sábado, 23 de novembro de 2013

Pepe Escobar: "Por que os EUA não sairão do Afeganistão"

22/11/2013, [*] Pepe Escobar, Russia Today
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

Soldados dos EUA vigiam local próximo de um ataque suicida em Maidan Shar, cidade capital de Wardak, província ao sul de Kabul em 8/9/2013. (AFP Photo/Shah Marai)
Viemos. Vimos. Ficamos. Para sempre. Eis a essência do chamado Acordo Bilateral de Segurança [orig. Bilateral Security Agreement (BSA)] a ser firmado entre o governo Obama e o Afeganistão – mais de 12 anos depois de iniciada a interminável Guerra ao Terror.

O presidente Obama e o secretário de Estado dos EUA, John Kerry definem o tal acordo como uma “parceria estratégica”. Se for, é a parceria mais desigual em toda a história: o presidente afegão Hamid Karzai não passa de fantoche, decorado com precisão de alfaiataria, dos norte-americanos.

Kerry anunciou o chamado acordo BSA em Washington na 4ª-feira, mesmo antes do “Grande Conselho” (em pashtun, Loya Jirga) de 2.500 líderes tribais afegãos, clérigos, membros do parlamento e comerciantes iniciarem os trabalhos de quatro dias de deliberações, numa tenda no campus da Universidade Politécnica em Kabul, na 5ª-feira.

Mas foi quando Karzai, no discurso que, provavelmente, foi o seu último grande pronunciamento como presidente, jogou uma jogada espetacularmente arriscada. Ele sabe que está sendo e será acusado de jogar o Afeganistão rio (Panjshir) abaixo. Sabe que está sacrificando a soberania do Afeganistão por muitos anos, para o futuro – e que pagará caro por isso.

Então, mais uma vez, encarnou Hamid, O Ator, e fez-se de negociador sério e honesto, insistindo em que o acordo BSA deve ser adiado para depois das eleições presidenciais afegãs, em abril de 2014, e que deve ser assinado por seu sucessor.

Fez drama.

Há desconfiança entre os norte-americanos e eu. Eles não confiam em mim, e eu não confio neles. Sempre os critiquei e eles, pelas minhas costas, sempre propagaram coisas negativas – disse ele.

Já assisti a Jirgas no Afeganistão; até olhar aqueles rostos tribais, enrugados, imperscrutáveis, já é, em si, um espetáculo. O que estariam pensando aquelas pessoas em Cabul? É claro que não confiavam nos norte-americanos. Mas confiariam em Karzai? Será que veem que tudo aquilo não passa de encenação?

Uma Loya Jirga consultiva não tem poder para vetar o BSA. Até o presidente da Jirga, Sibghatullah Mojadeddi, lembrou que Karzai pode assinar o acordo sem qualquer consulta. Mas Karzai insiste que não assinará, se não tiver a aprovação da Loya Jirga.

Muitos membros do Parlamento afegão e toda a oposição afegã já votaram a tapa, boicotando a Jirga. Para nem falar dos Talibã – parte essencial de qualquer acordo sobre o futuro do Afeganistão – e o ainda totalmente armado “Exército do Islã” [Hezb-e-Islami]. Todos esperam ansiosamente para ouvir o líder supremo dos Talibã, quando subir ao palco para o seu kabuki.

Soldados dos EUA chegam no local de um ataque suicida em Maidan Shar, cidade capital de Wardak, província ao sul de Kabul, em 8/9/2013. (AFP Photo/Shah Marai)
Contraterrorismo grátis para todos

A “negociação” do BSA foi como um sketch de Monty Python estendido. Washington sempre insistiu que os soldados dos EUA podem invadir casas de afegãos o quanto queiram, e mesmo assim continuar imunes a qualquer tipo de processo judicial no Afeganistão. Ou isso, ou os EUA deixam o país no final de 2014, deixando lá o Exército Nacional Afegão [Afghan National Army (ANA)], mal treinado e quase totalmente corrompido, para enfrentar os Talibã.

Até a mais recente encenação de Karzai, o governo Obama tinha o acordo como favas contadas. Basta ler a carta que Obama enviou a Karzai.

Ah! De desculpas, nem se fala! A conselheira para assuntos de segurança, Susan Rice disse que Washington nada deve, em matéria de desculpas, por ter matado e ferido dezenas de milhares de civis afegãos desde 2001, nem por ocupar vastas porções de território afegão. Antes, um porta-voz de Karzai dissera o contrário.

Na dúvida, basta ouvir o seador Lindsay Graham, mega-linha-dura, que disse à Reuters:

Estou boquiaberto. Desculpas, por quê? Talvez seja o caso de exigir que o presidente afegão peça desculpas aos soldados dos EUA, por tudo que os fez passar.

Soldados dos EUA levam o Sargento Matt Krumwiede, ferido por um dispositivo explosivo improvisado (IED), para um helicóptero Blackhawk no sul do Afeganistão, 12 /6/2012. (Reuters/Shamil Zhumatov)
Nada há de “residual”: é ocupação norte-americana a ser disfarçada como se fossem “forças” necessárias para treinar e “aconselhar” os não mais de 350 mil soldados e policiais que compõem o Exército Nacional Afegão, criado do nada durante os últimos poucos anos.

Aqui se fala de um acordo que começará a ser vigente em 2015, com efeitos até 2024 “e além”.

