segunda-feira, 14 de outubro de 2013

Conflicts Forum – Comentário semanal (27/9 – 4/10/2013)

29/9-4/10/2013 (publicado em 11/10/1013) [*] Conflicts Forum
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu


Graham Fuller
Em artigo recente, Graham Fuller, ex-vice-presidente do Conselho de Inteligência Nacional dos EUA, especulava sobre se “é possível que o presidente Obama – sem articulação alguma e, talvez, até, sem que essa fosse sua intenção clara ou completa – tenha iniciado uma re-formatação radical da política externa dos EUA?”. Fuller referia-se à recente repentina reviravolta: um dia, as bombas logo começariam a chover sobre a Síria; e, de repente, somos informados de contatos cordiais entre os presidentes do Irã e dos EUA –, acrescentando que um corpo conectado de axiomas intocáveis da política externa dos EUA podem também estar sendo silenciosamente revertidos: o excepcionalismo norte-americano, o unilateralismo norte-americano e os EUA como arquitetos da “ordem global”.

De fato, Fuller incluiu outros dois axiomas em sua lista de axiomas que poderiam estar sendo revertidos: “os EUA como policiais do mundo, como comentadores morais [itálicos de Conflicts Forum] e como hegemon mundial”. Esses últimos são particularmente interessantes, porque provavelmente explicam mais do por quê estaria ocorrendo mudança de tal importância. Esses últimos axiomas podem ter sido os motores da mudança – em vez de aí estarem, simplesmente, como consequências da mudança. Pode estar aí sugerido também que a mudança talvez não seja tão “repentina” como se supôs. Fuller sugere isso. 

O que se tornou tão aparente em relação à Síria foi que o “sistema dos EUA” foi “contido” [no sentido de parou ali (NTs)], antes de qualquer intervenção na Síria, por mais limitada que fosse. A opinião pública e o Congresso dos EUA afastaram-se decididamente da posição de policiais e árbitros morais das sociedades do Oriente Médio, e do papel de potência hegemônica global. O público, depois de concluídas as pesquisas, dava “polegares para baixo” para toda a tal missão, a toda aquela narrativa da raison-d’être dos EUA, ao mesmo tempo em que a maioria dizia “não” à chuva de bombas contra Damasco.

Obama mostra "verdadeira sabedoria"
O que Fuller sugere é que Obama não está mostrando fraqueza, mas “verdadeira sabedoria”, ao reconhecer que os EUA simplesmente não podem persistir na mesma linha, num momento em que o unipolarismo está em visível erosão ante repetidos e crescentes revides; e que o desarranjo moral dentro dos EUA está minando a confiança da opinião pública norte-americana e seu apetite para intrometer-se, com lições de moral, em cada um e em todos os conflitos pelo mundo.

A mudança é mais diretamente aparente em termos de política exterior (a abertura para o Irã), mas as implicações para a evolução da ordem internacional são também importantes – se não mais importantes.

Em termos da mudança da política dos EUA na direção do Irã, pode parecer que seja “subproduto” do acordo com os russos sobre as armas químicas sírias, e a nova direção política que se vê hoje no Irã. Mas essa mudança também pode ter raízes mais profundas no modo como os EUA percebem hoje diretamente os seus próprios interesses nacionais – mesmo que ainda não seja politicamente aceitável articular muito publicamente esses novos interesses.

Mike Morrell
Ex - nº 2 da CIA
O n. 2 da CIA recentemente aposentado deu uma entrevistana qual disse explicitamente que, embora não seja ameaça direta contra os EUA hoje (porque ainda é mais uma ameaça regional), parecia-lhe que a crescente ameaça jihadista na Síria tem de ser vista, desde já, como a principal ameaça potencial contra os EUA no longo prazo. Quis dizer que um objetivo comum – uma meta comum – abre-se para o Irã e os EUA: lutar contra a crescente ameaça que vem dos movimentos sunitas extremistas (takfiri) na Síria e na região. Veem-se sinais já há algum tempo em alguns setores do sistema nos EUA, de que já se reconhece claramente a ineficácia do ilusório Exército Sírio Livre, e de que o braço armado do Conselho Nacional Sírio e o Conselho Militar Sírio são impotentes para “derrubar” os movimentos jihadistas na Síria. A única força capaz de conseguir esse resultado (e que, de fato, já o está conseguindo) é o Exército Sírio (com ajuda, embora limitada e específica, do Hezbollah e do Irã).

Há também interesses partilhados entre EUA e Rússia (que vê a Síria como a “linha de frente” - que tem de ser seduzida – se os dois países desejam conter a expansão de uma nova fase do extremismo islâmico em crescimento). Nessa empreitada, o Irã pode ajudar. Em resumo, é possível que a hostilidade dos EUA à ascensão do extremismo sunita na Síria e em outros pontos seja hoje uma causa comum que aproxima Washington e Teerã – a qual estaria superando largamente qualquer interesse comum que os EUA tivessem algum dia partilhado com os estados do Golfo – particularmente se os EUA vão-se tornando menos dependentes do petróleo do Oriente Médio, e em vista do relacionamento equívoco e de certo modo dúbio que os estados do Golfo mantêm com aqueles movimentos extremistas. Os interesses dos EUA estão em metamorfose.

Em termos da ordem internacional, Fuller sugere que, enquanto o unilateralismo vai evanescendo, Obama estaria efetivamente inaugurando uma nova compreensão, segundo a qual doravante será preciso negociar com as preocupações e interesses legítimos de outros estados – deixando para trás a confortável certeza de que os interesses dos EUA seriam “um bem universal”.

