segunda-feira, 30 de junho de 2014

E o novo califado unirá contra ele todo o Oriente Médio?

29/6/2014, [*] Moon of Alabama
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

Bandeira do novo Califado
Já não existe nem ISIS nem ISIL jihadista na Síria e no Iraque. O pessoal que lidera a coisa declarou hoje, no altamente simbólico início do Ramadã, que eles são um novo califado:

Assim sendo, tendo o Conselho Consultivo, a Shūrā do Estado Islâmico, estudado a questão, depois que o Estado Islâmico – pela graça de Alá – ganhou os atributos necessários para o khilāfah [califado], os muçulmanos estão em pecado se não tentam estabelecer-se. À luz do fato de que o Estado Islâmico não tem impedimento legal ou desculpa que justifique adiar ou descuidar do estabelecimento do khilāfah sem cair em pecado, o Estado Islâmico – representado por ahlul-halli-al-‘aqd (seu povo de autoridade), que consiste de seus anciãos, líderes e o Conselho Shūrā – resolve anunciar o estabelecimento do khilāfah Islâmico, a criação de um califado para os muçulmanos e o juramento de fidelidade ao shaykh (xeique), ao mujāhid, o professor que pratica o que prega, o zelador, o líder, o guerreiro, o ressuscitador, descendente da família do Profeta, o escravo de Alá, da linhagem de Ibrāhīm Ibn ‘Awwād Ibn Ibrāhīm Ibn ‘Alī Ibn Muhammad al-Badrīal-Hāshimī al-Husaynī al-Qurashī, de Samarra por nascimento e criação, de Bagdá [al-Baghdādī] por residência e formação. E ele aceitou o bay’ah [juramento de fidelidade].

Assim sendo, é ele imã e califa de todos os muçulmanos em todos os lugares. Por isso, a expressão “Iraque e Levante” no nome do Estado Islâmico foi removido de todas as decisões e comunicações oficiais e, a partir da data dessa declaração, o nome é Estado Islâmico.

Esta é a Promessa de Alá [ing. (pdf). This is the Promise of Allah]

Área estimada do Iraque e da Síria que abrange o novo califado (em vermelho) 
O califado, na sua própria autoconcepção, é a única entidade legal que governa sobre todos os muçulmanos.

Com essa declaração, al-Baghdadi também declarou guerra a todos os monarcas e outros governantes no Oriente Médio. O mais provável é que ele ordene jihad de ataque contra todos eles. Agora é possível que todos os países do Golfo que discordam desse novo Estado Islâmico unam-se.

Já há sinais disso. Já circulam notícias de que, ante o perigo, os sauditas até já aceitam deixar lá o primeiro-ministro Maliki do Iraque, para um novo mandato. O que porá os sauditas em oposição a Washington a qual, por estúpido que seja, já “exige” outra vez “mudança de regime” no Iraque.

Será interessante ver a reação da Turquia, que serviu de base de retaguarda logística para o ex-ISIS, hoje ES [Estado Islâmico; ing. IS  Islamic State]. Erdogan com certeza não se incomodaria por causa de um novo califato, mas com certeza se incomodará se o califa não for ele. Assim sendo... Pode-se – pergunto! – esperar agora uma real resposta unificada, de todos os países do Oriente Médio, contra esse novo perigo?


[*] “Moon of Alabama” é título popular de “Alabama Song” (também conhecida como “Whisky Bar”  ou “Moon over Alabama”) dentre outras formas. Essa canção aparece na peça Hauspostille (1927) de Bertolt Brecht, com música de Kurt Weil; e foi novamente usada pelos dois autores, em 1930, na ópera A Ascensão e a Queda da Cidade de Mahoganny. Nessa utilização, aparece cantada pela personagem Jenny e suas colegas putas no primeiro ato. Apesar de a ópera ter sido escrita em alemão, essa canção sempre aparece cantada em inglês. Foi regravada por vários grandes artistas, dentre os quais David Bowie (1978) e The Doors (1967). A seguir podemos ouvir versão em performance de Tim van Broekhuizen.


