quinta-feira, 1 de maio de 2014

Como os EUA inventaram – e perderam – a guerra afegã

30/4/2014, [*] Anand Gopal, TomDispatch
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

Cabul, Praça Malik Ashgar
Era uma manhã típica, em Cabul. A Praça Malik Ashgar fervia de táxis Corolla, jipes verdes da Polícia, minivans barulhentas e motociclistas irritados. Meninos vendiam cartões de telefone e cambistas sacudiam maços de dinheiro para cambiar, todos circulando entre os veículos e a fumaça dos escapamentos. Junto ao portão do Liceu Esteqial, uma das escolas de mais prestígio no país, estudantes chutavam uma bola de futebol. No Ministério da Educação, um antigo prédio de estilo soviético, à frente da escola, uma fila de funcionários saía para a calçada. Eu caminhava cruzando a praça, em direção ao ministério, quando vi o suicida-atirador.

Tinha feições escandinavas. Blue jeans e camiseta branca, carregando uma mochila grande. E pôs-se a atirar indiscriminadamente na direção do prédio do ministério. De onde eu estava, distante cerca de 50 metros, não podia ver a expressão dele, mas não parecia frenético nem em pânico. Procurei cobertura por trás de um táxi estacionado. Foi pouco antes de a polícia aparecer e a praça ficar deserta.

28 pessoas, a maioria civis, morreram nos ataques no Ministério da Educação, Ministério da Justiça e em outros pontos da cidade naquele dia, em 2009. Adiante, autoridades norte-americanas acusaram a Rede Haqqani – grupo nebuloso que operava a partir do Paquistão e que inaugurara a tática de usar vários suicidas-bombas em ataques urbanos que estiveram em todas as manchetes.

Diferente de outros grupos Talibã, a abordagem dos Haqqanis era “global” e sofisticada: recrutavam árabes, paquistaneses e até europeus, influenciados pelo mais radical pensamento islamista. O líder deles, o septuagenário senhor da guerra Jalaluddin Haqqani, era uma espécie de Osama bin Laden e Al Capone reunidos numa só pessoa, tão ferozmente ideológico quanto cruelmente pragmático.

Grupo Talibã
Tanto que, muitos anos depois, seus seguidores continuam a lutar. Mesmo com os EUA retirando a maior parte de seus soldados esse ano, ainda assim 10 mil agentes das Forças Especiais, paramilitares da CIA e seus agregados lá permanecerão, para dar combate aos Haqqanis, aos Talibã e a grupos semelhantes, numa guerra que parece não ter fim. Com inimigos assim tão entrincheirados, o conflito ganhou hoje ares de inevitabilidade. Mas as coisas poderiam ter tomado rumo completamente diferente.

Hoje já é difícil imaginar, mas em meados de 2002 não havia insurgência alguma no Afeganistão: a al-Qaeda fugira do país e os Talibã já não existiam como movimento militar. Jalaluddin Haqqani e outras altas figuras dos Talibã estavam tentando contacto com o outro lado para firmar acordos e depor armas. Mas centenas de milhares de soldados dos EUA já haviam chegado a solo afegão, depois do 11/9/2001, com um único objetivo: fazer guerra ao terror.

Como já escrevi em meu novo livro No Good Men Among the Living: America, the Talibã, and the War Through Afghan Eyes, os EUA fariam aquela guerra em qualquer caso, mesmo que não houvesse inimigo a combater.

Para compreender como a guerra dos EUA no Afeganistão deu tão errado, por tanto tempo, é indispensável conhecer um pouco da história (oculta) daqueles dias.

Nos primeiros anos depois de 2001, movida pela ideia fixa de que o mundo dividia-se rigidamente entre terroristas e não terroristas, Washington aliou-se a senhores da guerra e chefetes de grupos armados afegãos. Os inimigos deles passaram a ser inimigos dos EUA e, com inteligência sempre precária e insuficiente, a luta comum desses todos foi reembalada sob o rótulo de “contraterrorismo”.

A história de Jalaluddin Haqqani, que se converteu, de aliado potencial dos EUA, em seu principal inimigo, é caso paradigmático de como a guerra ao terror gerou os próprios inimigos que ela visava a erradicar.

