terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

Entrevista concedida pelo Presidente Hamid Karzai do Afeganistão em 24/1/2014

Entrevistadora: [*] Christina Lamb (correspondente em Kabul), Sunday Times, Londres

27/1/2014, Bakhtar News, Afeganistão
Traduzida da transcrição em inglês pelo pessoal da Vila Vudu

Houve época em que Karzai foi o “queridinho do ocidente”, mas hoje o Presidente do Afeganistão “louco e encurralado como um gato” é evitado por Obama. Prestes a se despedir de seu cargo ele não faz rodeios ao acusar os EUA de trazer morte, desgraças e ilegalidades para sua terra.

Presidente do Afeganistão, Hamid Karzai durante entrevista a seguir
Jornalista Christina Lamb: Obrigada, Sr. Presidente, por nos receber. Ocorreu-me, enquanto vinha para cá, que já são 12 anos desde que o senhor chegou à presidência. E durante todo esse tempo o senhor manteve relações muito boas com os EUA. Agora, parece que isso mudou. Em sua opinião, por que tudo isso está acontecendo?

Presidente Karzai: Desde bem antes disso, quando ainda estávamos em Peshawar nos anos da resistência contra os soviéticos, todos já sabíamos que os norte-americanos ajudavam os radicais, todos sabíamos de tudo, mas ainda considerávamos que fossem amigos do povo afegão e todos estávamos tentando tudo... Quando os Talibã apareceram, eu, inicialmente, apoiei os Talibã. Sentia que seriam as pessoas certas.

Como você sabe, fiz quase toda a minha resistência no Afeganistão com eles, através deles, naquele tempo. Foi assim até que me convenci de que eles estavam provocando desunião no país; que eram de modo geral armados por forças externas ao nosso país. Então, de 1996 em diante, foquei-me inteiramente nos EUA e passei a esperar que os EUA ajudassem o Afeganistão e o povo afegão. Falei no Senado; andei por todos os cantos e também pela Europa. Afinal, depois do 11/9, os norte-americanos chegaram; e o povo afegão os recebeu de coração aberto.

Na maior parte do país, os Talibã foram expulsos pelo povo, sem um único tiro: eles simplesmente deixavam suas bases e partiram. A partir de 2003, quando o general McKneill comandava aqui as forças dos EUA, nunca me cansei de falar aos norte-americanos que viviam aqui, sobre nossas tradições, nosso modo de vida, e de repetir que o povo afegão era amigo do povo dos EUA.

Quando os norte-americanos começaram a invadir casas, quando começaram a empregar bandidos que agiam com eles, quando começaram a atacar populações locais, quando começaram a intimidar... O que fiz foi dizer que não, que aquilo tinha de parar, que não podia continuar. Mas eles não me ouviram. Alertei-os sobre a região e nossa política regional, e também não me ouviram. Quando começaram a bombardear casas de civis, todos vinham falar comigo. Mas o governo então era muito fraco e eu nem tinha meios para produzir investigações e relatos oficiais, pela máquina do Estado, porque nem máquina do Estado havia. Mas as pessoas estavam vendo o que se passava e contavam: “presidente, estamos sendo atacados, estamos sendo bombardeados, o senhor não sabe... Nossas casas são atacadas, as mulheres e as crianças são intimidadas”. Naquele momento, o que fiz foi convocar os generais norte-americanos para que se reunissem com generais afegãos e o embaixador dos EUA.

Por quase dois anos, até 2005, não mobilizei a imprensa, nem falei publicamente contra o que estava acontecendo no Afeganistão. Mas de 2005 em diante, dado o número de baixas entre os civis, senti que ninguém estava ouvindo o que todos diziam aqui no Afeganistão, que ninguém estava prestando atenção, e que era meu dever trabalhar e me manifestar mais publicamente. E continuou a ação dos norte-americanos, de negligenciar a população civil, de bombardear alvos afegãos, de profanar locais religiosos e tudo que hoje se sabe.