Mais uma vitória de Putin − Gasoduto “Ramo Sul” será construído com a Áustria

25/6/2014, [*] Tyler Durden, ZeroHedge
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

Entradas e saídas de gasodutos na Ucrânia
Nunca foi segredo que o prêmio para quem controle a Ucrânia é a posse da vasta infraestrutura do gasoduto que parte da Rússia e chega à Europa. Mas, dado que todo o gás pertence, em primeiro lugar, à [empresa russa] Gazprom, realmente não importa se Kiev tinha posse do gás que enchiam os dutos que levavam o gás para a Europa; nem se, como é hoje o caso, a Ucrânia seria apenas um duto de transferência do gás totalmente russo, entregue a países europeus, sem que gás algum permanecesse na Ucrânia, hoje destroçada pela guerra civil.

Afinal de contas, a Ucrânia absolutamente não consegue mais comprar gás russo, porque não tem crédito nem dinheiro para pagar adiantado; mas, se roubar gás destinado à Alemanha e outros países, a Ucrânia estará simplesmente antagonizando seus novos “melhores amigos” na OTAN, os quais são, todos, clientes da [russa] Gazprom.

Não, o gasoduto que emergiu no papel de estrela principal no conflito na Ucrânia nada tem a ver com a Ucrânia, mas é gasoduto que percorre várias centenas de quilômetros do sul da Ucrânia – o chamado Projeto Ramo Sul (orig. South Stream Project) – que deixa o litoral sul da Crimeia no Mar Negro russo, cruza o Mar Negro e atravessa Bulgária, Sérvia, Hungria, e termina na central de distribuição de gás em Baumgarten, Áustria, de onde partem gasodutos de distribuição para toda a Europa Central, principalmente para a Alemanha.

O projeto, de 2007, foi concebido para não passar pela Ucrânia e servir como alternativa para o agora congelado gasoduto Nabucco apoiado por EUA e Europa; e recolheria o gás do Cáspio (principalmente do Azerbaijão e do Turcomenistão) e atravessaria a Turquia, antes de emergir na Bulgária, de onde seguiria a via europeia do Ramo Sul até a central austríaca de distribuição e dali adiante. Mapa a seguir:

Oleogasodutos que abastecem a Europa
(clique na imagem para aumentar)

Não surpreendentemente, foi a central de trânsito do Ramo Sul, a Bulgária, que começou a criar problemas para Putin, apesar de Putin ter conseguido “atropelar” o projeto Nabucco (quando, em junho de 2013, o presidente da gigante austríaca de energia OMV, Gerhard Roiss, anunciou que o projeto estava “superado”, depois que o consórcio turco Shah Deniz preferiu o Gasoduto Trans-Adriático (mapa no fim do parágrafo) ao Nabucco, como rota de exportação para suprir a Itália, em vez da Áustria).

Oleogasoduto Trans Adriático
(clique na imagem para aumentar)

Lembrem que aconteceu em janeiro, quatro meses antes de o governo ucraniano ser derrubado: o primeiro-ministro da Bulgária – país que mantém relação especialíssima de amor & ódio com a Rússia, e relação na qual os EUA adorariam injetar mais ódio – Plamen Oresharski, surpreendentemente ordenou a suspensão dos trabalhos no gasoduto Ramo Sul, por recomendação da união europeia. A decisão foi anunciada depois de conversações entre Oresharski e senadores norte-americanos.

Há agora um pedido, da Comissão Europeia, depois do qual suspendemos os trabalhos que estavam em andamento. Eu mesmo ordenei a suspensão “Outros procedimentos serão decididos depois de novas consultas com Bruxelas – Oresharski disse a jornalistas, depois de conversar com John McCain, Chris Murphy e Ron Johnson durante visita que fizeram à Bulgária.

