneficiado.

Bank Rossiya
Como paradigma do desenvolvimento capitalista, porém, lá está a transformação, de socialismo burocrático para capitalismo de Estado, com ou sem o papel de vanguarda entregue ao círculo presumido íntimo de Putin. (Bem provavelmente, o mesmo conjunto geral de dinâmicas históricas também se aplica à China, de Mao a Li; mas o capitalismo clientelista parece estar mais claramente identificado na China que na Rússia).

Se a Rússia tivesse conseguido fazer uma transformação pacífica depois do fim da União Soviética, em mundo no qual o capitalismo não tivesse sido veículo para dominação internacional, talvez – só talvez! – o resultado poderia ter sido uma economia mais genuinamente mista, depilada de bilionários e de favoritos do governo.

Não aconteceu. Na matéria do NYT [se se varrem os não-ditos e subentendidos de propaganda], os jornalistas acertam, no essencial geral, quando escrevem que:

Putin chegou ao poder prometendo eliminar, “como classe”, os oligarcas que haviam acumulado fortunas descomunais – e, para o modo de pensar do novo presidente, excessiva parcela de poder político – durante o governo do predecessor de Putin, Boris N. Yeltsin, no caos pós-comunista dos anos 1990s. Em vez disso, o que se viu foi o surgimento de uma nova classe de magnatas, homens de sombrias origens soviéticas que devem a Putin a vasta riqueza que acumularam e que, em troca, lhe garantem total fidelidade política.

Lamentavelmente, bancos sempre serão bancos. O Bank Rossiya (como disse Willie Sutton: “roubo bancos porque é lá que está o dinheiro”), é resultado do talento para o empreendedorismo, de gente como Yuri Kovalchuk, presidente e maior acionista, “físico por formação acadêmica, às vezes chamado “o Rupert Murdoch da Rússia”, pelo papel que teve na coordenação e arquitetura dos interesses do seu banco, na “mídia'’. Recorre também a “sombrias estruturas corporativas”, como empresas em paraísos fiscais, como as Ilhas Virgem britânicas. Quanto aos acionistas, foi gratificante ver na lista o nome de Sergei Roldugin, violoncelista que usou seu investimento no banco para converter um palácio do século XIX em São Petersburgo, em “casa da música e academia para formação de músicos clássicos” (o exemplo-propaganda vai aqui, grátis).

Não se discute o clientelismo – o NYT cita vários exemplos, além de enorme quantidade de oligarcas conhecidos associados ao banco. “Conexões de negócios”, escrevem os jornalistas do NYT, “tornaram-se conexões profundamente pessoais” [também com] “Putin, que, com sete empresários, muitos dos quais acionistas do Bank Rossiya, formaram [em 1996, o que os jornalistas não esclarecem], uma cooperativa de casas de verão, dachas, chamada Ozero [“lago”], no nordeste de São Petersburgo”.  

Dashas Ozero, S. Petersburgo (Google Earth)
(clique na imagem para aumentar)
Mas... e tudo isso será, como esbravejam os críticos, “cleptocracia legalizada”? A discussão seria longa e desinteressante e inconclusiva. Para reduzir ao que importa, basta dizer que o fator pessoal aparece bem separado das considerações de Estado, na cabeça de Putin.

Um daqueles oligarcas, Gennady Timchenko, que negocia petróleo e investe no Bank Rossiya (e que está hoje sob sanções impostas pelos EUA), explicou que:

(...) nunca lhe ocorreria questionar o presidente da Rússia sobre suas políticas na Ucrânia, fosse qual fosse o custo delas para empresas como as suas. “Seria impossível”, disse ele ao NYT, referindo-se ao presidente da Rússia formalmente pelo primeiro nome e nome do pai. Vladimir Vladimirovich age com vistas a defender os interesses da Rússia, sempre, em qualquer situação. Ponto. Parágrafo. Não faz concessões. Nem jamais passaria por nossa “cabeça discutir essas coisas”.

Essa fala é extremamente importante.

O capitalismo de estado não é necessariamente a interpenetração de empreendimentos, empresas, empresários e governo, que tantas vezes apresentei em artigos para CounterPunch em que examinava as dinâmicas estruturais que estão levando os EUA para a fase fascista do capitalismo avançado.