A campanha para erradicar os Haqqani: 2001

Jalaluddin Haqqani é homem de peso médio, sobrancelhas grossas, nariz fino, sorriso largo e barba longa (vídeo no fim do parágrafo), a qual, se deixada luzir em toda sua glória, quase engole metade do rosto dele.


Na terra onde nasceu, Loya Paktia – a área das três províncias do sudeste do Afeganistão – Jalaluddin Haqqani é herói de guerra, mujahedeen que lutou contra os soviéticos, homem de bravura narrada em histórias que circulam de boca em boca e fama de resistência e de fé quase míticas (uma vez, ferido à bala, recusou analgésicos, porque estava jejuando).

Nos anos finais da Guerra Fria, Jalaluddin Haqqani era adorado pelos norte-americanos – o senador Charlie Wilson, texano, descrevia-o como “a bondade personificada” – e também por Osama bin Laden. Nos anos 1980s, os EUA o abasteceram com dinheiro e armas na batalha contra o governo que os russos apoiavam; e os grupos árabes radicais garantiam fluxo regular de recrutas para reforçar sua formidável força afegã.

Funcionários norte-americanos tinham tudo isso em mente, quando começou a segunda Guerra do Afeganistão, em outubro de 2001. Na esperança de convencer Haqqani (que passara a apoiar os Talibã e a al-Qaeda nos anos pós-soviéticos) a mudar de lado, os EUA não atacaram o território dele em Loya Paktia, o qual foi preservado, no intenso bombardeio que os EUA lançaram contra todo o resto do país. E os Talibã, por sua vez, puseram-no no comando de toda a força militar deles; os dois lados mostraram que viam Jalaluddin Haqqani como o fator capaz de decidir o destino daquela guerra. Haqqani reuniu-se com altos comandantes dos Talibã e com Osama bin Laden e partiu para o Paquistão onde participou de incontáveis reuniões com paquistaneses e com afegãos patrocinados pelos EUA.

Representantes seus também começaram a reunir-se com funcionários norte-americanos em Islamabad, capital do Paquistão, e nos Emirados Árabes Unidos; até que os EUA afinal lhe fizeram uma proposta: ele se entregaria, seria preso, cooperaria com as novas autoridades militares afegãs e, depois de tempo “razoável” de prisão, estaria liberado para partir para onde desejasse ir.

Arsala Rahmani
Para Haqqani, um dos nomes mais conhecidos e respeitados de toda a Loya Paktia, a ideia de ser exposto preso, sentado atrás das grades, era absolutamente inaceitável. Arsala Rahmani, que acompanhava Haqqani naquele período, e seria senador no governo afegão, contou-me:

Ele queria ter posição destacada em Loya Paktia, e a “proposta” deles foi prendê-lo. Haqqani não acreditou no que ouviu dos norte-americanos. Alguém pode imaginar insulto semelhante?

Mas Haqqani limitou-se a não aceitar a “proposta” dos EUA; e deixou a porta aberta para outras negociações. Os EUA contudo já estavam completamente dominados pelo ethos do “ou conosco, ou contra nós”.

Eu, pessoalmente, sempre acreditei que Haqqani era homem com o qual poderíamos ter trabalhado – um ex-funcionário da inteligência dos EUA disse ao jornalista Joby Warrick. – Mas naquele momento ninguém estava olhando além do horizonte, para onde estaríamos dali a cinco anos. Para os diplomatas e políticos dos EUA, a coisa sempre era “fodam-se os barbudos de pele escura”.

No início de novembro, os EUA começaram a bombardear Loya Paktia. Duas noites depois, aviões bombardearam a casa de Haqqani na cidade de Gardez, perto da fronteira do Paquistão. Ele não estava ali, mas seu cunhado e um empregado da família morreram no ataque. Na noite seguinte, aviões dos EUA atacaram uma escola religiosa na vila de Mata China, uma das muitas escolas que Haqqani fizera construir no Afeganistão e no Paquistão, que ofereciam moradia, comida e educação a crianças pobres. Malem Jan, amigo da família Haqqani, foi dos primeiros a chegar ao local.

Nunca vi nada semelhante – disse ele. – Eram muitos corpos. O teto desabara quase inteiro sobre as crianças. Vi uma criança ainda viva, mas foi impossível tirá-la a tempo.

