sexta-feira, 11 de outubro de 2013

EUA: A etiqueta da guerra e da vigilância

Charge de Harm
Cartas ao Coronel Boas-Maneiras (Aposentado)

10/10/2013, [*] Tom Engelhardt, TomDispatch
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

NOTA DO EDITOR: Em tempos de governo dos EUA sequestrado no “trancamento”, o jornal clássico dos militares, Stars and Stripes, também enfrenta alguns dos problemas que hoje atormentam os mortais civis, e teve de reduzir a edição impressa. Dentre as sessões que se foram, está a sessão “Caro Abby”, de conselhos ao leitor. Nosso TomDispatch apresenta-se como substituto.

Começamos por cartas escritas por um velho e respeitado amigo, o Coronel Boas Maneiras (Aposentado), cuja experiência em assuntos militares e de vigilância está bem comprovada em seu Curriculum Vitae (infelizmente, é documento altamente sigiloso). O trabalho do Coronel BM é responder cartas de norte-americanos desnorteados ou intrigados com a etiqueta, os modos e a linguagem do arcano mundo da segurança nacional de Washington. Aqui [vai uma amostra de coluna de cartas ao leitor que, sindicalizada e bem administrada, pode vir a ser sucesso global].

Prezado Coronel Boas Maneiras,

Quem lhe escreve é um velho e bombardeado editor de jornal. Li recentemente na revista New Yorker um artigo de Ken Aulettaque inclui o seguinte perturbador parágrafo sobre o New York Times:

No início de agosto, o Times trabalhava numa matéria sobre uma ameaça terrorista interceptada, quando James R. Clapper, diretor da inteligência do governo, ordenou ao jornal que omitisse alguns detalhes. Clapper avisou que, se publicasse a versão completa, o Times “ficaria com as mãos sujas de sangue”.

O Times não publicou os tais detalhes.

O problema é que, com tantos e tais documentos secretos vazados de Washington e já chovendo todos os dias sobre o mundo,e dado que é perfeitamente possível que alguns dos documentos secretos acabem chegando cá no meu jornal, muito me preocupa o risco de eu também ficar com as mãos sujas de sangue. No plano pessoal, sou covardíssimo no que tenha a ver com sangue. Na escola, tive de sair da sala, quando o professor de biologia mostrou um filme sobre Harvey e a descoberta do sistema circulatório. Quando assisto ao seriado Grey’s Anatomy, tenho de fechar os olhos, quando começa aquela sangueira, nas cirurgias. É eu ver um reles dedo cortado, e desmaio. O senhor tem alguma sugestão?

Editor estressado e sanguineamente muito ansioso, em Chicago
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Prezado Editor estressado (etc.),

Entendo seu problema. Felizmente, sinto-me à vontade para assegurar-lhe que é só coisa que meteram na sua cabeça. Para compreender por quê, você trate de entender claramente que um negócio perfeitamente claro em Washington pode ser menos claro em Chicago. Se um funcionário do governo sugere que alguém externo ao governo pode sujar as mãos de “sangue” – o que aconteceu várias vezes, por exemplo, no imbroglio de Bradley Manning – trata-se de sangue possível, sangue prognóstico; pode-se dizer, sangue futuro. Os mais recentes estudos científicos mostram que as reações negativas ao sangue são desencadeadas, em parte, pela cor vermelho alarmante. O outro sangue, possível, prognóstico, futuro, que é sangue metafórico, não é vermelho. Na hipótese de que aconteça de você sujar suas mãos naquela substância, você, propriamente dito, não “verá” coisa alguma.

