sábado, 8 de março de 2014

Conflicts Fórum: Comentário semanal de 21 a 28/2/2014

7/3/2014, [*] Conflicts Fórum’s
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

O que interessa é que, seja como for, alguma “transição” já está em andamento na Síria. Se se considera o exemplo iraniano, a transição não aconteceu pela remoção e substituição do principal líder político [“mudança de regime”]. Também na Síria, a mudança aconteceu quando a liderança política instalada em Damasco fez funcionar o próprio sistema político sírio existente. No Irã, o ímpeto para uma grande deriva no sentimento e no estado de espírito da população aprofundou uma grande transição, baseada no consenso em torno de uma abertura nacional, em vez de insistir-se numa entente focada exclusivamente em planos dos EUA.

Participantes da Revolução Verde no Irã (2008/2009)
Parecia irremediável: se se olha atrás, para 2008 e 2009, uma pequena, mas significativa parte da política iraniana parecia ter-se destacado e dirigia-se na direção de vir a constituir dissidência importante.

Alguns comentaristas previram que aquela tendência “verde” cresceria e engolfaria toda a nação numa polarização amarga (embora, sim, outros tenham alertado que aquela dissidência, localizada principalmente na região norte de Teerã, não tinha base real na população em geral). As divisões pareceram, a alguns observadores, estar selando o futuro do Irã, condenando o país a conflito interno cada vez mais difícil.

Pois afinal, como se viu, nada daquilo aconteceu. O Irã manteve-se consistente. Seu complexo sistema político funcionou. Uma eleição presidencial garantiu autoridade legítima e clara, e um impulso na direção da transição. Um novo governo emergiu para avançar nessa nova direção, e – diferente do que diziam as previsões externas – os dissidentes organizaram-se de volta nas grandes correntes políticas, em vez de cavar cismas mais profundos. Obteve-se um acordo. O Irã cederia na autodefesa sempre agressiva ante o mundo exterior, e retomaria o rumo interno de constituir-se como grande potência regional – mas não, basicamente, mediante qualquer entendimento com os EUA, como os Reformistas haviam tentado antes; em vez disso, o Irã optou por uma “abertura global”, que os Principistas também pudessem aceitar. E isso levaria o Irã a reassumir seu lugar como importante potência regional e econômica – sem qualquer necessidade de os EUA aquiescerem. Até aqui, essa transição está sendo um sucesso.

De fato, já há alguns, na região, que já entendem que nem um fracasso total das conversações do P5+1 levará, ou possa levar, a um retorno à situação anterior. O molde quebrou e foi descartado.

Algo semelhante a isso está novamente acontecendo – nem tanto no Irã, mas na região como um todo e também no micronível.

Uma visita à Síria sugere que a Síria já iniciou, precisamente, uma “transição” similar, embora não idêntica, à do Irã.

Combatentes rebeldes (centro e direita da foto) caminham com um atirador não
identificado na cidade de Babbila, subúrbio de Damasco, durante acordo de cessar
fogo entre o grupo de controle da cidade e do regime de Assad.
(17/2/2014. Foto: Louai Beshara)
O “clima” emocional em Damasco é, em geral, de otimismo. Os cidadãos comuns não falam sobre o “processo” de Genebra – de fato, o tema não é sequer mencionado, ou só muito raramente mencionado internamente. Os pensamentos, em vez disso, estão concentrados no processo de reconciliação, que vai ganhando velocidade em todo o país. É fonte de muito otimismo, embora, é claro, ainda esteja em estágio inicial – e ainda vulnerável à furiosa hostilidade dos rejeicionistas.

Em vários locais, vilas e cidades, ex-insurgentes de oposição já negociam acordos locais com o exército sírio. Sob os termos dos vários acordos, os ex-insurgentes mantêm as armas (leves) e mantêm também o próprio status e o orgulho como combatentes, e vão-se integrando formalmente como parte do Exército Sírio – em unidades locais específicas (a Força Nacional de Defesa). Em resumo, integram-se à infraestrutura de segurança – protegendo suas vilas e o Estado, contra os ataques dos takfiri – os jihadistas takfiri, evidentemente, opõem-se a todas as iniciativas de reconciliação.

Claro que esse processo não é sempre sem obstáculos. Muita gente, em toda a Síria, perdeu familiares e amigos e muito se ressente de que aqueles “bandidos” sejam reabsorvidos na sociedade, sem qualquer punição ou com alguma espécie de “arranjo” com os que eles feriram tão profundamente. Mas esse é o custo conhecido de todos os processos de reconciliação. E essa reconciliação não está acontecendo num vácuo; está andando passo a passo, paralela e ligada ao processo dos diálogos nacionais, com consultas a pessoas de todos os níveis sobre como o estado deve ser modificado para o futuro. Assim como com os aliados da Síria – Rússia e Irã – há forte sentimento dentro da Síria, de que as coisas não podem voltar e não voltarão ao modo como foram. Inevitavelmente, depois de conflito político e social tão profundo, haverá transição significativa.

