segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

Munique: Impor à Europa Oriental a vontade “deles”?


3/2/2014, Natalia MedenStrategic Culture
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

Hotel Bayerischer Hof ,  local da Conferência de Segurança de Munique - Alemanha
Conferência de Segurança de Munique é um palco raro, no qual se discutem problemas da política mundial. Ali, uma vez por ano, reúnem-se políticos, diretores de organizações internacionais, diplomatas e especialistas em segurança [O Brasil participou em 2013, mas, parece, não foi convidado para 2014 (NTs)].

A Conferência de Munique, que dura quatro dias, não produz decisões que os países sejam obrigados a seguir. E é hoje muito diferente do que era em 1938 – quando o ocidente deu carta branca a Hitler para anexar a Checoslováquia. A imprensa-empresa ocidental faz o que pode para safar-se, com analogias e comparações.

O endereço também mudou: hoje, a Conferência de Munique acontece no Hotel Bayerischer Hof (trad. Quintal Bávaro), Munique. Vez ou outra alguém se apercebe de que a Führerbau, a residência de Hitler construída por fascistas, fica na Königsplatz (trad. Praça do Rei), menos de um quilômetro dali. Naquela Führerbau, os líderes de Grã-Bretanha, França, Alemanha e Itália assinaram um tratado, conhecido como o Pacto (ou Acordo) de Munique (na Rússia, é conhecida como “a colusão de Munique”; e na Checoslováquia, como “a sentença de Munique” e, também como “a traição de Munique”). [Nem se pode dizer que mudaram muito, de 1938 para 2014. Fotos a seguir (NTs)].

Conferência de Munique de 1938 (Hitler e Mussolini figuras centrais)
Conferência de Munique de 2014 (Kissinger e Helmut Schmidt figuras centrais)
Em 2014, a cerimônia de abertura da conferência aconteceu no local onde hoje funciona a Hochschule für Musik und Theater, München (Universidade de Música e Artes Performativas, Munique). A diferença é simbólica; mas haverá grande diferença entre a cena “histórica” e o que se vê hoje?

Em 2014, de 31 de janeiro a 2 de fevereiro, aconteceu a 50ª edição da Conferência. Inicialmente, o fórum anual era muito diferente do que é hoje; começou como encontro fechado para discutir questões militares, aproximando políticos e grandes industriais ocidentais – um círculo estreito de participantes [1]. Nos anos 1990s, começou a converter-se gradualmente em palanque para discussões mais abertas. Depois de 1999, os anfitriões passaram a receber convidados da Europa Central e Oriental, da Índia e da China [2]. E hordas de jornalistas acorrem a Munique para o evento.

Há um traço tradicional, que marca a Conferência de Munique: todos os temas da agenda são temas ‘'quentes'’. O programa da Conferência de 2014 foi dado por concluído, em termos gerais, um mês antes do início do encontro, mas a questão que acabou por dominar completamente as discussões não estava incluída naquela agenda inicial: Poder global e estabilidade regional (com foco na Europa Central e Oriental).

Neonazista ateia fogo numa barricada de pneus em Kiev, Praça Maidan em 17/1/2014
Os eventos na Ucrânia atraíram todas as atenções. Serviu bem aos EUA, porque, com isso, a questão da espionagem pela Agência de Segurança Nacional dos EUA contra europeus sumiu da parte iluminada do palco. De fato, nem tanto... Os convivas não apagaram completamente o tema da espionagem norte-americana, nem conseguiriam fazê-lo, porque a Alemanha não perde oportunidade para expor sua indignação, depois do que o mundo soube a partir das revelações de Edward Snowden. Afinal, a influente revista alemã Spiegel também expôs o assunto aos olhos do mundo.

O primeiro dia da Conferência de Munique foi dedicado a restaurar-reafirmar a confiança, a liberdade e a segurança no ciberespaço, além da proteção aos imensos estoques de dados recolhidos e ao futuro da inteligência. Os suficientemente ingênuos a ponto de ter tido esperanças de que o Secretário de Estado John Kerry dos EUA abraçaria algum novo acordo de não espionagem ou que pediria desculpas pelo que os EUA fizeram saíram frustrados. Os norte-americanos declararam em termos muito claros que não, que nada disso jamais acontecerá. O novo diretor da Agência de Segurança Nacional, vice-almirante Michael Rogers disse em sua fala oficial ao Congresso antes de ser aprovado para o cargo, que os chefes de estado e de governo não serão espionados, até que surjam razões que absolutamente obriguem a fazê-lo, relacionadas à segurança nacional. Em termos mais claros: a espionagem contra europeus prosseguirá, como antes.