Em Washington, acontece mais ou menos o mesmo fenômeno também com sangue passado. Considere o diretor Clapper, da Inteligência Nacional. De 2001 a 2006, foi diretor da Agência de Inteligência Nacional Geoespacial, depois foi subsecretário de Defesa para Inteligência, antes de Obama nomeá-lo para dirigir toda a inteligência nacional. Em outras palavras, Clapper serviu em Washington durante as guerras do Iraque e do Afeganistão, e também durante a Guerra Global ao Terror. Como muitos funcionários em Washington, militares e civis, que apoiaram a missão global dos EUA ao longo de todos esses anos, poder-se-ia dizer que ele teria alguma responsabilidade sobre algumas mortes e, assim, teria mãos “sujas de sangue”. Só no Iraque morreram quase 4.500 norte-americanosno Afeganistão, só até agora, já foram quase 2.300 mortosalém das dezenas de milhares de iraquianos e afegãos que morreram naqueles anos.

Eis onde quero chegar: Washington não se deixa perturbar por esses sangues. A razão é simples: é sangue invisível, ninguém vê. Eu próprio, que conheço Clapper pessoalmente, posso assegurar que, quando ele lhe dá bom-dia e aperta-lhe a mão, não há nem o mais ínfimo traço de sangue nas mãos dele. (E Clapper é homem desses que, quando aperta uma mão, aperta mesmo!).

Espero que essas informações sirvam para levantar-lhe o ânimo. Como tantos outros luminares do universo de nossa segurança nacional, Clapper é exemplar. Nada o afasta de seus objetivos, e seu “sangue”, esse sim, é tido como muito mais real que o sangue metafórico e altamente especulativo que pode talvez chegar às mãos de jornalistas por um ou outro assassinato relacionado à divulgação de documentos secretos. Observe que, apesar do número aparentemente muito alto desses documentos em anos recentes, não há registro de sangue realmente respingado constatado.

Sinceramente seu,
Coronel Boas-Maneiras (Aposentado)
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Prezado Coronel Boas-Maneiras,

Como proprietário de uma loja de móveis em Kalamazoo, Michigan, estou preocupado com a ação de concorrentes nesse mercado, especialmente a IKEA. Eis o que quero saber: recentemente, falando do Irã, o presidente Obama disse que “todas as opções continuam sobre a mesa”, acrescentando que “faremos todo o possível para assegurar que o Irã não chegue à bomba atômica”. Já observei que, desde o 11/9, essas frases foram-se tornando cada dia mais e mais populares em Washington. Interessa-me, sobretudo a mesa de que tantos falam. Dado que parece específica para suportar sistemas de armas de vários tipos (e só isso e nada além disso; ou, pelo menos, jamais se fala de outros itens a serem postos ou mantidos sobre a mesa), gostaria de saber: que empresa fabrica esse tipo de mesa? Vendem no varejo? Só no atacado? Essa mesa existe ou é só modo de falar? É mesmo mesa ou é algum código, para referirem-se a um futuro ataque militar contra o Irã (ou contra seja lá quem for)? Será grande demais para a minha loja? Agradeço antecipadamente por qualquer informação.

Mesista de Kalamazoo

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Caro Mesista de Kalamazoo,

Ah, a mesa existe, sim. Vi uma vez. Não posso dizer onde, porque em cima dela havia um lança-mísseis. Devo dizer que não é, propriamente dita, uma mesa – objeto de quatro pernas, superfície superior plana, frequentemente presente em nossas cozinhas ou salas de jantar. Mas, mais, não posso dizer. Tenha certeza, porém, de que quando o presidente diz “todas as opções estão sobre a mesa”, é porque sim, estão. E você acerta na mosca quando observa que as tais opções “todas” são, sim, militares. Apesar de sempre dizerem “todas as opções estão sobre a mesa”, no singular, verdade é que há uma mesa para cada país, caso a caso; a mesa síria, por exemplo, serve de apoio a mísseis Tomahawk e bombardeiros B-2; sobre a mesa iraniana, apoiam-se aqueles tanques arrasa-quarteirão, dentre outros sistemas de armas.

Não sei se você percebeu, mas na noite anterior ao recente trancamento do governo, o Pentágono entrou em surto de compras e enfiou US$ 5 bilhões nas contas correntes dos principais fabricantes de armas (e outros). Conforme informação de alguém em quem confio em Washington, a comunidade de inteligência também meteu o pé na jaca do próprio orçamento e comprou vários itens, inclusive três (segundo se sabe) “mesas para [pôr sobre ela] opções”, ao custo de milhões de dólares. (Lamento, mas mais uma vez, o valor preciso é informação secreta). Infelizmente, sou obrigado a informar que você não pode vender essas mesas em sua loja. A boa notícia é que a [concorrente] IKEA também não.