Os norte-americanos também começaram a trabalhar empenhadamente contra o governo afegão, contra sua autoridade, contra nossas instituições. Os norte-americanos nunca se interessaram pela polícia afegã, porque sempre usaram sua própria “segurança privada”, gastando aí o dinheiro que deveriam gastar para treinar a polícia pública afegã. Nunca parei de dizer tudo isso aos norte-americanos – que nós sabíamos das empresas de segurança privada, das estruturas paralelas contra o governo afegão, porque tudo isso criava contrastes inadmissíveis, além de outras dificuldades.

Mas os norte-americanos jamais trabalharam comigo; sempre trabalharam contra mim em todas essas questões – a prisão de Bagram é um desses casos, mas não é o único. Há uma longa lista de questões extremamente importantes para os afegãos, às quais os norte-americanos jamais deram atenção alguma. 

Acabei por começar a sentir que se os norte-americanos absolutamente não se interessavam por nós. E, se estavam aqui exclusivamente por interesses deles mesmos, eu tinha obrigação de tomar posição.

Não que eu estivesse contra eles, não, de modo algum. Sou homem completamente pró-Ocidente, desejo contato e engajamento com países ocidentais. Mas é claro que tudo isso tem de ser feito sob relações de respeito! O povo afegão tem de ser respeitado... Somos povo pacífico, vivemos aqui há milênios, não podemos nos conformar com viver amedrontados, em medo perpétuo.

E foi essa “nova” atitude que decidimos tomar no Afeganistão, que “mudou” o relacionamento que havia entre nós.

Jornalista: Como o senhor sente-se, ao ler que [Robert] Gates escreveu que o presidente Obama “não tolera Karzai”?

Presidente Karzai: Não sei o que significa isso. Ora... talvez alguém “não tolere” minhas declarações. Talvez alguém não tolere que o presidente de país pobre, como o Afeganistão, ponha-se a falar como nós falamos. Se é isso, estão enganados. Por mais pobre que seja o Afeganistão, ainda somos um país. Não sabemos de “potências”: “potência”, para nós, somos nós mesmos, embora pobres, mas, mesmo assim, é claro, com nossos próprios interesses, como qualquer sociedade, qualquer povo. Temos nossas crianças, nossas famílias, quero viver num bom país. Pessoalmente, sempre fui cordial e respeitoso com o presidente Obama, porque é presidente dos EUA e porque, na minha presença, sempre foi cordial e civilizado. Quero dizer... De minha parte, respeito e considero o presidente Obama e desejo-lhe sorte e felicidade.

Jornalista: Mas o presidente Bush fez muito mais esforços para ter e manter um relacionamento com o senhor. E os dois mantinham videoconferências semanais...

Presidente Karzai: É, videoconferências semanais, não. O presidente Obama e eu nos encontramos em algumas videoconferências, mas nenhum encontro, nem por videoconferência depois de julho (ou talvez antes, em junho), quando nos encontramos pessoalmente naquela reunião. Depois daquilo não nos falamos mais. E o presidente Obama teve a gentileza de mandar-me um cartão com votos de Feliz Ano Novo.

Jornalista: Nunca mais se falaram, desde, talvez, junho, julho?

Presidente Karzai: De fato, não estou lembrado se, alguma vez, falamos por telefone... Nos vimos na África do Sul, mas não nos falamos. Trocamos cartas, sim, é verdade.

Com o presidente Bush, sim, era um bom relacionamento, e também com o presidente Obama.

Mas as relações entre países como o Afeganistão e os EUA começaram a deteriorar-se já no segundo mandato do presidente Bush, em 2007, depois do bombardeio de Hirat, contra nossos civis, e com mudança drástica na opinião sobre a pulverização aérea que queriam fazem sobre nossas terras plantadas, e contra a qual me opus. Opus-me frontalmente, completamente, Mas eles queriam e queriam. E eu me opus, disse não. Na verdade, pode-se dizer que as dificuldades começaram ali; e quando tentavam trazer para o Afeganistão uma super autoridade da ONU, [Paddy] Ashdown. É diplomata talentoso, por quem eu tinha muito respeito. Qualquer outra pessoa seria igualmente pessoalmente respeitada por mim. E ele compreendeu meu ponto de vista, compreendeu que o Afeganistão precisa ter governo próprio, que têm de cuidar de seus próprios negócios, que não somos alguma espécie de protetorado, que não podemos ser tratados como protetorado. Ashdown compreendeu tudo isso muito bem. Mas o plano concebido, que deveria andar nessa direção, não foi plano amigável em relação ao Afeganistão.