Naquela ocasião, McCain, comentando a situação, disse que “a Bulgária deve resolver os problemas do [gasoduto] Ramo Sul, em colaboração com colegas europeus”. E acrescentou que na atual situação, queriam menos envolvimento russo.

Os EUA decidiram que querem pôr-se em posição de excluir todos os que querem excluir países nos quais os EUA tenham algum interesse; não há absolutamente nenhuma racionalidade econômica. Os europeus são muito pragmáticos, estão procurando fontes de energia – recursos de energia limpa, que a Rússia pode fornecer. Mas o problema com o [gasoduto] Ramo Sul é que ele não se encaixa na política da situação, disse Ben Aris, editor de Business New Europa, à RT.

Foi também em janeiro, quando autoridades da União Europeia (UE) ordenaram à Bulgária que suspendesse a construção de sua conexão com o gasoduto, planejada para transportar gás natural russo através do Mar Negro até a Bulgária e dali em diante para o leste da Europa. Bruxelas quer o projeto congelado, à espera de uma decisão sobre se violaria as regras sobre concorrência na UE para um único mercado de energia. Entende que o Ramo Sul não respeita as regras que proíbem produtores de controlarem também o acesso aos dutos.

Aí, claro, está a questão, porque, como a Europa tantas vezes teve de aprender pela via difícil, sua super dependência da Rússia para a produção e para o trânsito do gás implica que não tem qualquer meio para pressionar o Kremlin – o que os recentes eventos na Ucrânia só fizeram confirmar.

Projeto Ramo Sul (South Stream) em azul
Projeto (falido) Nabucco (em vermelho)
Agora, Putin apenas cimentou a realidade que não tem tanto a ver com quem controla o trânsito da energia pelos dutos, mas com quem controla a Europa: EUA ou Rússia. “Os EUA opõem-se ao projeto do gasoduto russo Ramo Sul, porque querem fornecer gás à Europa, como únicos fornecedores, eles mesmos”, disse o Presidente Putin, na 3ª-feira (24/6/2014). Chamou a situação de “mera disputa concorrencial”.

[Os EUA] têm feito de tudo para quebrar esse contrato. Nada há aqui de excepcional. É mera disputa concorrencial. Nessa disputa, usam-se também instrumentos políticos – disse o presidente da Rússia, depois de conversar com presidente da Áustria, Heinz Fischer, em Viena.

Estamos em conversações com nossos parceiros num contrato comercial, não com estranhos ou terceiros. Nossos amigos dos EUA estão infelizes por causa do Ramo Sul... Bem... Também ficaram infelizes em 1962, quando o projeto “gás em troca de gasodutos”, com a Alemanha, estava começando. Agora, estão outra vez infelizes. Mas nada mudou, exceto que os EUA querem fornecer gás à Europa, como únicos fornecedores, eles mesmos. Se acontecesse como os EUA prefeririam, o gás norte-americano não seria mais barato que o gás russo – gás de gasoduto é sempre mais barato que gás liquefeito – disse Putin.

O que, por sua vez, nos leva ao auge da disputa política em torno do Ramo Sul, quando, hoje cedo, em mais um tento a favor do Kremlin, a Áustria, um dos países mais estáveis e respeitados na Europa, com crédito padrão AAA, deu a aprovação final ao projeto do tal “controverso” projeto de gasoduto russo. A aprovação é claro sinal de desafio à União Europeia. É, simultaneamente, aceno de boas vindas ao presidente Putin da Rússia em sua chegada, agora, à Áustria – país neutro e cliente consumidor, há muito tempo, da energia que Moscou lhe fornece.

Como a Agência Reuters noticiou:

(...) os principais executivos da Gazprom russa e da OMV austríaca selaram o acordo para construir um trecho do gasoduto Ramo Sul até a Áustria, país que firmemente defendeu o projeto ante a oposição que lhe fez a Comissão Europeia.