Foram 34 mortos, quase todos crianças.

Haqqani estava em sua residência principal, na vila próxima de Zani Khel, conjunto poeirento de casas de barro que servira como fortaleza anti-soviética.

Ouvimos a explosão, depois o ronco dos aviões no céu – contou um primo, que vivia próximo dali. – Ficamos com muito medo.

Haqqani mudou-se para a casa de Mawlawi Sirajuddin, um chefe local. Pouco depois, a casa foi sacudida, atingida diretamente por ataque aéreo. Haqqani foi ferido, mas conseguiu escalar a pilha de escombros e escapou. Sirajuddin teve menos sorte: naquele ataque perdeu a esposa Fatima, três netos, seis netas e 10 outros parentes.

Pacha Khan Zadran
Na manhã seguinte, Haqqani enviou mensagem a seus subordinados e ex-subcomandantes, aconselhando-os que se rendessem. Mas os EUA já haviam localizado o aliado local em Loya Paktia que procuravam há tempos, Pacha Khan Zadran, suposto senhor-da-guerra e apoiador do rei afegão exilado. De sobrancelha cerrada e vastos bigodes, “PKZ” (como seria conhecido entre os norte-americanos) fazia lembrar um Saddam Hussein afegão.

Agitado, analfabeto e irritadiço, PKZ era, em vários sentido, o oposto de Haqqani, sob cujo comando lutara durante algum tempo na jihad anti-soviéticos. Chegara a Loya Paktia pouco depois de os Talibã terem partido em meados de novembro e imediatamente se autodeclarou governador das três províncias. Em pouco tempo selou laços com os norte-americanos, prometendo entregar-lhes o homem que mais procuravam: Jalaluddin Haqqani.

Na última vez que o vi – disse Malem Jan – ele estava preocupado e agitado. Disse-me apenas que saísse e me salvasse, porque Pacha Khan não nos deixaria vivos.

Numa manhã de novembro, de madrugada, Haqqani cruzou a fronteira para o Paquistão. Nunca mais foi visto em público.

Tentativa de reconciliação voa pelos ares: 2001

Hamid Karzai
Dia 20/12/2001, Hamid Karzai, apoiado pelos EUA, preparava-se para tomar posse como presidente “interino” do Afeganistão. Cerca de 100 dos principais líderes tribais de Loya Paktia partiram em comboio, naquela tarde, rumo a Cabul para congratular-se com Karzai e declarar-lhe lealdade, gesto que muito ajudaria a legitimar seu governo, entre a população da região da fronteira. Do Paquistão, Haqqani enviou membros da família, amigos íntimos e aliados políticos para participarem da comitiva – um ramo de oliveira oferecido ao novo governo.

Eram cerca de 30 carros; o comboio viajou durante horas pelo deserto. No fim da tarde, início da noite, chegou a uma colina, e teve de parar: PKZ e centenas de seus homens, armados, bloqueavam a estrada. Malek Sardar, membro idoso da tribo Haqqani aproximou-se dele. “Ele queria que os idosos o aceitassem como líder de Loya Paktia” – Sardar contou-me. – “Queria nosso sinal de aprovação e que assinássemos, ali, naquele momento”. Sardar prometeu voltar depois da posse, para discutir o assunto, mas PKZ continuou a bloquear a estrada. A caravana fez meia volta e partiu por outra rota, para Cabul.

Pelo telefone por satélite, Sardar telefonou a funcionários na capital afegã e para o consulado dos EUA em Peshawar, Paquistão, procurando ajuda. Mas já era tarde demais: PKZ, que estava em contato direto com figuras chaves do comando militar dos EUA, já lhes passara a informação de que “uma caravana ‘Haqqani-al Qaeda’ está andando na direção de Cabul. Imediatamente depois, entre explosões ensurdecedoras, os carros começaram a explodir em chamas. “Viam-se as luzes no céu, fogo por todos os lados. As pessoas gritavam. E nós corremos” – contou Sardar.

Os EUA bombardearam a caravana. Os ataques repetiram-se durante horas. Como Sardar e outros correram para duas vilas próximas, os aviões rodearam do alto e atacaram as vilas; destruíram quase 20 casas e mataram dúzias de moradores. Ao todo, 50 mortos; vários importantes líderes tribais morreram naquele ataque.