Jornalista: Sim, exatamente.

Presidente Karzai: Era um plano conjunto norte-americano e britânico, e os europeus também. E comecei a desconfiar que tentavam nos empurrar para um limbo.

Jornalista: Os norte-americanos estão hoje muito zangados, porque o senhor libertou alguns dos prisioneiros.

Presidente Karzai: É. Estão.

Jornalista: Dizem que são perigosos.

Presidente Karzai: Não vemos assim, definitivamente não acreditamos nisso. Antes de eu ir a Bagram... Para resumir tudo o que deu errado em nosso relacionamento com os EUA, talvez o melhor seja recorrer a um verso de Shelley, o grande poeta britânico: quando ia para Bagram “encontrei a morte no caminho”. [1] Esses doze anos foram anos de suplicar aos EUA: por favor, respeitem nossos civis, tratem-nos com respeito; e nossa vida, como vidas humanas.

Estou lendo um livro, comecei a ler anteontem, de Ben Anderson, o correspondente norte-americano, que diz, em seu livro... É chocante, chocante para mim. Se eu tivesse sabido de tudo aquilo naquele momento, teria protestado muito fortemente. Só fiquei sabendo por aquele livro, ontem, que o general Petreaus ordenou que se intensificassem as operações e que, de julho a novembro de 2010, foram 3.500 bombardeios contra nosso país.

Jornalista: É muito!

Presidente Karzai: 3.500 bombardeios contra nosso país, bombardeios aéreos, inacreditável, chocante!

Jornalista: Quando ele [general Petreaus] esteve aqui, lembrei, na ocasião, que ele disse “viemos para vencer a guerra”. Não estava pensando em negociações.

Presidente Karzai: Mas... vencer a guerra contra quem? Contra o povo afegão? Não há dúvidas de que, sim, as coisas foram por péssimo caminho, porque “encontrei a morte no caminho”.

Nunca pedi nem ajuda nem dinheiro aos norte-americanos, para o Afeganistão. Nunca discuti questões econômicas com os norte-americanos. Nunca pedi ajuda para nosso país. Só pedi uma abordagem racional e justa na guerra ao terror.  Se entendem que os santuários estão acima do Afeganistão, que cuidem disso. Se entenderem que há algum problema dentro do Afeganistão, é problema a ser resolvido por nós, pelos afegãos; e nada, absolutamente nada poderá jamais ser resolvido pelos EUA, se só fazem conduzir operações de guerra e bombardear.

A prisão de Bagram já era problema para mim, há muito tempo, em 2005, 2006, 2007. Mas passou a ser para mim problema extremamente importante, ao qual passei a dar atenção total e imediata, depois de uma reunião com o vice-presidente Joe Biden, que então ainda era senador Joe Biden, o senador Graham em dois outros respeitados senadores dos EUA, MacCain e Lieberman. Deixo os senadores MacCain e senador Lieberman fora dessa discussão, porque não participaram daquela conversa. De fato, naquela reunião, mostraram, até, muito mais consideração e gentileza.

O senador Graham disse-me – no início de 2008 (a data aparece corretamente citada no livro de [Robert] Gates, mas agora não lembro exatamente; no inverso, me parece, de 2008) – o senador Graham diz-me que os norte-americanos vão construir grandes prisões para acomodar maior número de prisioneiros afegãos. Perguntei por quê. Por que vocês construirão prisões no Afeganistão? Não é o mesmo que fizeram os soviéticos? E os afegãos não nos levantamos contra os soviéticos, precisamente por isso? Não foi essa a razão principal? Ele respondeu que “bem... prenderemos até os suspeitos contra os quais só haja leves suspeitas, e assim meteremos milhares de afegãos na cadeia”. Eu disse a ele que não permitiria que fizessem tal coisa. Ele respondeu “você é só um!

Para muitos membros do governo dos EUA, o Afeganistão não era nem povo nem governo, não havia presidente aqui, eu não passava de “um homem só”.