Oleogasodutos "Santo Graal" - Rússia e China
(clique na imagem para aumentar)
Em outras palavras, apenas um mês depois de Putin ter assinado o contrato “Santo Graal” com Pequim,  ele não apenas conseguiu formalizar essa conquista russa em pleno território europeu, com mais um gasoduto – e gasoduto que absolutamente nada tem a ver com a Ucrânia (o que é importante por várias razões, mas, sobretudo, porque é o que se pode chamar de um “Plano B”), mas também obteve massiva vitória política, conseguindo cavar uma fissura no coração da Eurozona, com a Áustria desafiando abertamente os seus pares europeus e se posicionando ao lado de Putin.

Desnecessário dizer, a Comissão Europeia está furiosíssima, aos gritos de que o Ramo Sul descumpriria normas e leis que protegem a livre concorrência na UE, porque não garantiria acesso também a terceiros. O gasoduto Ramo Sul, como dito acima, também contraria a política da UE de diversificar fontes, para reduzir o muito que a Europa depende da Rússia.

Mas o presidente da OMV, Gerhard Roiss, em surpreendente momento de realpolitik clarividente, só fez, de fato, reconhecer que, no que tenha a ver com o futuro da energia na Europa, Putin é mais importante que Mario Draghi.

Numa conferência de imprensa depois de assinar o contrato, Roiss disse:

A Europa precisa do gás russo. A Europa mais precisará de gás russo no futuro, porque a produção de gás na Europa já está caindo (...) Creio que a União Europeia também sabe disso.

É claro que sabem disso. A questão é que não querem admitir, porque a admissão sela o destino da Europa como estado-vassalo da Rússia, em matéria de energia. Como sonho “cheirado” em “gases” de má qualidade (perdoem o trocadilho), a alternativa seria a Europa receber gás natural liquefeito dos EUA.

Sobre isso, ninguém menos que o presidente da Cheniere Energy, Charif Souki disse em abril, quando perguntado se o terminal da Cheniere “conseguiria salvar” os países do leste europeu da dependência da Rússia, que:  

(...) é lisonjeiro que alguém suponha que sejamos capazes de tal coisa, mas é total loucura. É tal nonsense, que não acredito que alguém realmente acredite nisso.  

É claro que não acreditam, mas tudo é política. E na política sempre se trata de adquirir mais poder, ou de se submeter ao poder de outros. Hoje a Áustria adquiriu mais poder; ao desertar do campo de seus pares europeus pode ter iniciado um processo que leve ao racha da própria Eurozona; e com Vladimir Putin a manobrar o cordame.


O projeto pôs a indústria europeia contra os políticos da UE e dividiu os apoiadores do Ramo Sul gasoduto que se estende da Alemanha por toda a Europa Central e Sudeste da Europa pesadamente dependentes da Rússia dos demais estados-membros da UE.

Em visita de trabalho de um dia a Viena, que mereceu críticas na UE, Putin falou dos laços comerciais muito estreitos que ligam a Rússia à Áustria, o primeiro país europeu que assinou, em 1968, acordos de longo termo de fornecimento de gás com Moscou.

Disse que a Áustria é parceiro “importante e confiável” para a Rússia, que é o terceiro maior parceiro comercial da Áustria fora da UE depois de EUA e Suíça.

O presidente austríaco Heinz Fischer também defendeu o projeto do [gasoduto] Ramo Sul: “Ninguém conseguiu me explicar – nem consigo explicar ao povo austríaco – por que um gasoduto que corta a União Europeia e vários países-membros da OTAN deveria ser proibido de andar por 50 km em território austríaco”.

Ah! Para registrar: o presidente da Áustria disse também que é “contra sanções contra Moscou” (para o caso de a Europa tentar aprovar por unanimidade sanções contra a Rússia a propósito da Ucrânia).