Era final de dezembro, e em Qale Niazi, vila que servira de fortaleza dos Haqqani nos anos 1980s, o bombardeio levara alguns anciãos preocupados, a assumir o controle de um velho arsenal que havia ali.

Não queríamos que Pacha Khan pusesse as mãos naquelas armas, nem que as usasse; aquelas armas tinham de ser entregues ao governo de Karzai. E tomamos conta delas até o governo de Karzai chegar– disse o velho Fazel Muhammad.

Uma noite, Muhammad caminhava para a vila, para uma festa de casamento, quando ouviu os aviões dos EUA. Num segundo, as casas de barro que ele via à sua frente, explodiram. Um segundo ataque acertou o depósito de armas, detonando uma sequência de explosões. O céu clareou no meio da noite, mostrando mulheres e crianças que tentavam fugir. “Então vieram os helicópteros”, contou Muhammad, “e todas aquelas pessoas foram pulverizadas”.

Pela manhã, Fazel Muhammad correu à casa dos parentes, onde acontecera a festa de casamento, mas só encontrou tijolos de barro pulverizados, molduras de retratos retorcidos, panelas e vasilhas deformadas, um sapato de criança, um escalpo com uma trança e vários dedos humanos. Adiante, comissão tribal encarregada de investigar o massacre descobriu que PKZ fornecera à “inteligência” norte-americana a informação de que Qale Niazi seria fortaleza dos Haqqani. Segundo investigação conduzida pela ONU, 52 pessoas morreram naquela festa de casamento: 17 homens, 10 mulheres e 25 crianças.

Reconciliação e chamas: 2002

Em seis semana, a campanha norte-americana para matar Jalaluddin Haqqani resultara em 159 civis mortos, uma vila varrida do mapa, 37 lares destruídos, uma liderança tribal fraturada e a ascensão de um homem, Pacha Khan Zadran, como principal ator em Loya Paktia. Enquanto isso, Haqqani e seus seguidores viviam clandestinos no Paquistão, assistindo enquanto as três províncias onde haviam sido homens ricos e prestigiados lhes escapavam das mãos.

Sepultamento dos mártires de Miram Shah
A vida no Paquistão não melhorou. Enquando Haqqani continuava escondido em Peshawar, sua família retirou-se para um subúrbio de Miram Shah, capital da agência tribal do Waziristão Norte. Os militares paquistaneses, então, estavam trabalhando em íntima associação com Washington para cercar suspeitos de pertencerem à al-Qaeda ou de serem membros dos Talibã. Em dezembro, a casa da família em Miram Shah foi atacada, e Sirajuddin, filho de Jalaluddin Haqqani, foi preso. Semanas depois, invadiram o esconderijo em Peshawar. Jalaluddin Haqqani escapou por um triz.

Nos meses seguintes, equipes de Forças Especiais dos EUA fizeram várias incursões secretas no Paquistão, atacaram casas e escolas Haqqani, levando o terror à comunidade local.

Nunca permitiremos que destruam nossas instituições religiosas, disse Hajji Salam Wazir, líder tribal. Foi supresa, para mim, o modo como os norte-americanos usam os muçulmanos, acrescentou. Até ontem, Haqqani era herói e combatente da liberdade, para os EUA. Mandaram especialistas deles para treiná-lo. Hoje, virou “terrorista”.

Colhido entre a ameaça de ser preso por paquistaneses e assassinado por norte-americanos, Haqqani decidiu recorrer outra vez ao novo governo afegão. Em março de 2002, mandou seu irmão, Ibrahim Omari, ao Afeganistão, com uma proposta de reconciliar-se com Karzai. Em cerimônia pública, da qual participaram centenas de anciãos líderes tribais e dignitários locais, Omari jurou fidelidade ao novo governo e conclamou os seguidores de Haqqani a voltar do Paquistão e trabalhar com o novo governo de Karzai.

Foi nomeado chefe do conselho tribal da província de Paktia, instituição criada para reunir os anciãos das tribos e o governo de Cabul. Em pouco tempo, centenas de antigos subcomandantes de Haqqani, que viviam na clandestinidade, escondidos de PKZ, saíram do frio.