Daquele dia em diante, quando os EUA meteram milhares de pessoas em Bagram, eu passei a exigir o fim imediato daquela prisão e trabalhei contra aquela prisão durante anos; até que, em 2009 e 2010, tive de forçar os EUA a desistir da prisão; acabaram por desistir em 2010 ou 2012. Mas não preciso comentar em detalhes tudo que nós fizemos até conseguir isso.

Minha avaliação é que Bagram não é prisão que os EUA usem para prender bandidos e criminosos. Não. Minha avaliação é que Bagram existe para gerar ódio na população afegã contra o próprio país e o próprio governo e contra os que foram libertados ontem pela Comissão. São casos que estudamos detalhadamente durante três meses. E a conclusão de nossa inteligência e de todos que examinaram os casos é que, de 88 prisioneiros, mais de 40 são pessoas contra as quais nada há nos nossos arquivos e na nossa inteligência; sobre 27, só há uma referência; 16 são definidos como “vindos de ambientes suspeitos” (esses 16 não serão libertados). Todos os demais foram libertados pelo nosso sistema judiciário.

Jornalista: Mas o momento de libertar esses prisioneiros não lhe parece um pouco... provocativo? Os americanos não queriam que os prisioneiros fossem libertados.

Presidente Karzai: Não, não é provocativo. Não trabalhamos por “momentos”e “oportunidades”. Trabalhamos sobre fatos, o lado certo e o lado errado das coisas. Nossa avaliação considerou direitos bem claros: ninguém pode manter alguém na prisão, se se entende que ele ou ela é inocente. E os prisioneiros que foram libertados são os que nós consideramos inocentes; o sistema não encontrou sinal de conduta criminosa no que eles fizeram. Por isso decidimos libertá-los, e eles voltaram para casa.

Jornalista: E sobre tudo que aconteceu durante os últimos 12 anos? Terrivelmente triste, não lhe parece? Quero dizer... os EUA perderam tantas vidas e tanto dinheiro...

Presidente Karzai: Muito triste, infelizmente, sim, também para eles, para os EUA, para os soldados dos EUA, para os que morreram, toda a nossa simpatia e nossa solidariedade às famílias enlutadas. Sinto pelas famílias norte-americanas, exatamente como sinto pelas famílias afegãs. Temos de separar esses sentimentos de solidariedade humana, de um lado; e, de outro, nossos sentimentos relacionados ao que o governo dos EUA fez ao Afeganistão. Temos imenso respeito pelo povo dos EUA. Sabemos que o dinheiro dos contribuintes dos EUA correu em grande quantidade para o Afeganistão. Mas quem consumiu e fez sumir, aqui, mal empregado, mal administrado, todo esse dinheiro do povo dos EUA, não fomos nós: foi o governo dos EUA.

Respeitamos profundamente a vida dos soldados norte-americanos que morreram no Afeganistão. Mas discordamos fortemente do modo como os EUA chegaram ao Afeganistão, do modo como agiram aqui, do modo como se conduziram aqui. Sabemos fazer a diferença. Sabemos respeitar o que tem de ser respeitado.

Jornalista: E agora? O senhor está preocupado, agora que os EUA declararam que não deixarão soldados no Afeganistão?

Presidente Karzai: Que deixem ou não deixem é decisão que eles têm de tomar, não nós. Seja como for, algum dia terão de ir embora. E o Afeganistão terá de encontrar seu próprio caminho. Vivemos sob guerras, levantes, e sofrimentos para todos já há 30 anos. Vocês [a jornalista e seu jornal] estavam aqui, e nos acompanharam de perto. Vocês conhecem o Afeganistão desde 1987. Desde 1987, como vocês sabem bem, não houve um dia de paz. Quantos afegãos preocupam-se por não poderem mandar os filhos à escola? E, se vão, as mães desesperam-se porque não sabem se voltarão. Tudo isso tem de acabar. Tenho tentado fazer o meu melhor para pôr fim a tudo isso, antes de assinar o acordo de parceria com os EUA. Esse acordo tem de ser instrumento que sirva aos objetivos do Afeganistão, de segurança e paz para o povo afegão.

Jornalista: E o senhor entende que um modo de pôr fim a tudo é firmar um acordo com os Talibã?