E por falar de Ucrânia, as coisas ficaram realmente bizarras em Viena, quando o presidente da Câmara de Comércio da Áustria relembrou Putin de que parte da Ucrânia pertencia à Áustria em 1914. Ao que Putin respondeu de bate-pronto “Mas... O que você está querendo dizer? Diga logo: qual é sua proposta?” – o que levou às gargalhadas a elite comercial presente. Mais um pouco, sacomé, Putin estará contando piadas, na Europa, sobre a anexação da Hungria.

E aí está, para que todos vejam, no caso de alguém ainda não ter percebido: o que está acontecendo na Ucrânia não passa de piada para os corretores do poder na Europa, a “elite comercial”. A decisão já está tomada há muito tempo: Putin não encontrará nenhuma objeção vinda dessa dita “elite”, faça o que fizer em relação ao tal país irrelevante e devastado pela guerra. Exceto, claro, as objeções “televisivas” da CIA e dos EUA, no teatrinho montado para consumo do mínimo denominador comum.

50% do projeto conjunto Ramo Sul-Áustria pertencerá à Gazprom – maior produtora russa de gás – e 50% pertencerá ao Grupo OMV da Áustria, maior empresa austríaca de petróleo e gás.

O presidente da Áustria disse que, se alguém criticar a Áustria, terá também de criticar outros países-membros [da UE] e suas empresas.

Espero que nunca chegue o momento em que um país como a Áustria não possa manter conversações com país-parceiro que tenha intensas relações conosco e não esteja em posição de negociar com a EU – disse o presidente austríaco.

Sabemos que diálogo desse tipo não contradiz qualquer decisão da UE.

Quis dizer com isso que ninguém, na Europa, pode meter-se a dizer a Putin o que fazer.

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Alexei Miller (Gazprom) e Gerhard Roiss (OMV) (E) assinam contrato de construção 
do Projeto Ramo Sul (South Stream) em 24/6/2014
Quanto às questões logísticas do gasoduto, agora que o acordo já está assinado, serão resolvidas a seu tempo: o presidente da Gazprom, Alexei Miller disse que está em contato semanal, quando não diário, com o Comissário Europeu de Energia, Guenther Oettinger, cuidando da aprovação do projeto do Ramo Sul.

Resolvemos os problemas à medida que surgem; e agora o problema de construir o gasoduto está a um passo de ser solucionado – disse Miller.

O acordo do gasoduto não trata da questão do acesso de terceiros, o que a lei da União Europeia exige, para impedir que o proprietário de uma fonte de energia monopolize seus canais de distribuição. Roiss, da OMV, disse que a questão tem de ser negociada com Bruxelas. Roiss disse que:

(...) a parte austríaca do gasoduto, planejada para ser construída em 2016 e começar a entregar gás no início de 2017, será construída em perfeito acordo com a lei europeia. (...)

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Obviamente... Putin quer dividir a União Europeia. Nada de novo. É o que os russos sempre fazem, quando estão encurralados – disse o ministro de Relações Exteriores da Suécia Carl Bildt em entrevista à televisão, na 2ª-feira (23/6/2014).

Bem, bem, Mr. Bildt... a Rússia ainda consegue semear muita discórdia na União Europeia, é claro, se o país mais estável do bloco acaba de alinhar-se ao lado de Putin e diz a todos os próprios “parceiros” europeus, Merkel e Cameron incluídos, um grande “fodam-se”. Quanto à sua avaliação completamente errada de quem está “encurralado”, deixemos-prá-lá: afinal, como outro político europeu de destaque “no bloco”, Jean-Claude Juncker, já nos explicou, quando a coisa fica realmente séria “no bloco”, “o bloco” tem de mentir.
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[*] Tyler Durden é o apelido de numerosos blogueiros que comentam no Zero Hedge. O nome foi copiado de personagem do romance de Chuck Palahniuk (depois filme) Fight Club (Clube de Luta).