Entre eles, estava Malem Jan. De longos cílios escuros, olhos pintados com muito Kohl e unhas cuidadas, gostava de dançar e dançava muito, para deleite dos companheiros. Era também comandante de vastíssima experiência de combate; lutara, no início dos anos 1990s, sob comando de Haqqani, contra o governo soviético. Na primavera de 2002, reconvocou seus antigos combatentes e, em pouco tempo, todos estavam trabalhando a serviço da CIA como unidade paramilitar, encarregados da segurança de missões dos EUA que caçavam a al-Qaeda.

“Foram bons tempos” – Malem Jan relembrou. – “Trabalhávamos juntos, comíamos juntos, conversávamos muito”. – As milícias da CIA, das quais havia uma meia dúzia em Loya Paktia, rapidamente cresceram e transformaram-se num exército clandestino de 3 mil homens, chamados, em grupo de “Equipes de Perseguição de Contraterrorismo”, que opera até hoje fora da jurisdição do governo afegão e só recebe ordens das forças dos EUA.

Os contatos entre Haqqani e a CIA foram retomados, com seu irmão Omari servindo de intermediário. Planejou-se um encontro entre o próprio Haqqani e representantes da Agência. Na negociação, o ponto chave foi a garantia de que Haqqani poderia voltar ao Afeganistão e participar na política da província de Loya Paktia. O problema era PKZ, enciumado com tais manobras e sempre interessado em manter o controle sobre as três províncias. “Tenho de ser nomeado governador” – disse ao jornal Austin American-Statesman. “Se não for eu, será alguém da al-Qaeda”.

Quando Karzai nomeou um novo governador para a província Paktia, PKZ logo respondeu: cercou a casa do governador e matou 25 pessoas. Simultaneamente, convenceu os norte-americanos a fechar o cerco contra os Haqqanis. Uma noite, quando Omari estava visitando um funcionário do governo, perto de Cabul, apareceram forças das Operações Especiais dos EUA – sem conhecimento da CIA – e o prenderam. Na mesma semana, outros seguidores dos Haqqanis foram presos, em vários pontos da província Loya Paktia.

Base Aérea de Bagram, Afeganistão
No instante em que percebeu o que estava acontecendo Malem Jan fugiu para o Paquistão, mas vários de seus subordinados foram presos e enviados para a nova prisão norte-americana na Base Aérea Bagram, centro militar de comando que estava em rápida expansão. Swat Khan, seu vice-comandante, contou que, no primeiro interrogatório, foi pendurado ao teto pelos pulsos. Depois, foi espancado. Finalmente o mandaram para Guantánamo, onde, alguns anos depois, tentou o suicídio. “Cada vez que fecho os olhos, tudo reaparece” – contou-me ele, depois que foi libertado. – “O pesadelo nunca sai de mim”.

A CIA demorou meses até dar-se conta de que Omari estava preso numa prisão dos EUA. Quando afinal foi libertado, parecia outro homem. Era um dia de outono, frio, numa colina perto da cidade de Khost, onde centenas de anciãos das tribos e funcionários do governo foram recebê-lo. Havia autoridades das tribos e das vilas atacadas e bombardeadas pelos aviões norte-americanos e pelas forças de PKZ, anciãos sobreviventes do ataque à caravana, agricultores cujos filhos haviam sido mandados para Guantanamo.

“Primeiro, nem o reconheci” – disse Malek Sardar, ancião de uma das tribos. – “Não falou sobre o que o fizeram passar, e pareceu-nos doloroso demais perguntar qualquer coisa”. Aos poucos, com voz fraca, Omari falou ao grupo ali reunido. Que ninguém nunca mais esperasse coisa alguma, nem do governo de Karzai, nem dos norte-americanos. Alguns velhos gritaram insultos a Karzai. Outros disseram que os norte-americanos eram iguais aos soviéticos. Omari jurou que não voltaria a pisar em terra afegã, enquanto não estivesse livre de “todos os infiéis”. Pouco depois, partiu para o Paquistão.