Presidente Karzai: A verdade é que, se os Talibã são problema interno do Afeganistão, nesse caso, como no caso de todos os nossos problemas internos, nós, os afegãos, nós mesmos, temos de equacionar o problema. E se os Talibã são problema externo, nesse caso os EUA devem unir-se aos afegãos para equacionar o problema externo. E veem-se aí elementos de problema interno e de problema externo, nesse caso temos de tratar de delimitar o que é problema interno e o que é problema externo, para resolver tudo.

Jornalista: No sábado, o senhor disse que queria que os EUA trouxessem paz e segurança e o processo de paz, e que trouxessem os Talibã para a mesa de negociações. Como o senhor imagina que os EUA possam fazer isso? Será que os EUA têm poder para obrigar os Talibã a vir, sentar e conversar com o senhor?

Presidente Karzai: Se não têm poder para fazer isso, que o declarem; que expliquem: como é possível que os EUA não tenham poder para trazer os Talibã à mesa de negociações? Se os EUA não têm poder sobre o governo do Paquistão, então devem dizer que não têm; se o governo do Paquistão não está colaborando, devem explicar o que se passa; se entendem que os Talibã não querem discutir com todos esses atores, nesse caso talvez aceitem discutir conosco; nesse caso, o trabalho será nosso, do Afeganistão; é assunto interno e terá de ser tratado como assunto interno. Tudo isso nós precisamos entender. O que mais me interessa agora é clareza.

Jornalista: O senhor acredita que o governo dos EUA possa persuadir o governo do Paquistão para que faça tudo isso? E o senhor acha que o governo do Paquistão tem poder para trazer os Talibã à mesa de negociações, ou a negociações com um ou outro governo?

Presidente Karzai: Nessa discussão há quatro partes envolvidas: o governo afegão e a nação afegã; o governo dos EUA; o governo do Paquistão; e os Talibã.

Os Talibã mataram meu irmão. Dia seguinte eu continuava a dizer que os Talibã são nossos irmãos e continuei a falar de paz. Depois mataram o Presidente Rabbani, que presidia o Conselho de Paz; continuei a chamá-los irmãos e a pedir paz; continuaram a explodir carros e bombas ou, pelo menos, os autores daqueles atentados diziam que agiam em nome dos Talibã; e continuei a dizer que os Talibã são afegãos e são nossos irmãos. Tudo isso para dizer que a nossa posição é clara: queremos paz.

Os norte-americanos dizem que também trabalham pela paz. Resta considerar os dois elementos remanescentes. No Paquistão dizem que estão fazendo o possível. E, se estiverem fazendo o máximo possível, algum resultado haverá de aparecer. Apesar das dificuldades, porém, há progressos.

Se, dos três envolvidos nesse quadrado de quatro, só restar um dos jogadores, num dos cantos, no “corner” dos Talibã, nós podemos lidar com a situação, se nós três trabalharmos nessa direção. Procuro, exatamente, esse tipo de clareza.

Já disse tudo isso ao governo dos EUA, inclusive hoje cedo: que eles devem vir a público e esclarecer sua posição, de tal modo que eu possa ir ao povo do Afeganistão e dizer “a situação é essa: as condições que nós impusemos para o processo de paz, para que iniciemos o processo de paz, não puderam ser aceitas pelos EUA [por tais e tais razões]. OK. Temos de encontrar outra via que nos leve à paz”.

Jornalista: O senhor acredita quando o Paquistão diz que não controla, que não tem meios parara fazer os Talibã vir e sentar com o senhor?

Presidente Karzai: Os paquistaneses dizem que não controlam os Talibã, mas vivem a repetir que têm influência sobre os Talibã. Essa influência pode ser considerável, pode ser usada. Se já usaram alguma vez essa influência, agora é bom momento para provar que podem usá-la.

Jornalista: E onde o senhor imagina que esteja o Mulá Omar? O senhor acredita que esteja vivo?

Presidente Karzai: Não há dúvidas de que está vivo, sim. Creio que está no Paquistão.

Jornalista: O senhor tem algum contato com ele?

Presidente Karzai: Não diretamente. Contato direto, não.

Jornalista: Sábado (18/1/2014), ouvi com interesse uma comparação que o senhor fez, sobre o Acordo Bilateral de Segurança. O senhor usou exemplos de nossa história comum [britânicos e afegãos].

