quinta-feira, 17 de julho de 2014

Conflicts Fórum, Comentário Semanal − ISIS: Retorno a estruturas árabes pré-islâmicas

15/7/2014, [*] Conflict Forum
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

Mundo muçulmano - xiitas e sunitas
(clique na imagem para aumentar)
O sunismo sempre teve um vínculo especial com o estado. (Não em termos de Westphalia, com suas identidades nacionais homogêneas, mas relação mais complexa, com diferentes etnias, seitas e tribos reunidas sob uma única autoridade forte). Os sunitas sentem-se de algum modo intimamente conectados ao estado, de modo diferente dos demais. O que se quer dizer com isso é que os sunitas sentem que fundaram o estado, que de algum modo são “o estado” e são “do estado”. Concomitantemente, os xiitas são frequentemente chamados, pejorativamente (quase sempre por sunitas), de “os rejeicionistas” (do estado “dos sunitas”), e são vistos como excessivamente ligados às próprias noções de justiça, para fazerem adaptações confiáveis, na pragmática arte de construir estados.

Em resumo, os sunitas veem os xiitas como potencialmente naturalmente subversivos, e, até, revolucionários. E os xiitas veem os sunitas como excessivamente pragmáticos no exercício do poder, a ponto de perderem de vista o componente espiritual radical da mensagem do Profeta.

Mas no período recente, os estados sunitas não têm dado muito certo. Os chamados “modelos” de governança para os sunitas, ou implodiram ou estão largamente desacreditados. A “esfera” sunita está visivelmente em processo de degradação. E, dado que a “identidade” sunita está tão intimamente ligada à noção de um estado poderoso (o ideal é os primeiros anos da expansão islâmica, depois da morte do Profeta), o processo de degradação surge acompanhado por uma fragmentação psicológica e profundo senso de que o “modo de ser” sunita – seus “valores culturais” estão sendo de algum modo ignorados e atropelados.

E tudo isso vem à luz precisamente num momento de renovação e de nova energia no âmbito dos xiitas, o que só faz aumentar ainda mais o desconforto dos sunitas. Não é surpresa portanto que estejamos testemunhando ressentimentos profundos na Sunnah, de desconstituição e perda de posições de liderança “mantidas por direito”; sentimentos de frustração (pelo que ressentem como redução de status dos sunitas no comando do futuro do Islã e da região – e ressentimento pelo que os sunitas veem como marginalização deles, na discussão das questões.

ISIS no Iraque
Grande parte disso é mais imaginado, que real – o que em nada reduz significação psicológica e política. Mas, sim, os modelos de “estado” sunita estão em crise: e, sim, os sunitas foram marginalizados no Iraque; mas na região em geral (incluindo a Síria), não é correto sugerir que os sunitas seriam de algum modo “vítimas”, ameaçados de serem varridos pela maré cultural “estrangeira” que emana do Irã. Os sunitas são a maioria (mas não na extensão frequentemente sugerida para toda a região), e continuam a controlar predominantemente as alavancas de controle político e econômico. Mas a região está se reequilibrando; e isso, compreensivelmente, é fator desestabilizante e causa do torvelinho.

Mais significativo politicamente é que Europa e EUA tenham absorvido de modo tão pouco crítico a narrativa dos sunitas “vítimas”, que o dito “ocidente” tenha ficado confuso e passivo ante a ascensão do ISIS. Sim, o Islã xiita está conhecendo um renascimento, mas é raciocínio simplório atribuir a perturbação psicológica dos sunitas simplesmente ao ressurgimento dos xiitas. Os fracassos dentro do próprio Islã sunita têm também muito a ver com isso – como também tem a crescente autoconfiança do Irã. Em resumo, os sunitas têm, sim, de responder à própria circunstância deles: não é possível atribuir tudo a forças externas.

