segunda-feira, 10 de março de 2014

Luta entre oligarcas na Ucrânia (1/2)

7/3/2014, Jessica Desvarieux entrevista [*] Aleksandr Buzgalin, TRNN (Baltimore)
Transcrição traduzida pelo pessoal da Vila Vudu


JESSICA DESVARIEUX: Obrigada, Aleks, por nos receber.

ALEKSANDR BUZGALIN, Prof. Economia Política, Universidade Estatal de Moscou: Obrigado a vocês, pela oportunidade de contar-lhes algumas coisas, espero que importantes para vocês.

DESVARIEUX: Aleksandr, você pode começar, por favor, falando sobre como a Crimeia passou a ser parte da Ucrânia em 1954, história da região e o relacionamento com a Rússia?

BUZGALIN: Essa história é longa. Para começar, quero lembrar que durante centenas de anos, muito tempo, a Ucrânia foi parte do Império Russo, e as relações entre ucranianos e russos não eram más; e era difícil saber onde passava a fronteira, por que Kiev, a moderna capital da Ucrânia, foi uma das cidades mais importante, um dos centros culturais mais importantes de nosso país; Gogol, Shevchenko e outros escritores, pintores, atores, todos eram parte de uma cultura comum. Para nós, a Ucrânia sempre foi parte de nossa civilização, e o mesmo vale para a maioria dos ucranianos. Isso é importante.

Claro que houve opressão, mas éramos todos oprimidos pela elite do czar e da brutal capital da Rússia do passado.

Depois do fim da União Soviética, a Ucrânia tornou-se independente. Foi também importante fonte de conflito, porque era conflito, principalmente entre oligarcas ucranianos pró-ocidente e oligarcas russos ou ucranianos pró-oligarcas russos, que eram os verdadeiros exploradores do povo e da natureza da Ucrânia. Aí, é difícil dizer quem era melhor, quem era pior. Os dois lados eram piores...

Sobre a Crimeia é outra história. A Crimeia foi parte da Rússia, antes foi território dos tártaros, já era história longa. No século 18, foi parte do Império Russo. E só há 50 anos tornou-se parte da Ucrânia, artificialmente, se pode dizer, porque Khrushchev, secretário-geral do Partido Comunista decidiu dar a Ucrânia de presente ao primeiro-secretário do PC, que era ucraniano.

A absoluta maioria do povo da Crimeia falam russo, alguns são ucranianos, e a língua ucraniana era artificial, nesse território. Estive muitas vezes nessa região. Costumava passar férias e feriados por lá. Deu cursos e palestras na unidade em Sebastopol da Universidade Federal de Moscou. É território russo, não por tentativas de ocupação, mas porque é, é a realidade.

Havia também um acordo entre Rússia e Ucrânia que a base naval em Sebastopol, uma base naval muito importante, onde há tropas, aviões etc., seria base comum das frotas e de tropas russas e ucranianas, aviões russos e ucranianos, aviões militares etc. Havia controle mútuo e mútuos conflitos, mas, tipicamente, eram os mesmos que haviam sido oficiais na União Soviética no passado, com as mesmas tradições, os mesmos símbolos históricos, as mesmas vitórias, derrotas, tudo.

A Crimeia é parte importante, da luta heroica contra a ocupação fascista, e a defesa de Sebastopol foi terrível e heroica. Isso é parte da história da humanidade, não é história só dos nossos países, porque ali se lutou realmente contra o fascismo, o fascismo alemão, romano, tropas italianas, tropas fascistas durante a 2ª Guerra Mundial. Tudo isso é uma importante pré-história.

De fato, hoje, não se pode falar de intervenção por soldados russos. Ali tudo já era russo, marinha, soldados, aviação militar. E era situação legal, porque sempre houve acordo entre a Rússia e a Ucrânia, desde antes.

O problema é que algumas forças militares decidiram participar em apoio à paz, e porque não há batalhas na Crimeia. Aqui cabe um ponto de interrogação, porque, conforme o Tratado, não sei se era necessário que fosse assim – que os soldados cuidassem disso – ou se a militsiya da Ucrânia é que era responsável por manter a paz nessa região, como em outras regiões do país.

O caso é que, quando emissários de um governo de transição, se se pode chamar assim, chegaram à Crimeia, e tinham o apoio de nacionalistas ucranianos, alguns deles com slogans e símbolos fascistas, a população da Crimeia viu ali um ataque, como ocupação, do ponto de vista da maioria da população da Crimeia. Nessa situação, as forças militares se converteram em forças de pacificação, muito mais do que as forças que ocuparam território da Ucrânia. É contraditório. E tenho certeza de que o referendo dirá não ao novo governo ucraniano: nós queremos ser independentes.

Não sei realmente por que, mas, depois do fim da União Soviética, a Ucrânia disse que queria ser independente, e tudo bem, até que alguém começou a falar de ocupação, contra ocupação ou algo desse tipo. Agora, se a Crimeia quer ser independente, tem todo o direito de ser, é assunto deles.

Claro que estou com muito medo de alguma ocupação REAL, por soldados da OTAN, ou da Rússia, ou da Rússia e da OTAN. Tudo aí pode ser provocação para forçar uma guerra. Já estamos perto do 100º aniversário da 1ª Guerra Mundial. E por que aquela guerra aconteceu? Por que ex-aliados, os povos alemão e francês, de uma única Europa cultural, puseram-se a matar-se entre eles, até que mais de 10 milhões de pessoas foram mortas? Para quê? Era o mesmo país democrático – a Alemanha era país democrático burguês; a França era país democrático burguês. E houve aquela batalha terrível por nada, por causa de convicções imperialistas.

Agora, é claro, há o problema das ambições geopolíticas de Putin e de outros funcionários russos. Não apoio nenhuma dessas ambições.