O acordo final não é muito diferente da versão que vazou [já não é encontrável na página de Russia Today (NTs)]. Essa semana, começou a circular no Pentágono e no Congresso dos EUA uma versão atualizada. O Pentágono, via o general Martin Dempsey, Comandante da Junta de Comandantes do Estado-Maior, justifica a coisa toda, recorrendo à proverbial necessidade de “manter a segurança do Afeganistão” e garantir que a ajuda externa não seja desperdiçada (como sempre foi).

Haverá muitas bases e postos militares dos EUA; bases afegãs; e outras bases das quais os EUA têm “uso exclusivo”. Bagram, Kandahar, Jalalabad e Mazar-e-Sharif estão, inevitavelmente na lista. Mais uma vez, trata-se do Império Norte-americano de Bases – tão bem caracterizado pelo falecido Chalmers Johnson – em sua melhor forma.

O general de Marinha, Joseph Dunford, atual comandante militar de EUA/OTAN no Afeganistão, quer que fiquem mais de 13 mil soldados, sem contar guardas de segurança e o crème de la crème, a gangue do contraterrorismo. Em teoria, essas forças não entrarão em combate, “a menos que as partes decidam conjuntamente, de outro modo”. O texto da versão provisória enfatiza:

Operações militares dos EUA para derrotar a Al-Qaeda e seus grupos afiliados podem ser indicadas, na luta comum contra o terrorismo.

Tradução: um futuro festival de raids pelas Forças Especiais, e contraterrorismo grátis para todos.

O texto provisório só fala, vagamente, de “pleno respeito à soberania afegã e plena consideração à segurança e proteção do povo afegão, inclusive dentro das casas” – como Obama também mencionou na carta a Karzai.

E silêncio, absolutamente nenhuma palavra, sobre o emprego crítico de drones baseados em bases afegãs, que foram usados para incinerar o velho comandante, mas, também, quantidades incalculáveis de civis inocentes nas áreas tribais do Paquistão.

O caso é sempre o pivoteamento rumo à Ásia

O governo Maliki em Bagdá teve colhões para confrontar o Pentágono e vetar a imunidade para as forças dos EUA – e efetivamente chutou para fora do Iraque a força de ocupação. Hamid Karzai, por sua vez, aceitou virtualmente todas as demandas norte-americanas. A questão chave nos próximos meses é “em troca de quê?” Proteção à moda mafiosa, se ele ficar no Afeganistão, ou o equivalente ao programa de proteção a testemunhas do FBI, caso mude-se para os EUA?

Mesmo assumindo que a Loya Jirga endosse o acordo BSA (o que ainda não está definido) e que o sucessor de Karzai assine (com Karzai conseguindo safar-se das cordas), dizer que tudo isso abre uma nova caixa de Pandora é dizer muito pouco.

Para todas as finalidades práticas, a ocupação continuará. Nada disso tem qualquer coisa a ver com combater a Guerra ao Terror ou a Jihad. Não há Al-Qaeda no Afeganistão. Os poucos remanescentes estão no Waziristão, território paquistanês. Os EUA estão – e continuarão em guerra, essencialmente, contra pashtuns afegãos que são membros dos Talibã. E os Talibã continuarão a fazer suas ofensivas de primavera e verão enquanto houver qualquer tipo de ocupação estrangeira em solo afegão.

Soldados dos EUAparticipam da cerimônia de comemoração do 4 de julho na base aérea de Bagram, ao norte de Cabul, 4 /7/2013. (Reuters/Omar Sobhani)
A guerra dos drones continuará, com o Pentágono e a CIA a servirem-se daquelas bases afegãs para atacar pashtuns nas áreas tribais do Paquistão. Para nem mencionar que aquelas bases norte-americanas, para serem operacionais, carecem de acesso irrestrito às rotas de trânsito paquistanesas, do desfiladeiro Khyber e do corredor Quetta-até-Kandahar. Significa que Islamabad continua a lucrar, recolhendo gordas taxas de passagem, em dólares norte-americanos.

Ainda não se sabe como a Organização de Cooperação de Xangai responderá a isso. Não só Rússia e China – que se opõem absolutamente às bases dos EUA no Afeganistão – mas também Irã e Índia, observadores na OCX, e dois países que podem balançar o Afeganistão para longe dos Talibã, sem recorrer a meios militares.

Pode-se delinear, por exemplo, um desenvolvimento futuro praticamente inevitável: Washington decide implantar o sistema de mísseis de defesa dos EUA no Afeganistão (já aconteceu na Turquia). Rússia e China já estão vendo que é possível que os EUA tenham perdido a disputa econômica pela Ásia Central – enquanto a China assina negócio após negócio no contexto da sua grande estratégia da(s) Nova(s) Rota(s) da Seda. O que sobra para Washington é – adivinhem! – cacos e pedaços desconjuntados da mesma velha doutrina do Espectro de Plena Dominação, do Pentágono, tipo... bases militares para “monitorar” China e Rússia, de pontos muito próximos das respectivas fronteiras.

Certo, mesmo, é que ambas, Rússia e China – para nem falar do Irã – veem essa “Operação Ocupação Perpétua do Afeganistão” como o que ela é: mais um capítulo (militar) do “pivoteamento” dos EUA para a Ásia.


[*] Pepe Escobar (1954) é jornalista, brasileiro, vive em São Paulo, Hong Kong e Paris, mas publica exclusivamente em inglês. Mantém coluna (The Roving Eye) no Asia Times Online; é também analista de política do blog Tom Dispatch e correspondente/ articulista das redes Russia Today, The Real News Network Televison e Al-Jazeera. Seus artigos podem ser lidos, traduzidos para o português pelo Coletivo de Tradutores da Vila Vudu e João Aroldo, no blog redecastorphoto.
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