Vitali Klitschko, um dos "líderes da praça", e candidato à presidência da Ucrânia
Falando numa conferência de imprensa, ao lado do Ministro de Relações Exteriores da Alemanha, Dr. Frank-Walter Steinmeier, John Kerry disse que Berlim e Washington terão de trabalhar juntas para lidar com o problema. Caso clássico de culpar a vítima. Mas, afinal, nem chega a ser assunto grave... O Ministro do Exterior da Alemanha disse que os debates sobre espionagem não conseguirão abalar a amizade transatlântica. A Chanceler Angela Merkel sequer aventa a hipótese de qualquer tipo de “pausa” nas relações bilaterais; e já foi convidada por Obama a visitar Washington. Nada sequer semelhante a qualquer discussão séria sobre a delicada questão, como prometera Wolfgang Friedrich Ischinger, presidente e organizador da 50ª Conferência de Segurança de Munique. Será que Ischinger realmente acredita no que disse? É diplomata experiente, foi embaixador da Alemanha na Grã-Bretanha de 2006 a maio de 2008; e antes disso, de 2001 a 2006, foi embaixador da Alemanha nos EUA. É claro que conhece todos os vaivéns da relação bilateral. Kerry andou pisando em terreno movediço em vários itens das relações EUA-Alemanha, mas em momento algum falou sobre a Agência de Segurança Nacional.

O caso é que, então, de repente, surgiu a questão da Ucrânia.

Os organizadores do evento convidaram o Ministro de Relações Exteriores da Ucrânia, Leonid Kozhara e líderes “da praça”, Vitaly Klitschko e Arseniy Yatsenyuk, além do oligarca Petro Poroshenko – que parece ser o nome preferido de Washington.

O encontro entre eles todos e Kerry foi anunciado com grande antecedência. O nacionalista Oleh Tyahnybok não foi convidado (ninguém quis correr o risco de ele pôr-se a desfilar pelas ruas de Munique e a discursar na Führerbau e na conhecida cervejaria Hofbräuhaus [Hitler fez vários discursos nessa cervejaria (NTs)] e em outros pontos de atração turística da cidade conhecida como o berço no nazismo).

Cervejaria Hofbräuhaus, em Munique, onde Hitler costumava fazer inflamados discursos
Mas que ninguém pense que Oleh Tyahnybok será mantido afastado da Alemanha: foi convidado a visitar o país por grupos da direita alemã radical e conservadores associados à Fundação Konrad Adenauer. A direita alemã sempre soube trabalhar com nacionalistas de direita de outros países, e é trabalho que muito lhes interessa, todos sempre pensando no futuro.

Por exemplo, nos anos 1970s, o Bundesnachrichtendienst (BND, o braço da inteligência alemã que opera no exterior) cooperou efetivamente com o Comitê Nacional Croata – organização que muito se orgulha de ter raízes no movimento terrorista de fascistas croatas Ustase.

Os EUA também não escolhem muito bem com quem andam. John Kerry convidou acintosamente os líderes da oposição ucraniana a unirem-se na luta contra o governo. Em Munique já não há quem não saiba que Petro Poroshenko – milionário conhecido como “o rei do chocolate” – foi o escolhido pelos EUA para governar a Ucrânia. (...)

Hochschule für Musik und Theater, local da abertura da Conferência de Munique em 2014
Mais uma vez, vê-se em curso, em Munique, uma tentativa para assumir o controle sobre a Europa Oriental. Não parece que os europeus estejam interessados em outra Drang nach Osten [marcha acelerada rumo ao Leste], como seus parceiros norte-americanos. Nem todos estão igualmente satisfeitos com a evidência de que tudo, no mundo ocidental – diferente do que se via na Munique pré-guerra – é hoje decidido por um suposto centro de poder, sem que sequer se tente qualquer tipo de acordo entre diferentes grupos de interesse.

Sabe-se bem o que resultou da aventura de Munique em 1938, mas a história não se repete – como a 50ª Conferência de Segurança de Munique acaba de confirmar. Vários políticos já falam rotineiramente de intervenção nos assuntos de outros estados, inclusive com uso de força. E outros começam a descobrir que não, que essa atitude vai-se tornando cada dia menos aceitável...



Notas dos tradutores

[1]  Durante a Guerra Fria, essa conferência recebia o nome de  Wehrkundetagung   (Conferência de  Ciência militar)Wehrkunde é uma velha palavra para dizer ciência militar, que foi usada pelos nazistas e pelos comunistas da Alemanha “socialista”. Palavra moderna é Militärwissenschaft Die Kunde (feminino) é o conhecimento. Der Kunde (masculino) é o cliente. Kundentagung tem então o significado de reunião de clientes.

[2] E muda sempre muito menos do que parece:
Essa semana, Helmut Schmidt e Henry Kissinger participarão de uma mesa redonda na Conferência de Segurança de Munique, como aconteceu na primeira “Internationale Wehrkunde-Begegnung” (que antecedeu o formato de hoje). De lá até hoje, muita coisa mudou pelo mundo, que causa júbilo – mas também há coisas que obrigam a refletir.

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