DESVARIEUX: Obrigado por mencionar Putin, porque quero falar sobre por que Putin decidiu agir com tanta pressa e intervir na Crimeia. Por que, em sua opinião?

BUZGALIN: Para começar, não sou Putin e, na maioria das vezes não entendo a lógica dele. Portanto, essa é uma pergunta que você deve fazer a ele, não a mim. Mas ele deu algumas explicações, nas entrevistas com jornalistas. Não quero repeti-las. Mas aconselho que você traduza as entrevistas de Putin e as leiam com atenção, pensem sobre elas, diga ele coisas verdadeiras ou não. Recomendo que não ignorem a entrevista do presidente Putin.

Acho que há duas tentativas, de mostrar que a Rússia é um grande estado, que desempenha um grande papel na política internacional mundial. Essa é uma das ambições de Putin e da burocracia russa em geral. Mas há também outro aspecto, porque depois daquela fala de Putin e da decisão tomada pelo nosso Parlamento, a situação na Crimeia ficou muito mais calma que antes. Agora, aqueles nacionalistas ucranianos estão com medo de vir à Crimeia e dizer “caiam fora”, ao povo que veio para votar na Praça.

Na Crimeia foi igual a Kiev. Foi Maidan na Crimeia. As pessoas foram às praças e disseram “não queremos ter aqui o governo que se estabeleceu em Kiev. Não é nosso governo, não gostamos deles, temos nossa própria vontade. Nós, povo da Crimeia queremos ter nosso próprio governo. Não venham para cá. Não respeitamos vocês. Entendemos que vocês não foram eleitos. E não foram....

DESVARIEUX: E é por isso que haverá votação no final de março, é isso? Haverá uma votação de referendo.

BUZGALIN: Eles querem fazer um referendo. Acho até que será mais ou menos democrático, como qualquer votação em situação de semirrevolução. Você sabe, agora é... Na Ucrânia, o poder é baseado na opinião das praças, e essa não é iniciativa da maioria dos ucranianos, só é iniciativa dos que foram à Praça Maidan, dos que estão indo a praças na Crimeia, em Carcóvia, em Donbass, em outras regiões, em regiões do oeste da Ucrânia.

Entendo que é preciso respeitar a opinião desses, mas não se pode pensar que essa seja a única opinião do povo da Ucrânia. Há estratos diferentes, diferentes interesses, contradições socioeconômicas muito profundas entre os oligarcas, oligarcas pró-ocidente e oligarcas pró-Rússia, por trás de tudo isso.

Na verdade, os novos enviados de Kiev para as regiões do leste do país são imensos oligarcas, proprietários dos maiores capitais na Ucrânia. Não são portanto qualquer alternativa a Yanukovich ou a qualquer outro – é o mesmo capitalismo oligárquico burocrático, que organizará a mesma manipulação burocrática, ou, talvez, ainda pior que a de antes.

As pessoas estavam fartas de Yanukovich, e entendo muito bem que é necessária uma revolução democrática. Mas o que aconteceu na Ucrânia, infelizmente, não é real revolução democrática, não foi feito pelo povo comum que queria mudar o poder burocrático, corrupto. Agora, chegaram ao poder representantes de outros grupos oligárquicos, outras forças geopolíticas que querem manipular a Ucrânia.

E, também – é extremamente importante, e quero destacar. A verdadeira força que ajudou a pôr no poder o novo governo da Ucrânia são os nacionalistas ucranianos. E eles usam diretamente símbolos e slogans de tropas na Ucrânia que apoiaram o fascismo, o fascismo alemão, por ações terríveis contra populações pacíficas, contra judeus, principalmente, contra o povo da Bielorrússia, contra ucranianos e contra russos que não apoiavam o fascismo e que não queriam apoiar a Alemanha fascista. Era, vale lembrar, luta anticomunista. E agora, em algumas regiões da Ucrânia, as autoridades regionais já estão dizendo que o Partido Comunista deve ser proibido, porque é partido pró-Rússia.

A lei que proibia o uso de símbolos fascistas já não existe. Agora eles dizem que quem queira pode usar símbolos fascistas, que não importa.

Não gosto do nacionalismo russo. Odeio o nacionalismo russo. Mas também odeio o nacionalismo ucraniano, como odeio todos os nacionalismos.

Um aspecto importante (desculpe, Jessica; quero também destacar isso), é a posição dos EUA e de alguns comentaristas europeus – quero dizer, não é a posição dos norte-americanos, do povo comum e democrático dos EUA, mas a posição do governo e de alguns veículos dos meios de massa dominantes. O que ali se ouve é apenas um modo de pensar sobre os eventos, sem nenhuma análise mais profunda das contradições, sem análise alguma do contexto socioeconômico, nem das contradições de classe, que existiam na Ucrânia e que são muito importantes.

Por isso, precisamente, eu quis oferecer aqui uma reflexão mais complexa, mais contraditória da situação. Não temos soluções boas. Só podemos escolher entre uma solução ruim e uma solução muito ruim. O caso é esse, infelizmente.

DESVARIEUX: OK. Obrigada, Aleksandr Buzgalin, professor da Universidade Estatal de Moscou.
Na segunda parte dessa entrevista, gostaria de voltar a Rússia e conversar sobre algumas das políticas em jogo. Na sequência, a parte dois dessa entrevista.
Obrigada por nos receber, Aleksandr.

BUZGALIN: Obrigado.

[continua]



[*] Aleksandr Buzgalin é professor de Economia Política na Universidade Estatal de Moscou. É também editor da revista da esquerda democrática independente Alternatives, e coordenador do movimento social russo “Alternatives”, autor de mais de 20 livros e de centenas de artigos traduzidos ao inglês, ao alemão e outras várias línguas.


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