Atenciosamente,
Coronel Boas Maneiras (Aposentado)
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Prezado Coronel Boas Maneiras (Aposentado),

Tenho de solicitar sua discrição, por razões que logo o senhor compreenderá. Há 12 casos documentados nos quais um empregado da Agência Nacional de Segurança dos EUA usou os programas de vigilância da referida agência para espionar os e-mails de um ou uma parceira(o), amante ou alguém que lhe interessava do ponto de vista romântico, ou para ouvir seus telefonemas. E isso é em geral considerado “a ponta do iceberg”. Sou empregado civil da Agência Nacional de Segurança dos EUA. Considere-me o 13º caso, o da má sorte. Sei que esses atos são chamados sardonicamente de LoveINT [Inteligência Amorosa], mas o meu caso nada teve de amoroso. Como disse à minha ex-parceira, eu só queria saber se ela e um amigo nosso estariam planejando uma festa surpresa para o meu aniversário. (Sou desses que não gostam de ser apanhados desprevenidos).

A Agência nada fez contra mim, mas minha parceira jamais me perdoou. (Ela agora vive com o nosso amigo). Ela insiste até hoje que eu devia pedir desculpas. Considero isso irracional. Ninguém foi prejudicado. Disse a ela que a Agência Nacional de Segurança espionou até os e-mails da presidenta Dilma Rousseff do Brasil, e que nem por isso o presidente dos EUA pediu desculpas. A única resposta dele foi inventar uma “ampla revisão” das práticas da Agência, que vai durar muitos meses(O senhor pode acreditar em mim: nada há a investigar. Já investigamos!). Tanto quanto posso ver, são casos equivalentes: como minha ex-parceira, a presidenta Dilma reagiu de modo exageradamente emocional: cancelou visita planejada a Washington e, depois, denunciou os EUA à ONU. Eis meu problema: se o presidente não teve de pedir desculpas, por que eu teria (de pedir desculpas?). Quem está do lado certo, nesse caso? Por favor, resolva essa minha dúvida.

13, o Azarado
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Estimado Azarado 13,

Temo que as regras de etiqueta sejam diversas, nos dois casos aos quais você faz referência. Lamento muitíssimo, mas tenho de dizer-lhe você está do lado errado e, sim, deve pedir desculpas. Na vida pessoal, é importante dizer “me desculpe” a todos aos quais tratemos mal, e espionar os e-mails de sua parceira é, definitivamente e por definição, tratá-la muito mal.

Assim também, em escala global, se, digamos, o governo argentino tivesse espionado os e-mails da presidenta Rousseff, sim, as boas maneiras o obrigariam a pedir desculpas. Nem preciso explicar o óbvio: os EUA não são nação normal. São a única superpotência do planeta. Regem-se por outro livro de etiqueta, que os próprios EUA escrevem – e assim são as coisas, como têm mesmo de ser. Assim sendo, se nós, norte-americanos, estávamos agindo conforme o nosso livro, no caso da espionagem da Agência versus Rousseff, por que teríamos de pedir desculpas? Desculpas por quê?

Todos sabemos que presidentes dos EUA não se desculpam pelos feitos de seus espiões nem de seus soldados, ou hackers, ou comandantes ou drones. Além do mais, é óbvio que esse pedido de desculpas seria absolutamente inviável e poria esse país no caminho direto ao inferno. Afinal, se um presidente parasse de agir como reza o livro das superpotências (mas só há uma) e se pusesse a pedir desculpas, imagine só a caixa de Pandora que estaria abrindo (sem nem rastro de esperança no fundo da caixa).

Se fôssemos nação normal, a lista de feitos pelos quais teríamos de pedir desculpas, só na última década, incluiria sequestros, torturaabusosassassinatosprisões clandestinasassassinatos premeditados  etc., etc., etc..