No “Comentário semanal” da semana passada, vimos como a formação do novo governo libanês produziu uma fórmula pela qual o Movimento Futuro (sunita) e seus aliados ocupam agora os postos chaves da Segurança e das Comunicações (o que afasta qualquer possível reserva ou hesitação que o ocidente tivesse contra manter contatos com agências que mantivessem laços com o Hezbollah). Esse novo governo libanês passa para o “establishment” sunita a responsabilidade por proteger o Líbano contra o extremismo sunita. É, como se viu, caso de pôr-se a raposa a vigiar outras raposas, dado que se sabem dos laços opacos e ambíguos, além de antigos, que ligam o Movimento 14 de Março àqueles grupos. No Comentário da semana passada, sugerimos que a formação do governo, como foi feita, representava um “piloto” para a região como um todo – e para a Síria em particular.

Combatente rebelde (esquerda) fala com membro das Forças de Defesa Nacional (FDN), 
composta de voluntários leais ao presidente Bashar al-Assad operando sob comando 
do Exército regular sírio, na cidade de Babbila, subúrbio de Damasco, durante um acordo 
de cessar fogo entre o grupo rebelde e do regime.  (Foto: Louai Beshara em 17/2/2014)
O Hezbollah (e implicitamente o Irã), nessa iniciativa libanesa, reconheceram efetivamente os medos e a sensação de vulnerabilidade dos sunitas (e sauditas). E, para equacionar também isso, ofereceram uma concessão “piloto”, e teste.

A infraestrutura da região está sendo reorientada para testes que verificarão se os sunitas, que podem ter usado jihadistas para suas próprias finalidades, podem agora confrontá-los, e se os confrontarão. Em certo sentido, é teste para verificar se um “acordo” regional mais amplo, nessa linha, é possível.

A Síria também já anda pelo mesmo caminho: está entregando a segurança local a ex-insurgentes armados (na verdade, a segurança nacional na Síria sempre incluiu grande porcentagem de sunitas). Se a tentativa der certo, talvez vejamos o Irã, a Síria e seus aliados dispostos a tentar acomodar também as ansiedades sunitas e sauditas, em troca de provas de que estão dispostos a derrotar o extremismo sunita que eles mesmos, antes, incendiaram, mas que agora já se converteu em conflagração que ameaça consumir também os sunitas moderados.

Haverá quem diga que essa não é a “transição” que se exige do governo sírio. O ocidente enquadrou a transição na Síria nos estreitos limites de “mudança” na própria chefia do Estado – e nada exige dos insurgentes, além de maior unidade. O ocidente manteve essa “exigência”, sem considerar suas consequências – esquecendo todos os riscos muito visíveis de que o conflito civil se aprofundasse a ponto de gerar anarquia.

Rebeldes passam através de um quintal na aldeia de Morek, área rural da cidade síria
de Hama, em 07/3/2014. Foto: Ali Nasser.
Mas o que interessa é que seja como for essa “transição” está em andamento na Síria. Se se considera o exemplo iraniano, a transição não aconteceu pela remoção e substituição do principal líder político. Também na Síria, a mudança aconteceu quando a liderança política instalada em Damasco fez funcionar o próprio sistema político sírio existente. No Irã, o ímpeto para uma grande deriva no sentimento e no estado de espírito da população aprofundou uma grande transição, baseada no consenso em torno de uma abertura nacional, em vez de insistir-se numa entente focada exclusivamente em planos dos EUA.

Pode ser que essa forma de “transição” venha também a emergir plenamente na Síria (e talvez no Iraque e no Líbano): uma ampla acomodação das ansiedades sunitas (e da sensação de serem as vítimas), trará, como retorno, uma real mudança na atitude dos sunitas ante os jihadistas takfiri. Pode não ser o que desejam alguns no ocidente, mas pode ser o máximo que conseguirão – se se provarem positivos os vários testes que estão em curso, na região, nessa direção.

A questão é: o establishment da política externa dos EUA e seus agitadores profissionais tolerarão essas “transições” geradas e administradas regionalmente? Talvez consigam tolerar. É do interesse dos EUA enfrentar os jihadistas takfiri, ainda que isso implique fazer surgir o Irã e a Síria como potências regionais mais fortes.





[*] Conflicts Forum’s visa mudar a opinião ocidental em direção a uma compreensão mais profunda, menos rígida, linear e compartimentada do Islã e do Oriente Médio. Faz isso por olhar para as causas por trás narrativas contrastantes: observando como as estruturas de linguagem e interpretações que são projetadas para eventos de um modelo de expectativas anteriores discretamente determinam a forma como pensamos - atravessando as pré-suposições, premissas ocultas e até mesmo metafísicas enterradas que se escondem por trás de certas narrativas, desafiando interpretações ocidentais de “extremismo” e as políticas resultantes; e por trabalhar com grupos políticos, movimentos e estados para abrir um novo pensamento sobre os potenciais políticos no mundo.

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