Presidente Karzai: Sobre a Linha Durand? Sim, sim.

Jornalista: É, Linha Durand, Gandomak. Como o senhor se sente sobre o que os britânicos fizeram aqui em Helmand. Ando para lá e para cá... Não lhe parece difícil dizer que a situação hoje esteja muito melhor, mesmo, que antes, quando os britânicos chegaram?

Presidente Karzai: Já me pronunciei, antes, sobre os britânicos em Helmand. Uma vez, em Davos, disse algo sobre isso, acho que foi em 2007, bem quando eles pensavam em indicar Lord Ashdown. E havia muita fúria na imprensa britânica, lembra-se?

Mas digamos, em termos gerais, que a missão da OTAN liderada pelos EUA no Afeganistão, para trazer segurança e estabilidade, não foi bem-sucedida, particularmente em Helmand. Mas o governo britânico conduziu-se conosco de modo muito civilizado, o que muito aprecio, todos os governos britânicos, especialmente o governo do Primeiro-Ministro Cameron, que foi parceiro compreensivo e muito civilizado com os afegãos; e que tentou sem parar melhorar as relações entre nós e o Paquistão.

Jornalista: Mas no início, eles [os britânicos] insistiram em tirar de lá o seu governador, que tinham boas relações com...

Presidente Karzai: Fizeram muito mal, foi mal feito, foi um erro. Espero que os britânicos tenham aprendido, que tenham entendido que não deveriam tem feito.

Jornalista: O senhor entende que a situação teria sido melhor se tivessem mandado tropas? Não lhe parece que os ataques funcionam como ímãs para os insurgentes e que até os soldados poderiam unir-se à insurgência?

Presidente Karzai: Sim, parece-me que sim. Os afegãos não eram anti-norte-americanos ou anti-britânicos. De fato, sempre os apoiaram, e apoiaram também a chegada da comunidade internacional. Todos os nossos problemas foram criados pelas invasões violentas em casas de civis, e todas as demais violências e, de fato, em termos reais, pelo trabalho incansável para minar o governo afegão.

Jornalista: Mas como o senhor acha que minaram o seu governo?

Presidente Karzai: Tudo aquilo que fizeram, criar milícias, criar empresas privadas de segurança – o que gerou corrupção, descrédito da lei e do aparato judiciário, brutalidade, roubalheira generalizada, criar estruturas paralelas, guerra psicológica incansável contra o povo afegão, para nos desmoralizar, nos intimidar, ameaçar-nos com “consequências”, se não fizéssemos o que ordenavam, facilitar a saída de dinheiro do país, tudo isso. Tenho uma lista enorme.

Jornalista: O que me parece, andando como ando, pelo país, como o senhor sabe, há tanto tempo, é que, cada ano que volto para cá há menos lugares aos quais posso ir no Afeganistão.

Presidente Karzai: Exatamente, exatamente. O ponto é exatamente esse. O que eles efetivamente fizeram foi criar bolsões de riqueza, num vasto mar de miséria e privações e ira. Isso, exatamente, é o que fizeram. E daí advêm os nossos problemas. E isso, precisamente, é o que me deixa furioso. Nunca parei de repetir que não fizessem isso. Por isso, exatamente, quero tanto o processo de paz; porque, sem um processo de paz, a única coisa que o Acordo Bilateral de Segurança obterá será o impacto oposto, um impacto negativo. Porque uma parte do país estará sob ataque e alguns que recebem salários e contratos em dólares aí estarão, conectados a um poder externo; e o resto do país estará abandonado ou, ainda pior, estará sob ataque.

Jornalista: O que lhe posso dizer é que todos com quem conversei desde que cheguei, inclusive seu irmão, dizem que querem o Acordo Bilateral de Segurança.

Presidente Karzai: Eu também quero. Não estou contra o ABS. Se estivesse contra o Acordo, não teria convocado a Jirga! Quero também o Acordo. Mas quero-o nas circunstâncias certas, para o objetivo certo. Para que queremos que os americanos fiquem aqui? Será que os queremos aqui para perpetuar a guerra e os conflitos e os sofrimentos dos civis, e as família vivendo em estado de perpétuo medo? Ou queremos que as bases dos EUA permaneçam aqui para cuidar de nossa segurança, como uma espécie, como se diz, de âncora? Queremos que sirvam só para impedir o início do processo de paz, como parece ser o caso, hoje?