Afinal de contas, os governantes mais desacreditados nos recentes levantes árabes foram governantes sunitas. No coração daqueles levantes estava o rompimento do contrato social dos sunitas, não alguma “maquinação” que emanasse do Irã. Apesar disso, essa visão simplória (de que a perturbação que os sunitas estão sofrendo seria causada basicamente pelo “ativismo” dos xiitas e do Irã) tornou-se consenso estabelecido, definitivo, para europeus e para os EUA. Europeus e norte-americanos estão (e tinham de estar), é claro, sinceramente desentendidos e perturbados pelo ISIS e a inesperada tomada de porções de território do Iraque, mas também foram colhidos de surpresa pelo apoio de alguns sunitas populares e do Golfo ao ISIS: como observou um importante comentarista político, funcionários dos EUA percebem que o ISIS obtém apoio significativo da população sunita, o que leva à percepção de que os EUA deveriam tomar medidas antissunitas [se interviessem para apoiar o Iraque]”. De fato, um ex-embaixador do Qatar nos EUA alertou o governo Obama contra qualquer intervenção militar a favor de Maliki: seria vista como ato de “guerra” por toda a comunidade dos árabes sunitas, disse ele.

Nouri al-Maliki, Primeiro-Ministro do Iraque
Essa aceitação da narrativa sunita (a ideia descabida e sem lógica de que a ascensão do ISIS seria atribuível ao presidente Assad e ao sectarismo do primeiro-ministro Maliki) paralisou as reações iniciais do ocidente ao pedido de ajuda feito pelo Iraque, e deixou a política externa ocidental em estado de contradição explícita fundamental – com os EUA aumentando o apoio financeiro à insurgência síria (campo fértil do qual, aí sim, o ISIS emergiu e foi armado), enquanto, simultaneamente, os EUA hesitavam em oferecer ajuda crucialmente necessária ao governo do Iraque para que derrotasse o ISIS.

Já escrevemos sobre a natureza radical do ISIS e a significação verdadeiramente revolucionária de seu historicismo revisionista, mas o que é mais importante para compreender a significação do ISIS é essa mudança paradigmática da ênfase, das ações do próprio Profeta e de Medina, como modelo societal – para privilegiar a conduta do primeiro e segundo Califas (Abu Bakr, cujo nome o novo “Califa” assumiu como “nome de guerra”; e o segundo Califa, Umar). Essa mudança diz muito sobre essa nova orientação de pensamento, e por que está tendo apelo tão amplo, cobrindo todo o espectro, de jovens muçulmanos sunitas irados, até líderes do Golfo.

Num sentido, o pensamento do ISIS parece oferecer a jovens muçulmanos uma solução romântica, “heróica”, à crise sunita de modelos de governança desacreditados (no Boston Globe, 28/6/2014, lê-se coluna cheia de elogios a um novo modelo de cidadania que o ISIS estaria criando, e praticamente sem nenhuma referência ou crítica ao apoio saudita e do Golfo ao ISIS e a jihadistas radicais).

Abu Bakr e Umar, sim, à maneira deles, consolidaram o “estado”. Fizeram guerras contra apóstatas e inimigos de Deus, e não hesitaram em usar “terrível violência”, queimando pessoas vivas e executando inimigos por degolamento. (Vê-se a mesma abordagem no Iraque hoje).

Mas Abu Bakr e Umar são também conhecidos por mitigar a espiritualidade e a radicalidade da mensagem do Profeta, cercando-as nos, e apresentando-as conforme aos hábitos e práticas culturais árabes do período. Não só adotaram o estilo de guerra tradicional – um tradicional estilo árabe bélico – mas também o patriarcado tradicional, com primado do homem, foram reinseridos nas interpretações e comentários às falas e ações do Profeta. As mensagens do Profeta sobre relações sociais foram “temperadas” por uma recuperação da cultura árabe tradicional (foi o que fez Umar, principalmente, como Califa).

Abu Bakr al-Baghdadi
Assim, se se lê a literatura do ISIS, a ênfase em Abu Bakr e Umar sugere nem tanto um retorno ao modelo de Medina (ao qual aspira a Fraternidade Muçulmana, como a maioria dos salafistas); mas, mais, a um modelo do Estado Islâmico que é pré-islâmico, nas principais características. A noção da Constituição de Medina como modelo de sociedade política (redigida durante a estadia do Profeta em Medina) não aparece na narrativa do ISIS, como tampouco aparece ali a noção, cara à Fraternidade Muçulmana, de que as primeiras Comunidades basearam-se na soberania dos povos. A reorientação do ISIS representa mudança dramática e significativa no islamismo dos sunitas, que se move na direção de estruturas pré-islâmicas de estado e de sociedade.