Conflicts Fórum: Comentário semanal de 14 a 21/6/2014

28/6/2014, [*] Conflicts Forum
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

O Novo Califato e sua intersecção com a Geopolítica do Oriente Médio

Iraque - Grupos étnicos-religiosos
Como ler os eventos no Iraque? Agora afinal temos alguns “pontos de ancoragem” de compreensão nos quais nos apoiar, suficientemente “firmes” e que parecem lançar alguma luz sobre os eventos recentes. Mas a verdade é que – mesmo para os que vivem cá na região – ainda há mais perguntas, que respostas. E por que as coisas estão assim? Desconfiamos, considerando a própria opacidade das motivações que movimentam os eventos (ruidoso salto do DAASH ou ISIS para dentro do Iraque), estamos ante uma complexa interpenetração de psicologia religiosa de raízes profundas (o que é mais que mero sectarismo) com fatores de geopolítica. Se se examina esse quadro exclusivamente mediante a ótica de considerações geoestratégicas, há excesso de enigmas e quebra-cabeças. Mas se se procura ler o mesmo quadro, no contexto de uma psicologia religiosa (uma psicologia mediante a qual os mesmos eventos estão recebendo significações a eles atribuídas por membros do DAASH e por os muitos simpatizantes sunitas deles), então as duas esferas – a geoestratégica e a psicológica – podem se encontrar e cruzam-se.

Que pontos de ancoragem “firmes” são esses? O grupo DAASH “caminhou para dentro de Mosul” sem encontrar resistência alguma. Ao contrário, a tomada da cidade foi claramente facilitada com antecedência por grupos da sociedade iraquiana (inicialmente não jihadistas), a saber: ex-oficiais militares do exército desmobilizado de Sadam Hussein – alguns dos quais eram, ou são, do Partido Ba’ath. A tomada sem derramamento de sangue de uma cidade de 2 milhões de habitantes, por um grupo de 1.300 homens também contou com certo grau de aquiescência de membros do atual exército do Iraque.

Em resumo, a tomada de Mosul foi claramente preparada com antecedência; e não há dúvida de que foi fertilizada com quantias substanciais de dinheiro (cuja fonte original permanece ignorada).

ISIS/ISIL/DAASH ocupa Mosul
Em segundo lugar, o estabelecimento desse “Califato” do DAASH recebeu apoio de muitos sunitas no Iraque e em outros pontos, sunitas cuja história pregressa poderia levar a supor que eles temeriam regime desse tipo. O que, afinal, ba’athistas seculares e ex-militares com formação e treinamento profissionais poderiam ter em comum com a intolerância violenta do DAASH e a insistência com que o grupo exige submissão ampla e irrestrita ao seu domínio? Será que não sabem da amarga experiência dos reformistas utópicos urbanos de Allepo, nas mãos dos vingativos revolucionários jihadistas que chegaram?

Seja como for, há fato claro (embora difícil de admitir): muitos sunitas iraquianos (e sunitas em geral) – grupo bem mais amplo do que se poderia definir como “eleitorado” do DAASH – dizem hoje que prefeririam viver a precariedade da vida sob a guilhotina e um regime revolucionário “jacobino”, que sob o governo “xiita” de Maliki. Isso nos diz algo bastante profundo sobre a psicologia daqueles sunitas. (Embora se deva considerar também que muitos sunitas estão fugindo de lá; e que também há sunitas que se opõem ao DAASH).

Em terceiro lugar, a “guerra-relâmpago” [orig. blitzkrieg] contra o Iraque foi muito bem executada (profissionalmente) em termos militares; e é politicamente muito astuta.

O DAASH conseguiu arrancar-se da ignomínia da já inevitável derrota de sua missão “divina” na Síria – com todos os sobretons da história antiga do Islã que aquela derrota – fatalmente implicaria – e saiu-se vitorioso contra a fragilidade, de cristal, do Iraque. O que era derrota iminente foi convertido em gesto de audácia, o qual (até aqui) fez voar em cacos o delicado cristal iraquiano – e expôs cruelmente todos os pontos fracos do estado iraquiano.