Jornalista: Mas os EUA estão dizendo (o senhor com certeza viu ontem e hoje: o New York Times está dizendo que o senhor, provavelmente, é quem está inventando aquelas fotos e pagando pessoas pra dizerem que aquelas coisas são verdade. O que lhe parece tudo isso?

Presidente Karzai: São mentiras! Avise ao New York Times. Assisti diretamente ao vídeo, visitei várias pessoas feridas anteontem, havia mulheres e crianças mortas. O New York Times diz que não foram 12, que foram menos de 12. OK, digamos, para concordar com o New York Times, que tenham sido, seis, cinco? Que diferença faz? Se fosse uma única, o que mudaria?

Ninguém pode reduzir a questão vastíssima de um ataque à bomba contra uma residência de civis, contra uma moradia familiar, à discussão sobre números e imagens. Que diferença faria, se alguém usasse uma foto antiga, que não faz desaparecer o fato de que ali morreram mulheres e crianças, que uma casa de família foi bombardeada, que há mulheres e crianças mortas?

Jornalista: Não o preocupa a possibilidade de, se retirarem os soldados, ainda assim continuarão a usar os drones, como fizeram no Paquistão?

Presidente Karzai: Bem, se o fizerem, será guerra contra o povo afegão. Ao mesmo tempo em que se dizem nossos aliados, nos bombardeiam?

Jornalista: O que o senhor gostaria de ver como seu legado, depois de deixar o governo?

Presidente Karzai: Acho que meu legado já está aí. Felizmente, só faltam dois meses. Afinal, 12 anos é tempo muito longo. Quando cheguei à presidência, o Afeganistão não tinha governo; hoje, tem; não tinha Constituição; hoje, tem.

Jornalista: Acho que o senhor nunca teve aquecedores nesse palácio?

Presidente Karzai: Não, nunca. Hoje temos milhões de crianças que frequentam escolas, universidades, milhares dos nossos jovens, moços e moças, estudam no exterior. Temos Mujahid, comunistas, chefes tribais, clérigos, mulheres e homens sentados lado a lado, negociando as questões do governo e com o governo. O Afeganistão é hoje país para todos os afegãos. É minha principal realização: vivemos num país que é lar de todos os afegãos.

Há onze candidatos concorrendo nas eleições presidenciais, está aí bem representada uma combinação do povo e do pensamento afegãos.

Jornalista: E os senhores-da-guerra.

Presidente Karzai: E dos senhores-da-guerra. Todos. Esse país tem muito a mostrar. Somos gratos pela assistência que recebemos de todo o mundo. Não chegamos a falar sobre isso. Construíram escolas, clínicas, pelas quais nós agradecemos. O dinheiro que ajudou a construir estradas, a melhorar o padrão de vida, somos gratos por tudo isso, aos EUA, à Grã-Bretanha, à Europa, a todos. Mas esse país poderia ser ainda muito melhor país, com uma boa e honesta aliança, e muito menos sofrimento para o povo afegão e para os soldados de EUA e OTAN.

Jornalista: Se o Acordo de Segurança Bilateral não for assinado, os EUA também retirarão todos os financiamentos e grande parte do que o senhor listou ficará ameaçado.

Presidente Karzai: Não quero isso, mas se chegar até lá, direi ao povo afegão que temos de escolher entre continuar essa vida de incerteza, de conflito interminável, de bombas, e nos separar disso tudo, dar adeus a tudo isso, na esperança de que possamos encontrar meios próprios e viver nossa própria vida como decidirmos viver, tentar nossas ideias sobre a paz. Se você me pergunta como indivíduo, como cidadão afegão, eu preferiria viver na pobreza, a viver na incerteza. Prefiro que meu filho seja filho de alguém muito pobre, mas que viva em segurança e confiante, que possa ir todos os dias à escola e volte para casa. Não importa que volte para uma casa pobre, desde que volte e que saiba que há futuro para ele. Os EUA e o Acordo de Segurança Bilateral têm de assegurar esse futuro ao povo afegão. O dinheiro não é tudo.

