quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

Estranha liberdade: origens do Leviatã neoliberal


1/1/2014, [*] Tom Mills, New Left Project
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

Atenção! Atenção! Localizado o pai & a mãe dessa por*a de “ética” udenista que desgraça todo mundo no Brasil-2014!
Hayek [em 1986] lamentou o fato de: [1]
(...) muitas pessoas não conseguirem aceitar os princípios morais que formam a base do sistema capitalista.
Quem fala aí é o guru espiritual-teórico da tucanaria da privataria & de seus jornalistas adestrados! Ele sobrevive amoitado, com a canalha toda, no Instituto Millenium e fala, TODOS OS DIAS, pela empresa-imprensa udenista reacionária golpista do Grupo GAFE (Globo-Abril-FSP-Estadão).


O que aconteceu ao nosso sonho de liberdade? Essa a pergunta que Adam Curtis propõe em seu documentário de 2007, The Trap [2] [A armadilha] (vídeo acima). Curtis mostra como, com a ascensão do neoliberalismo, uma específica visão da liberdade humana passou a dominar nossa política; aquela visão prometia libertação contra a burocracia pós-guerras e contra as limitações de classe. Mas resultou em “novos sistemas de management mais controladores” e numa “volta ao poder de classe e dos privilégios”. A liberdade neoliberal é, diz Curtis, “um tipo muito estranho de liberdade”.

No primeiro episódio de The Trap, Curtis detalha as origens dessa estranha liberdade: o suprassumo dos think-tanks da Guerra Fria, a empresa RAND Corporation. “Cérebro” do complexo industrial-militar dos EUA, a empresa RAND Corporation brotou da colaboração durante a guerra entre a US Air Force e a empresa Douglas Aircraft Company.

Embora nascida como instituto de pesquisa e desenvolvimento para equipamento militar, a RAND foi mais bem-sucedida no desenvolvimento de sistemas de análise e teoria dos jogos – a modelagem matemática da tomada de decisões estratégicas.

Os analistas da RAND Corporation usaram a teoria dos jogos para modelar a lógica da estratégia nuclear; uma loucura racional que ganhou fama na sátira macabra de Stanley Kubrick, Dr Strangelove [Dr. Fantástico, 1964 [3]], epônimo do anti-herói que há quem diga ter sido inspirado em Herman Kahn, consultor da RAND.

A influência dos modelos da empresa RAND, contudo, foi muito mais ampla e mais suspeita, como se vê em doutrinas como da “Destruição Mutuamente Assegurada”.

Como Sonja Amadae estudou em detalhes, a pesquisa que se fazia na empresa RAND foi central para o desenvolvimento da teoria da escolha racional [4] cujos pressupostos agora dominam os livros de economia e, cada vez mais, também as ciências sociais. [5]

Para mostrar o modo de pensar da empresa RAND, Adam Curtis foca a figura de John Nash, matemático e ganhador do Prêmio Nobel (representado por Russell Crowe em Uma mente brilhante, 2001 [6]). Nash especializou-se na modelagem matemática de “jogos não cooperativos”, e deu nome ao conceito de “equilíbrio Nash”, caso em que nenhum jogador, num jogo, beneficia-se por mudança unilateral na própria estratégia. Nash também sofria de uma doença mental e tinha alucinações paranoicas de conspirações comunistas. Curtis vê a visão de mundo paranoica e misantropa de Nash refletida em sua pesquisa e, parece sugerir, também refletida no modo como a teoria da escolha racional vê os seres humanos: como indivíduos isolados, calculistas.

É narrativa sedutora, mas Nash foi apenas um, de uma leva de matemáticos, lógicos e economistas dotados e politicamente comprometidos, que trabalhavam na empresa RAND e que contribuíram para o desenvolvimento da teoria da escolha racional. Dentre eles, com destaque, estava Kenneth Arrow, cujo “teorema da impossibilidade” mostrava que é impossível chegar a resultado racional a partir de um conjunto de preferências individuais organizadas em ranking. Adiante, Arrow desenvolveu [7] com Gérard Debreu uma prova do “equilíbrio econômico” – que é modelo do livre mercado perfeito.

A específica visão sobre política e liberdade humana desenvolvida por esses intelectuais orgânicos da elite do estado-empresa norte-americano foi modelada em oposição às ideias marxistas; e foi muito poderosa, no que tinha a ver com seu objetivo declarado e natureza científica.

Implícita nesses modelos da escolha racional havia um modo de ver a política, não como o reino da deliberação e da cooperação, mas como lócus de requerimentos conflitantes, encaminhados por atores isolados, calculistas.

A teoria da escolha racional, de cuja formação a empresa RAND foi protagonista formadora, coincidiu com e influenciou o movimento neoliberal.