Essencialmente, o ISIS está empurrando o paradigma, do período Profético (a era de Maomé), para o período pós-Profético (i.e. para o período do Império Islâmico), caracterizado mais pela eficácia militar como seu ethos regente. Nesse espírito foi que os dois primeiros Califas reinstauraram muitos dos modos pré-islâmicos de governar e de guerrear.

O que se tem então é o ISIS a apresentar aos jovens muçulmanos o governo pré-islâmico como “solução” para o sofrimento contemporâneo dos sunitas. É o mesmo que dizer que a “solução” do ISIS é o Islã implantando no modelo de estado árabe pré-islâmico tradicional – com Abu Bakr e Umar na função de protagonistas modelos.

Esse é modelo autocrático e que exige completa submissão e obediência sob pena de morte aos que se rebelem. Sob esse aspecto (a insistência no quesito autoridade), não é difícil entender por que os autocratas do Golfo são seduzidos pelo “modelo” – apesar de o ISIS ter rejeitado a alegada legitimidade daqueles monarcas. O romantismo de “lutar pelo Islã” como fizeram os primeiros “mestres combatentes”, e a irrestrita entrega exigida a um “ideal”, sempre atrairão os mais jovens, que se veem afinal conseguindo livrar-se e superar a corrupção e a putrefação de uma sociedade degradada.

Em resumo, o ISIS é uma manifestação mais de fragmentação e de esgotamento psicológico, que algum tipo de real solução política. Pode ressoar na psique contemporânea de muitos sunitas, por enquanto; mas é difícil ver os luminares da inteligência sunita suportando por muito tempo a vida nesse novo califado. Ele é, em todos os casos, um modelo no qual a eficácia se sobrepõe à moralidade, e permanece com a mesma falha essencial que assombrava o Islã nos primeiros tempos: a opacidade na metodologia para escolher quem se torna Califa. Se a eficácia é o critério decisivo, então terá de ser julgado por esse padrão (e muito provavelmente não corresponderá integralmente).

Abdulrahman Al-Rashed
A resposta saudita (exposta num editorial assinado por colunista top da empresa-imprensa do establishment saudita, Abdulrahman Al-Rashed, presidente da TV Al-Arabiya) foi que a ameaça imposta pelo ISIS tem de ser corretamente compreendida – porque há uma “genuína” [quer dizer, sunita] revolução contra um governo sectário repugnante tanto na Síria como no Iraque. O ISIS foi contagiado por essa “ira sunita” e tornou-se “a estrela do show para sunitas por todo o mundo” (...). Mas “não fosse por Assad e Maliki, o ISIS e a Frente al-Nusra nunca teriam existido”. (Esse é o refrão-meme saudita, a “narrativa” que foi quase universalmente acolhida e reproduzida por toda a grande imprensa-empresa ocidental).

A Arábia Saudita está preparada, Abdulrahman sugere, para o confronto contra o ISIS, mas só e somente só “se se impuser alguma solução política contra Síria e Iraque” – mudança de regime que leve a mobilização mais ampla de sunitas. As políticas sectárias de Assad e Maliki “geraram esse caos. Portanto, a solução está em governos centrais fortes em Bagdá e Damasco, com apoio dos EUA, do ocidente e regional”.  

Mas sejamos claros: quando Abdulrahman insiste que Nouri al-Maliki “tem de sair”, não está propondo que outro xiita assuma seu posto – como aconteceria no atual quadro político, no qual os xiitas chegam a 60-65% do eleitorado. Está clamando por derrubada do sistema – com um “homem-forte” sunita (ou um Iyad Alawi aprovado por Riad) posto no poder (à moda Sisi). O mesmo, para a Síria. É o chamamento pelo expurgo do Oriente Médio.

É difícil ver essa grandiosa demanda saudita levando os demandantes a lugar algum. Com o passar do tempo, o ISIS perderá o fulgor; os xiitas do Iraque estão-se mobilizando; e se reorganizarão, eles mesmos, para iniciar a tarefa de derrotar o ISIS. Não será rápido, mas já começou.

O que temos aqui? A Arábia Saudita realmente acredita que o modelo ISIS seja sustentável além do pico de adrenalina das vitórias militares iniciais do ISIS? A Síria aí está para mostrar que não. E se o ISIS não é senão genuína revolução contra governo sectário repugnante, como Abdulrahman sugere, então por que a Arábia Saudita está reunindo 30 mil soldados na fronteira com o Iraque? Bem visivelmente os sauditas estão mais nervosos do que estão admitindo publicamente.