A audácia do assalto, e o caminho aberto para que os sunitas imaginem o nascimento de uma esfera sunita (um “paraíso-seguro” num paraestado [orig. statelet] que recobriria Síria e Iraque com certeza tocou numa corda profunda da psique dos sunitas e do Golfo. Um ex-embaixador do Qatar nos EUA alertou o governo Obama contra qualquer intervenção militar a favor de Maliki: segundo ele, seria vista como ato de guerra por toda a comunidade dos sunitas árabes. (Embora não esteja sendo vista como tal pela psicologia sunita síria: encontramos sírios que zombavam do segundo colapso militar dos iraquianos, comparando-o à invencível resistência que os sírios impuseram ao ISIS). 

Norte do Iraque - Petróleo & Gás
É possível atribuir esse repentino entusiasmo pelo DAASH simplesmente a um desejo dos ba’athistas  de vingar-se? Não há dúvidas de que os ba’athistas foram derrubados do poder, foram expurgados politicamente do governo, foram expulsos do exército, foram atacados, primeiro pelos EUA e, depois, pelas milícias do novo governo iraquiano; e também não há dúvidas de que muitos em Mosul, Tikrit e Anbar cultivam profunda antipatia pelo Irã e pelo novo governo, orientado a favor do Irã, em Bagdá – velhas antipatias que tem raízes na Revolução Iraniana. Muitos sunitas iraquianos estão (com razão) ofendidos e furiosos.

Mas só o ba’athismo per se não dá conta de todo esse improvável pacto faustiano entre alguns ba’athistas e o DAASH. O ba’athismo iraquiano foi profundamente esvaziado de conteúdo ideológico; e no início da guerra de 2003 já se provou insuficiente como alguma espécie de “identidade”. A identidade ba’athista tende sempre a dissolver-se em circunstâncias em que as tensões sectárias aumentem; e tende a ganhar potência máxima quando as tensões sectárias adormecem. Quando as tensões sectárias aumentam, a realidade é que elas, com muita facilidade, superam outras identidades. (Não implica dizer que tudo que está acontecendo no Iraque possa ser reduzido a sectarismos. Há política e geoestratégia também envolvidas; mas é a tensão sectária – não alguma ideologia – que está estimulando a atração que está arrastando os ba’athistas na direção desses takfiris do ISIS).

Outro modo de olhar esses eventos é imaginar como apareceriam se considerados sob uma ótica religioso-psicológica. Essa, em todos os casos, pode ter sido a via pela qual os seduzidos pela “guerra-relâmpago” do ISIS parecem estar percebendo a história toda que veem desenrolar-se à sua frente. O chamado “Despertar” foi visto por muitos sunitas como algum renascimento especificamente sunita.

Recrutamento xiita em Bagdá - Exames Médicos
De início, o “Despertar” pareceu oferecer vitórias indiscutivelmente claras. Prometia ser um triunfo da batalha de Badr (quando uma pequena força de 313 seguidores do Profeta, em 624, derrotou um exército de Meca, três vezes maior. Mas depois veio o revide (a atual Síria), ou, para acompanhar a mesma alegoria, a batalha sunita do Uhud (na qual os seguidores do Profeta foram derrotados, em 625, efeito de um contingente chave ter desobedecido às instruções que recebera). Mas depois desse fracasso, que pareceu pôr em risco todo o projeto muçulmano, as forças do Profeta nunca mais perderam sequer uma batalha.

É possível que o DAASH veja a derrota que sofreram na Síria por um prisma similar a esse: como vitória xiita que ameaçaria todo o projeto sunita (sobretudo porque estados-modelo sunitas ruíram nesse período). As primeiras vitórias surpreendentemente fáceis do DAASH no Iraque, portanto, nesse modo de ver, podem ser tomadas como as trombetas que anunciam a próxima derrota de Maliki e do Irã – assim como vieram as vitórias do Profeta, depois do fracasso no Uhud.