Teve influência particularmente forte no campo da escolha pública, [8] criado por dois membros da liderança da Mont Pelerin Society, [9] James Buchanan, que também trabalhou na RAND e foi aluno de Milton Friedman, e Gordon Tullock.

Os teóricos da escolha pública aplicaram modelos da escolha racional à política democrática, vendo todos os atores como ferramentas de maximização de seus autointeresses; e rejeitando completamente a noção de serviço público que acompanhava o liberalismo incorporado no período do pós-guerra.

Outro influente teórico da escolha pública foi William Niskanen, ex-analista da empresa RAND, e que, inspirado no livro clássico e polêmico Bureaucracy (1944), de Ludwig von Mises, desenvolveu um modelo de escolha racional dos corpos do setor público, no qual demonstrava que funcionários públicos atuariam naturalmente como “maximizadores de orçamentos” e tenderiam a uma superoferta de serviços.

Sobre o livro Bureaucracy (1944), de Ludwig von Mises, há algo no “Instituto von Mises do Brasil”, afiliado do Instituto Millenium e capítulos traduzidos e comentados por... Rodrigo Constantino, “jornalista” e besta-fera da revista (não)Veja e membro ativo do mesmo Instituto Von Mises, subdivisão do mesmo Instituto Millenium [NTs].

Embora fosse apenas pequena fração do “coletivo pensamento neoliberal”, [10] a escola da escolha pública seria altamente influente na modelagem das políticas neoliberais, por causa de sua concepção mais desenvolvida da política e do estado – visão política construída em oposição, ao mesmo tempo contra (a) a expansão pós-guerra do setor público e contra (b) os movimentos radicais revolucionários dos anos 1960s.

Os pais fundadores da escola da escolha pública, Buchanan e Tullock foram, na prática, expulsos do campus da University of Virginia, pela Nova Esquerda [orig. New Left]; dali se transferiram para a faculdade Virginia Tech, onde fundaram o Centro para Estudos da Escolha Pública [orig. Center for the Study for Public Choice, ainda existente na George Mason Universty e muito próspero].

Em parte como reação aos levantes sociais daquele período, membros do Center for the Study for Public Choice dedicaram tempo considerável estudando teorias da anarquia [11] e discutindo a questão de se o estado seria necessário para preservar a liberdade econômica e a livre empresa. Chegaram à conclusão unânime de que um mundo de associações voluntárias é impossível; e que o estado é necessário para proteger a propriedade privada e garantir contratos.

Quanto a Buchanan, sua conclusão sobre isso se baseou num “equilíbrio Nash”, pelo qual demonstrou que os indivíduos sempre se darão melhor se saquearem, do que se respeitarem, a propriedade uns dos outros. Em 1986, falando em reunião fechada da Mont Pelerin Society, Buchanan disse que: “O homem é e deve continuar a ser escravo do estado”. [12]

Passagem do liberalismo para o neoliberalismo

Mark Olssen [13] compara a ideia dos teóricos da escolha pública sobre mercados e o estado e, por outro lado,”‘a tradição liberal clássica” que “sempre destacou o papel dos mercados como autorreguladores e apoiados em argumentos baseados na liberdade do indivíduo frente ao estado”:

Buchanan pôs em dúvida a ideia de que os necessários ganhos de eficiência emergiriam dos mecanismos automáticos do mercado; em vez disso, propôs que os ganhos de eficiência adviriam de controle ainda mais restrito, pelo estado.
Nesse ponto, Buchanan introduziu uma mudança significativa, da governança liberal para a governança neoliberal (...). No pensamento de Buchanan, assim, o estado teria de apertar os parafusos contra os indivíduos e estimular a vigilância pelo lado da oferta, com vistas a promover a eficiência em termos de mercado.

Olssen compara esse conjunto de ideias e a “fé naturalista de Hayek nos mercados, como sistemas espontâneos de auto-ordenamento”. Mas Hayek, de fato, como Buchanan, acreditava que um mundo de lei e ordem resultaria na erosão da liberdade individual, embora visse ameaça ainda maior na inclinação humana natural para o comportamento cooperativo, que no interesse racional para violar direitos de propriedade alheios.

Escrevendo em 1986, Hayek lamentou o fato de “muitas pessoas não conseguirem aceitar os princípios morais que formam a base do sistema capitalista”. [14] Essa falha, Hayek acreditava, era resultado de os socialistas terem ressuscitado “instintos e sentimentos primitivos” que, até ali, haviam sido contidos “pela moralidade comercial e mercantil”. Hayek acreditava também que nosso passado específico em “pequenas sociedades primitivas” deixou “sentimentos emocionais muito fortes que todos temos nos ossos e dos quais não podemos nos livrar completamente” – sentimentos que nos levariam a interferir no sistema dos mercados.