Ainda que Vladimir Vladimirovich não seja exatamente Tolstoy reencarnado, mesmo assim vê-se, em Putin, que o capitalismo na Rússia é mais russo, que nua-e-cruamente capitalista.

Os EUA sempre foram e permanecem puristamente capitalistas, impondo as mais repressivas políticas domésticas (vigilância massiva, clima de hostilidade contra os trabalhadores, o trabalhismo e o trabalho, vasta disparidade na distribuição da riqueza) e também as mais violentas políticas externas (guerra, intervenção, luta pela hegemonia) para tentar dar sustentabilidade ao capitalismo purista dos EUA. Essa é diferença muito grande entre Rússia e EUA, com os EUA declarando intolerável que a Rússia, talvez hoje ainda mais que sob a forma soviética, coloque outros fatores acima e por cima do capitalismo como os EUA o praticam: como sistema integralmente agressivo-expansivo, sem parar ante nenhum obstáculo em seu avanço global.

Foi fácil opor-se e condenar o socialismo. É menos fácil opor-se e condenar essa formação política nacionalista-capitalista que se vê hoje na Rússia de Putin, porque a simples existência dessa formação dentro do capitalismo já obriga a ver outras potencialidades, dentre as quais, que, mesmo no capitalismo, há meios para garantir melhor atenção e melhores condições de vida para os próprios cidadãos, do que o que se vê hoje nos EUA.


Oligarcas do círculo íntimo de Putin
(print screen recortado do NYTimes)

Na sequência, reproduzo meu “Comentário” ao artigo do NYT, mesma data:

Excelente documentação. Mas análise efetivamente e realmente comparativa mostra o quê? Que o capitalismo de empresários-cupinchas (oficialmente chamado “capitalismo clientelista”) está vivo e em ótimas condições tanto na Rússia como no Ocidente. Criticar o ocidente pelos mesmos mal-feitos soa estranho, porque os mesmos pressupostos valem igualmente para EUA e Rússia. Os EUA vivem hoje a fingir as mesmas puras convicções de algum anticomunismo, como na Primeira Guerra Fria (não há como negar que já estamos na Segunda), quando, na verdade os EUA invejam muito o sucesso capitalista da Rússia.

Os EUA atacam Putin como a raposa ataca uvas que não pode alcançar. O que foi o ‘resgate’ dos bancos norte-americanos “grandes demais para quebrar”, se não o capitalismo mais clientelista? O que é o íntimo relacionamento entre o Pentágono e as grandes empresas do complexo industrial da Defesa, se não o capitalismo mais clientelista? Não é preciso que algum líder, no caso Putin, ou exiba ou não exiba ele, pessoalmente, a doença. O capitalismo clientelista pode ser e é SISTÊMICO, nos EUA. E Obama mantém-se passivo e deixa aumentar a enorme clivagem, que só cresce, nos EUA, na distribuição da riqueza.

Putin pode dizer e comprovar que não enriqueceu no capitalismo clientelista de empresários-banqueiros-cupinchas e, na verdade, aceito sem dificuldade seu argumento de que suas políticas são motivadas por considerações geopolíticas e geoestratégicas, não por o que deseje um ou outro banqueiro ou oligarca.

Os EUA e Obama podem dizer o mesmo? Como poderiam, se não fazem outra coisa além de obrar servilmente a favor dos interesses de empresários e empresas norte-americanas por todo o planeta, armados até os dentes e matando sem parar, especialmente, hoje, no Oriente Médio?

O negócio das sanções chega a ser engraçado: folha de parreira que nem esconde o plano ambicioso dos EUA para conter, isolar e enfraquecer a Rússia – na sequência, como já disse, atacarão a China – com os EUA cada vez mais desesperados para recuperarem o trono na estrutura global.   

Com a ascensão de Rússia e China, os EUA que tratem de aprender a partilhar o poder. Será isso, ou o colapso.
__________________

[*] Norman Pollack é o autor de The Populist Response to Industrial America  (Harvard) e The Just Polity (Illinois), Guggenheim Fellow e professor emérito de História na Michigan State University. Seu último livro, Eichmann on the Potomac, foi publicado por CounterPunch/AK Press, no outono de 2013.

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