A Rede Haqqani: 2004-2014

No verão de 2004, Malem Jan estava sentado com Sirajuddin Haqqani, o segundo filho de Jalaluddin, em sua base no Paquistão, no Waziristão Norte, na cidade de Miram Shah, quando ouviram seus nomes na BBC. Os norte-americanos ofereciam recompensas, respectivamente, de US$250 mil e de US$200 mil, por qualquer informação que levasse à prisão deles. Introvertido, religioso e furiosamente inteligente, o mais jovem dos Haqqani imediatamente decidiu tomar as rédeas da depauperada rede de seu pai. Sorriu, ante a ideia de que seu porta-voz, Malem Jan, valesse recompensa maior que a oferecida por ele. E zombou: “Dizem que a cabeça que vale prêmio mais alto já está mais perto de Deus”.

A partir dali, os Haqqanis entraram em guerra declarada contra os norte-americanos. Enquanto seu pai comandara a Loya Paktia contando com apoio popular, Sirajuddin comandou das sombras, pelo medo – assassinatos, sequestros, extorsão, estradas minadas. Miram Shah tornara-se capital mundial da Jihad radical, lar da al-Qaeda e de sortimento variado de chechenos, uzbeques e europeus que, todos, combatiam sob a bandeira dos Haqqani. O ISI, serviço secreto do Paquistão, apoiava também os Haqqanis, como meio de influenciar nos eventos internos do Afeganistão, apesar de, publicamente, Islamabad apresentar-se como aliada de Washington.

Ao classificar alguns grupos como terroristas, e, na sequência, agir como se sua própria classificação fizesse algum sentido, os EUA, sem ver o que faziam, geraram as próprias condições de existência do que, em tese, estariam combatendo.

Em 2010, a rede Haqqani já era a ala mais mortal de uma insurgência armada cada dia mais violenta, que matava civis sem conta, além de muitos soldados norte-americanos. Já era quase impossível, então, sequer recordar que, em meados de 2002, os EUA não tinham inimigos no Afeganistão: os remanescentes da al-Qaeda haviam fugido para o Paquistão, os Talibã haviam entrado em colapso, e os Haqqanis tentavam o acordo e a reconciliação.

Drones matam indiscriminadamente
Se Pacha Khan Zadran conseguiu convencer seus aliados norte-americanos do contrário disso, foi por causa da lógica da guerra ao terror. “Terrorismo” deixou de ser definido como um conjunto de táticas (captura de reféns, assassinatos, carros-bomba). E passou a ser entendido como algo que fazia parte da própria identidade dos perpetradores, como o peso, ou o temperamento. Significava que, uma vez declarado “terrorista”, Jalaluddin Haqqani nunca mais deixaria de ser terrorista, mesmo quando tentou a reconciliação.

Por sua vez, quando, adiante, PKZ rompeu com o governo Karzai e tomou os norte-americanos como alvos, foi rotulado não como terrorista, mas como um “renegado”. (PKZ conseguiu fugir para o Paquistão, foi preso, entregue ao governo afegão, e, adiante, foi eleito para o Parlamento).

Em anos recentes, os EUA movem campanha intensa de ataques, por drones, contra os Haqqanis em sua fortaleza no Waziristão Norte. Dezenas de seus comandantes foram mortos, inclusive o principal comandante militar, Badruddin Haqqani. Muitos têm sido presos. Hoje, a rede Haqqani não é nem sombra do que foi.

Mas a influência do grupo continua bem viva. Em 2012, recebi um telefonema da família de Arsala Rahmani, senador afegão do qual me tornei amigo. Naquela manhã, um atirador acompanhou o carro onde Rahmani viajava, parou ao lado dele num cruzando e o matou a queima roupa.

Depois, ouvi que um ex-comandante dos Haqqanis, de nome Najibullah era o responsável por aquele assassinato; ele criara sua própria facção, Mahaz-e-Fedayeen, cuja violência faz os Haqqanis parecerem amadores. Hoje já tomado como inimigo das forças do contraterrorismo norte-americano, esse grupo é mais um – mas não o último – inimigo numa guerra que parece nunca acabar.



[*] Anand Gopal escreve regularmente em TomDispatch. É autor do recém lançado No Good Men Among the Living: America, the Talibã, and the War Through Afghan Eyes [Não há bons entre os sobreviventes: EUA, Talibã e a Guerra, pelos olhos dos afegãos] (Metropolitan Books). Escreveu sobre a Guerra Afegã para o Wall Street Journa le o Christian Science Monitor e é membro da New America Foundation. Twitter: @Anand_Gopal.

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