Embora Hayek tivesse visão diferente da natureza humana, se comparado aos teóricos da escolha pública, chegou a conclusão semelhante, de que era necessário “criar um quadro institucional dentro do qual o sistema de preços funcionará tão eficientemente quanto possível”. Qualquer outra providência só faria emperrar o “sistema de preços” e prejudicaria os interesses da humanidade como um todo.

Crucialmente importante naquele momento; todos os neoliberais partilhavam a ideia de que uma “sociedade livre” não emergiria espontaneamente, mas teria de ser instituída mediante quadro legal e político específico – que não seria necessariamente o mesmo ao qual a população chegaria, como um todo.

O neoliberalismo em geral, e a teoria da escolha pública em especial, tinham diagnóstico bem desenvolvido das patologias da política democrática dos anos 1970s: estado sobrecarregado capturado por interesses especiais, e populado por burocratas dedicados a atender aos seus autointeresses. Tinham também ideia clara da necessidade da autoridade do estado para reencaminhar solução para esses “problemas” e realizar a estranha ideia de liberdade humana que os neoliberais cultivavam.

Em termos de métodos, a filosofia da escolha pública, da sociedade e do estado, deve muito ao trabalho intelectual dos analistas do think-tank-empresa RAND, mas o ponto inicial daquela filosofia foi o Leviatã de Thomas Hobbes [15] e a modelagem matemática da anarquia hobbesiana feita por Winston Bush (que foi personagem decisivo na organização dos seminários do grupo da escolha pública, sobre anarquismo [16]). O elo que os liga todos a Hobbes é particularmente revelador.

Como Quentin Skinner estudou em detalhes, Hobbes, em sua época, foi pioneiro [17] de uma recriação inovadora e reacionária do conceito de liberdade, como consistente, simultaneamente, com “medo” e “repressão”. [18]

Escrevendo à época da Guerra Civil Inglesa, Hobbes rejeitou a concepção romana de liberdade, então recentemente revivida (segundo qual liberdade significava “ser livre do poder de outro”/“não ser submetido ao poder de outro” [orig. liberty as freedom from the power of another]); e argumentou a favor de noção mais estreita de liberdade, como “liberdade para movimentar-se sem restrição”.

Embora os neoliberais não tenham abraçado todo o Leviatã de Hobbes, [19] há, na visão de mundo neoliberal, ecos muito claros dessa concepção reacionária de liberdade, a qual, apesar da máscara democrático-popular, persiste como visão antidemocrática. Esse impulso foi amplamente exposto e examinado por Naomi Klein em Doutrina do Choque. Um dos exemplos mais claramente ilustrativos é a colaboração dos neoliberais, com o governo de Pinochet no Chile. [20]

Em carta para Hayek, em 1982, [21] Thatcher escreveu:

Tenho certeza de que o senhor concordará que, na Grã-Bretanha, com nossas instituições democráticas e a necessidade de obter alto grau de consentimento, algumas das medidas adotadas no Chile são inaceitáveis.

Mas, apesar do que Thatcher escreveu, as mesmas tendências autoritárias que se viram no Chile viram-se também no thatcherismo (“livre economia e estado forte”, como Andrew Gamble definiu-o). É casamento que, como a colaboração com Pinochet, só faz algum sentido se se passa ao largo da retórica neoliberal sobre “liberdade”, sem criticá-la.

Considere-se, por exemplo, o que diz Nigel Lawson, que a democracia é “uma bênção muitas vezes superestimada” e “claramente menos importante que a liberdade, a legalidade e o governo constitucional”. [22] Para Lawson, o “governo forte” do qual ele fez parte foi necessário para impor “políticas impopulares” e “o desprezo que [o governo Thatcher manifestou] pelo consenso foi, naquele momento, simultaneamente importante e plenamente justificado”.

Nessa fala, Lawson está claramente influenciado pela ênfase que os teóricos da escolha pública e os neoliberais alemães [23] davam a um quadro legal forte, para garantir apoio à “livre empresa”. Aí se tem um raro momento de manifestação transparente de um dos protagonistas mais destacados da verdadeira dinâmica da governança neoliberal. Essa dinâmica, como Alasdair Roberts detalha [24] em The Logic of Discipline [A lógica da disciplina [25]], foi construída sobre um “profundo ceticismo quanto aos méritos dos métodos convencionais da governança democrática”.