Jornalista: Mas o senhor terá meios para manter seu próprio exército?

Presidente Karzai: E por que não? Sempre mantivemos nossos próprios exércitos há séculos. Não é a primeira vez que temos exército. Tivemos muitos, magníficos exércitos!

Jornalista: Sabemos muito bem disso.

Presidente Karzai: Pois é. Podemos pagar. O problema não é esse. Não acho que a dependência seja o principal fator que nos forçaria a assinar o Acordo Bilateral de Segurança. Não é. O principal fator por trás dele, ou o desejo por esse acordo, é que ele traga clareza ao conflito, que traga paz ou que identifique o culpado.

Jornalista: É verdade que o senhor não quer ser o presidente que assinou tal acordo?

Presidente Karzai: Não. Eu gostaria muito de assinar o Acordo Bilateral de Segurança, se pudesse ter certeza de que estou fazendo o melhor para o povo afegão. Sei que a ideia de permanecer engajado como ocidente, com os EUA, é acertada. Mas entregar o Acordo aos EUA, sem que nada assegure melhorias no futuro do Afeganistão, não, não está certo. E não posso assinar algo no qual, pessoalmente, não confio completamente. Não posso impor aos afegãos algo que não considero plenamente correto.

Jornalista: O senhor espera que o próximo presidente assinará o acordo?

Presidente Karzai: O próximo presidente não terá minha experiência, nem meus pensamentos. Não terá passado pelas etapas e pelas coisas pelas quais eu passei. Minha cabeça é feita do que vi. Vi poucas coisas boas, então sou cauteloso e talvez mais sábio. É resultado do que vivi. Tenho tentado manter a prudência para fazer a coisa certa. É decisão monumental, imensa, para o povo afegão.

Jornalista: Sem dúvida, é. Parece que sua história tem parte importante em sua decisão.

Presidente Karzai: Muito, muito importante. Sob pressão nossos reis assinaram coisas, e quase todas foram desastrosas para o Afeganistão. Se hoje, sob pressão, faço o mesmo, como se não soubesse as consequências? Tenho de estar absolutamente certo antes de assinar. Não é um jogo, e não é decisão individual: é uma decisão nacional.

Jornalista: O que o senhor vai fazer, quando deixar a presidência?

Presidente Karzai: O governo está construindo uma ótima casa, muito boa. E receberei uma ótima pensão, pelos padrões afegãos, é ótima. E terei muito que fazer.

Jornalista: O senhor ainda é homem jovem.

Presidente Karzai: Quando deixar a presidência, terei 56 anos e meio. Terei tempo, se Deus quiser, para viajar, visitar o país e usar bem o tempo para ir a um café, para visitar Londres no Natal, ver as luzes, os parques. Trabalhar para melhorar a educação no Afeganistão e conviver com o povo, nas ruas.

Jornalista: Lembro que o senhor contou que sentia falta de caminhar mais.

Presidente Karzai: É verdade. Sempre caminhei muito. Poderei voltar a caminhar.

Jornalista: Passar mais tempo com as crianças.

Presidente Karzai: É. Muito mais tempo...




Nota dos tradutores
[1] Percy Bysshe Shelley, The Mask of Anarchy. Trechos traduzidos em: Gato Vadio Livraria - Percy B. Shelley, “A Máscara da Anarquia”, & etc, 2008

[*] Christina Lamb (nascida em 15 de maio de 1966 em Londres, UK) é jornalista britânica que atualmente é Correspondente Internacional para o Sunday Times. Ela foi educada no University College, Oxford (BA em Filosofia, Política e Economia) e foi um Fellow Nieman da Universidade de Harvard. Ela é membro da Royal Geographical Society. Ganhou o prêmio Foreign Correspondent of the Year quatro vezes. Residiu e trabalhou em inúmeros locais como Londres, Portugal, Zimbabue, , Iraque, Paquistão e Afeganistão e  Brasil (onde casou-se com Paulo Anunciação com quem tem um filho, Lourenço –nascido em 1999). Entrevistou inúmeras figuras do cenário internacional como: Benazir Bhutto, Augusto Pinochet, Fernando Collor, Robert Mugabe. Iniciou carreira jornalística no Financial Times. 

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