Assim sendo, Azarado 13, engula aí sua má sorte, peça desculpas à moça, mas não peça que o presidente também o faça.

Confidencialmente,
Coronel Boas-Maneiras (Aposentado)
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Caro Coronel Boas Maneiras (Aposentado),

Sou dona de casa em Tulsa e tenho uma pergunta sobre o plano do presidente para invadir a Síria. Sei que, no fim, não aconteceu, e espero que o senhor não me ache tola, por ainda falar do assunto, um mês depois. Mas é que não consigo tirar a coisa da cabeça. Por que o que se chama “intervenção humanitária” quando o presidente (e o Pentágono) planejam, tanto quanto consigo entender, sempre é bombardear Damasco com mísseis Tomahawks e bombas? Não vejo aí nada nem de “humano” nem de “humanitário”. E há outro problema, relacionado ao primeiro: por que esses ataques sempre são chamados de “cirúrgicos” e “precisos”, se, tanto quanto tenho visto, sempre matam civis?

Titia de Oklahoma
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Cara Titia de Oklahoma,

Não, seu pensamento não é nada tolo! Comecemos pelo “cirurgicamente precisos”. A resposta é: os fabricantes de armas norte-americanos são os melhores do mundo e, portanto, nossos modelos mais modernos são, sim, cirúrgicos e precisos no impacto. Mas não esqueça que, como estudos têm comprovado, nem tudo pode ser assim lá muito cirurgicamente preciso.

Considere, por exemplo, que recentes relatórios sobre cirurgias, publicados na revista Archives of Surgery, mostram que, num período de seis meses, médicos no Colorado operaram o paciente errado em pelo menos 25 ocasiões; e em 107 casos operaram a parte errada do paciente certo. Quero dizer... cirurgicamente precisos, sim, mas sem exageros!

Quanto à expressão “intervenção humanitária”, como você talvez tenha sido informada, a Suprema Corte, já há muito tempo, deu “personalidade” às empresas[personalidade jurídica] quer dizer, tornou-as “pessoas”, para efeitos da lei. O Pentágono, então, fez o mesmo, no caso dos mísseis Tomahawk, para efeitos da guerra. A “transformação” pode não ter peso de lei, mas, sim, tem muito peso!

Dado que o Tomahawk é míssil norte-americano (produzido pela empresa Raytheon, legítima filha dessa pátria), e dado que, por definição, o que nós, norte-americanos, todos, fazemos, é sempre feito com a melhor das intenções e com bondade essencial no coração, quero dizer, nós somos, sim senhora, excepcionaissomos únicos, como nós, só há nós, seja na guerra seja na paz, se nós atacarmos com mísseis seja a Síria seja onde for, o ataque sempre será, por definição, ao mesmo tempo “humano” e “humanitário” – e só para completar o pensamento, acrescento que, se alguém negar tudo isso, já será “intervenção” (contra nós).

O currículo de intervenções em que Washington interveio, fala por ele mesmo. Nenhum país do mundo jamais foi tão prolífico intervencionista quanto os EUA – é um recorde, e recorde que é recorde tem de ser motivo de orgulho.

Definicionalmente,
Coronel Boas-Maneiras (Aposentado)

[*] Tom Engelhardt é um escritor e editor americano. Ele é mais conhecido como o criador blog tomdispatch.com. Também é co-fundador do American Empire Project e autor do livro, The End of Victory Culture: Cold War America and the Disillusioning of a Generation em 1998. Engelhardt é editor por mais de trinta anos, trabalhando em livros e publicação de notícias. No passado foi editor sênior da Pantheon Books onde editou livros como Maus de Art Spiegelman. Atualmente é um editor/consultor no Metropolitan Books e ministra um curso de primavera na Escola de Pós-Graduação de Jornalismo da Universidade da Califórnia, Berkeley; Engelhardt graduou-se na Yale University e pós graduou-se (mestrado) na Harvard University onde é membro fundador do Commitee of Concerned Asian Scholars.

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