Teóricos da escolha pública e cientistas sociais conservadores como Samuel Huntington – Roberts observa – entendiam que a democracia tenderia “a produzir políticas de visão curta, instáveis, ou concebidas para atender aos interesses autorreferentes de blocos parlamentares influentes, interesses especiais bem organizados e aos interesses da própria burocracia. [26]

A solução que propuseram foi “transferir a autoridade para novos grupos de guardiões tecnocráticos”; exemplo óbvio, aí, é a “independência” dos Bancos Centrais incansavelmente “desejada” por aqueles teóricos conservadores. [27]

Na realidade, a “lógica da disciplina” criada pelos neoliberais levou, nem tanto ao surgimento de uma nova elite tecnocrática, mas, isso sim, à total dominação, pelo big business, de todos os instrumentos para propor políticas, de políticas monetárias a políticas de infraestrutura, arte, cultura e outras. Sobretudo, porque a criação/implantação da tal “sociedade livre” exigiria não só o desmonte das funções já parcialmente democratizadas do estado, mas, também, o disciplinamento, não raras vezes violento, das próprias populações, para que se submetessem aos novos arranjos ditos “livres” e “democráticos”.

Por isso, apesar de toda a conversa sobre “liberdade” e “direitos”, os governos neoliberais, na prática, supervisionaram e promoveram um fortalecimento nos aparelhos do estado repressivo, incluindo ampliação dos poderes policiais até bem além dos limites liberais clássicos – com encarceramento cada vez em maior número e cada vez mais racializado, das populações urbanas pobres.

Com o colapso dos mercados financeiros globais em 2008, na Grã-Bretanha, como por toda parte, vimos o aparelho coercitivo do estado neoliberal em plena oscilação: do tratamento duríssimo que aplicaram aos jovens envolvidos nos tumultos de 2011 em Londres, ao tratamento ainda mais duro que o Governo de Coalizão aplicou no desmonte do estado de bem-estar. Não há ironia alguma nesse estado de coisas.

O crescimento do “governo tecnocrático” em resposta à crise do euro e a crescente repressão contra a oposição política não é surpresa, nem aberração: é o próprio impasse lógico de uma visão política sombria, construída em oposição aos avanços democráticos.

Assim, se vai realizando a estranha ideia de liberdade que se esconde na raiz da distopia neoliberal, e da qual o establishment político não oferece saída.


Notas de rodapé

[1] “Hayek e o mercado moral”, (The Moral Imperative of the Market). Leiam lá! Não é a cara, escarrada, dos discursos “éticos” moralizantes de toooooodos os colunistas de tooooodo o “jornalismo” brasileiro?! Im-pres-si-o-nan-te!

[2] Assiste-se também ao documentário em: The Trap: What Happened to Our Dream of Freedom?

[3] Assista em Dr. Fantástico

[4] Teoria da escolha racional (para ter alguma ideia do que seja), ver.

[5] S.M. Amadae, Rationalizing Capitalist Democracy: The Cold War Origins of Rational Choice Liberalism (University of Chicago Press, 2003).



[8] Teoria da escolha pública (para saber o que é, no geral).


[10] “Defender o capitalismo: ascensão do Coletivo do Pensamento Neoliberal” [Defending Capitalism: The Rise of the Neoliberal Thought Collective (Part 1)], New Left Project.


[12] James BUCHANAN, ‘Man and the State,’ MPS Presidential talk, 31 August 1986, cited in Philip Mirowski, Never Let a Serious Crisis Go to Waste: How Neoliberalism Survived the Financial Meltdown (Verso, 2013), p. 41.

[13] Mark OLSSEN, Liberalism, Neoliberalism, Social Democracy: Thin Communitarian Perspectives on Political Philosophy and Education (Routledge, 2009), p. 17.

[14] Hayek e o “mercado moral”: The Moral Imperative of the Market




[18] Thomas HOBBES, Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de um Estado Eclesiástico e Civil [1651], CAP. XXI: Da liberdade dos súditos - 0 que é a liberdade - 0 que é ser livre - 0 medo e a liberdade são compatíveis - A liberdade e a necessidade são compatíveis.

[19] ROBERTS, Alasdair, The Logic of Discipline: Global Capitalism and the Architecture of Government (Oxford University Press, 2011), p. 4

[20] Sobre o livro, os Chicago Boys, os neoliberais e o pinochetismo.





[25] ROBERTS, Alasdair, The Logic of Discipline: Global Capitalism and the Architecture of Government (Oxford University Press, 2011).

[26] Idem, ibidem, p. 4.

[27] Idem, ibidem, p. 6.
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[*] Tom Mills é pesquisador investigativo freelance e doutorando na University of Bath. Seu trabalho de pesquisa concentra-se em corporações, impostos, política externa britânica e corrupção. Contribuiu com pesquisas para artigos de diversos meios de comunicação, relatórios e livros e é co-editor do New Left Project.

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