Essa mitologia pode ter ecos profundos e fortes nos Estados do Golfo, mas, mais prosaicamente, os sauditas podem bem sentir (em sua batalha contemporânea de “Uhud” que, hoje, é a Síria), que o Irã seguiu a “política do sangue” – como me disse um interlocutor que conhece bem a Arábia Saudita: foi derramado sangue sunita na Síria; e, se se trata de restaurar o “equilíbrio” na região, a política do sangue tem de ser também equilibrada.

Se as únicas ferramentas com que os sunitas podem contar são o ISIS e os restos do antigo exército de Sadam Hussein, que seja. É possível que alguns, no Golfo, vejam tudo isso como meio para trazer de volta um equilíbrio geoestratégico: os protegidos do Irã pagaram com sangue (algumas das fragilidades do Irã foram expostas no Iraque), e emerge algo que se pode ver como território sunita (embora seja o “califato” do ISIS). Alguns líderes no Golfo podem, sim, especular que aí há uma base para interpretar a aproximação dos EUA com o Irã; e pode ser a base de um acordo político entre Arábia Saudita e Irã.

Jovens alistam-se aos milhares nas milícias xiitas
Há algo de realista nisso? Provavelmente, não: a atual ardente paixão dos sunitas do Iraque e do Golfo pelo ISIS pode esfriar de repente, e provar-se volúvel (como se viu acontecer na Síria, quando o ISIS foi “testado” no poder). É improvável que o DAASH venha a “tomar” militarmente o Iraque (só até aqui, suas incursões já uniram contra o inimigo, facções de xiitas iranianos tradicionalmente adversárias), e o novo “califato” encarará hostilidades vindas de todas as suas fronteiras: do exército sírio, na porção síria do “califato”; dos curdos; do Irã, em Diyala; e da maioria dos iraquianos.

Se o Irã fizer seu jogo com máxima cautela – como está fazendo até aqui – mantendo unidas as facções xiitas; cuidando para impedir que os sunitas iraquianos não satisfeitos com o ataque pelo DAASH sejam jogados nos braços do ISIS por efeito da super violência dos xiitas iraquianos; e se Teerã conseguir gerenciar a desconfiança instintiva inata de Maliki, os iranianos muito provavelmente conseguirão evitar o seu próprio “sangramento”, bem longe disso. Mas todos esses planos e cálculos até aqui bem-sucedidos podem ruir por águas (areias) abaixo, no caso de o ISIS atacar com sucesso os santuários [xiitas] em Samarra, Kerballah ou Najaf. Nesse caso, deve-se esperar guerra sectária total, com força máxima.

Claro que é fácil para observadores externos culpar o primeiro-ministro Maliki por todos os padecimentos do Iraque. Mas não foi Maliki quem criou a região autônoma curda, ou quem armou a guerrilha curda Peshmerga; nem foi Maliki quem desmantelou o exército de Sadam Hussein e iniciou a des-ba’athificação ou quem promoveu o expurgo dos sunitas, do poder. É verdade que o primeiro-ministro é neuroticamente desconfiado de conspirações urdidas contra ele – patologia que esclerosou e esterilizou toda a política iraquiana. Mas suas desconfianças e cautelas, por mais que sejam exageradas e politicamente danosas, têm, indiscutivelmente, alguma base na realidade.
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[*] Conflicts Fórum visa mudar a opinião ocidental em direção a uma compreensão mais profunda, menos rígida, linear e compartimentada do Islã e do Oriente Médio. Faz isso por olhar para as causas por trás de narrativas contrastantes: observando como as estruturas de linguagem e interpretações que são projetadas para eventos de um modelo de expectativas anteriores discretamente determinam a forma como pensamos - atravessando as pré-suposições, premissas ocultas e até mesmo metafísicas enterradas que se escondem por trás de certas narrativas, desafiando interpretações ocidentais de “extremismo” e as políticas resultantes; e por trabalhar com grupos políticos, movimentos e estados para abrir um novo pensamento sobre os potenciais políticos no mundo.