Arábia Saudita - Família al-Saud
A família al-Saud está em conflito e dividida. O que essa validação (qualificada) do ISIS, por agente bem posicionado, sugere é, isso sim, que a Arábia Saudita está sem leme, à deriva – e está mostrando-se incapaz de “desfazer” velhas políticas – mesmo quando elas já ameaçam diretamente o bem-estar do reino. “Assad tem de sair”; “Maliki tem de sair” e o ISIS encaixam-se como luva velha: política no piloto automático, e ninguém – pelo que se vê – tem os meios para mudar coisa alguma, pelo menos por enquanto.

Mas a situação se encaminha para futuro muito incerto. Maliki pode não ser muito admirado, e está sendo pesadamente criticado pelos fracassos do exército em Mosul, mas, sem dúvida, é mestre na pilotagem da política iraquiana. Até aqui, está sobrevivendo. Verdade é que a própria tentativa de derrubá-lo que os EUA fizeram pode ter tido efeito inverso – atraindo a rápida ajuda militar de russos e iranianos – interessados em bloquear a tentativa dos EUA para chantagear o parlamento iraquiano (os EUA condicionaram a ajuda militar contra o ISIS, à derrubada de Maliki). “Os sapatos estão nos pés trocados: se os EUA não se envolverem militarmente, ninguém sentirá a falta deles”, como escreveu um comentarista.

Irã e Rússia estão operando em estreita coordenação, e o Irã define a incursão do ISIS como a entrada da Arábia Saudita na guerra regional contra o país. Políticos iranianos apontam o dedo responsabilizando a Arábia Saudita pelo ISIS e (como só fazem muito raramente) bem explicitamente: “A Arábia Saudita é patrocinadora-apoiadora espiritual, material e ideológica do ISIS, e o rei saudita nomeou o ex-chefe de inteligência do país [príncipe Bandar], para a missão especial de apoiar o ISIS”. (Mohammad Hassan Asafari, membro destacado do Parlamento iraniano). E a imprensa conservadora iraniana é ainda mais dura: “A segunda maior aposta dos EUA no Iraque já começa a cheirar a derrota. Enquanto o exército popular do Iraque e as forças de voluntários vão limpando a cidade de Tikrit (...) os norte-americanos não se dispõem a ajudar o governo legalmente eleito do Iraque a derrotar terroristas; até tomaram posições que garantem apoio ao ISIS. Em vez de desacreditar os terroristas, (...) funcionários dos EUA acusaram [Maliki] de monopólio e de guerra sectária!” (Keyhan, 30/6/2014).

A ambivalência de EUA e Europa (o ocidente dançando pela música do Golfo, de que o ISIS seria apenas um “fato” com o qual o ocidente tem de reconciliar-se, não uma frente terrorista dedicada a assassinar todos os “apóstatas”) – está gerando suspeitas crescentes e reação hostil entre os mais altos políticos iranianos. Estamos nos aproximando do 20 de julho/2014, data limite para as negociações nucleares. Difícil ver como esse clima deixará de fortalecer ainda mais os iranianos, determinados a defender seus interesses na última rodada das negociações do P5+1, antes de que se esgote o prazo. Por enquanto, tampouco há sinal algum de “entendimentoentre Arábia Saudita e Irã, que estabilizaria a região: só se veem sinais de movimento na direção contrária.


[*] Conflicts Fórum visa mudar a opinião ocidental em direção a uma compreensão mais profunda, menos rígida, linear e compartimentada do Islã e do Oriente Médio. Faz isso por olhar para as causas por trás de narrativas contrastantes: observando como as estruturas de linguagem e interpretações que são projetadas para eventos de um modelo de expectativas anteriores discretamente determinam a forma como pensamos - atravessando as pré-suposições, premissas ocultas e até mesmo metafísicas enterradas que se escondem por trás de certas narrativas, desafiando interpretações ocidentais de “extremismo” e as políticas resultantes; e por trabalhar com grupos políticos, movimentos e estados para abrir um novo pensamento sobre os potenciais políticos no mundo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Registre seus comentários com seu nome ou apelido. Não utilize o anonimato. Não serão permitidos comentários com "links" ou que contenham o símbolo @.