Para compreender as amplas implicações dessa mudança que parece permanecer não noticiada, temos de compreender como a ordem internacional vinha evoluindo. É precisamente a evolução futura que torna o reconhecimento de Obama potencialmente tão significativo.

Depois da Guerra Europeia (2ª Guerra Mundial), uma ordem internacional – e seu concomitante arcabouço legal – foi criada mediante o consenso de estados soberanos independentes. É o que os especialistas em Direito Internacional chamam de abordagem “positivista” da ordem global, pela qual as regras das relações internacionais (lei internacional) são criadas mediante o consenso de estados soberanos independentes, e devem ser interpretadas em sentido estrito.

Direito Internacional "made in USA", Inglaterra & França
Mas esse entendimento vem discrepando do modelo que EUA e alguns países europeus (especialmente Grã-Bretanha e França) têm preferido, o qual dá ênfase maior a uma visão da ordem internacional mais política, ou mais orientada para resultados. Por essa visão, o que interessa na resposta a determinados desafios internacionais identificados é a formulação de metas ou “resultados” a buscar. Não a lei internacional per se, mas as novas metas ou missão, mesmo que atropelem a lei internacional. Essa abordagem atribui papel especial aos estados mais poderosos, que passam a poder interpretar como as tais “metas” devam ser buscadas – o que equivale a dizer: atribuindo o “direito” de decidir aos países que tenham os recursos e, especialmente, a disposição para agir de modo a fazer acontecer um “resultado” desejado.

Dessa abordagem “orientada para metas” emergiu, inter alia, o que já parece ser uma revisão unilateral do Tratado de Não Proliferação [de armas nucleares, ing. NPT], pela qual a afirmação da “meta” prioritária da não proliferação foi inflada, até alterar as próprias leis do NPT referentes aos direitos de cada país signatário ao enriquecimento de urânio para finalidades pacíficas. Assim se chegou hoje à afirmação de que, para realizar aquela meta, só os estados armadose outros com indústrias nucleares poderiam decidir quais estados não armados seriam autorizados possuir tecnologias de ciclo completo de combustível nuclear.

Áreas livres de armas nucleares e respectivos tratados internacionais
(clique na imagem para visualizar)
Do mesmo modo, a doutrina do “direito de proteger” foi apresentada de tal modo que “provava” que seria admissível atropelar a soberania nacional. Só para esclarecer e ao contrário do que tem sido sugerido, NÃO HÁ dois corpos de lei que competiriam entre eles: (a) o da lei internacional clássica e (b) essa nova formulação dita “humanitária” ou dos direitos humanos. A formulação (b) não passa de “opinionismo” muito controverso introduzido por alguns estados, advogados, políticos e “especialistas” de think-tanks. Nenhuma dessas mudanças foi jamais negociada com estados soberanos e, portanto, a formulação (b) só é promovida por quem busque uma brecha unilateral para quebrar o “contrato” original.

O que está acontecendo no contexto da Síria é uma luta concertada, sob a liderança de Rússia, China e alguns BRICS, para resgatar a ordem internacional, da orientação viciosa, unilateral, para “metas e resultados”; e para reconduzi-la de volta à ideia de uma estrutura para as relações internacionais enraizada no consentimento soberano e na primazia da lei internacional.

Sergey Lavrov
Esse é o projeto e a ambição aos quais o ministro das Relações Exteriores da Rússia, Sergey Lavrov tem-se referido repetidas vezes, sempre que diz que o resultado na Síria é evento chave para redefinir o futuro da ordem internacional – e o modo como, doravante, serão resolvidos os conflitos internacionais. De fato, Lavrov parece ter sido bem-sucedido, pelo menos em parte. Os russos querem pôr fim à prática de alguns países ocidentais, de resolverem seus conflitos à revelia da ONU e da lei internacional, movidos só por “coalizões de vontades” criadas ad hoc.

Parece, sim, que o presidente Obama, silenciosamente, empurra os EUA na direção de reconhecerem a realidade de uma nova era global – a inevitabilidade de ter de pagar mais caro para, no futuro, trabalhar sob o consenso de estados soberanos, em vez de agir sozinhos, como a única potência unipolar.

Essa “volta” tentativa ao consenso dos estados soberanos impõe um ponto de interrogação radical na tal “responsabilidade de proteger” (dado que a detonação da soberania de um estado, para atender à meta da “responsabilidade de proteger”, jamais foi definida; nem, de fato, jamais foi aprovada ou reconhecida coletivamente por estados soberanos).

Mas a atual aparente disposição de Washington para aceitar o direito do Irã ao enriquecimento de urânio para finalidades pacíficas (a ser monitorado e supervisionado), pode ser visto como movimento consistente com essa nova orientação dos EUA. E toca diretamente no ponto crucial dos princípios originais subjacentes ao Tratado de Não Proliferação.

Deve-se esperar que a ideia receba amplo apoio global e tenha melhores chances de sucesso.

Obviamente, conectada a essa ideia, é impossível não ver que a própria base para a “meta” de não proliferação supra-Tratado continua a ser perseguida, ainda hoje, nos dois eventos gêmeos: na destruição dos estoques químicos sírios; e na desistência, pelo Irã, da possibilidade de vir a ter armas nucleares. E tem de ser vista como “meta” ainda mais duvidosa e suspeita, que, de fato, cancela todos os direitos assegurados pelo Tratado de Não Proliferação, porque deixa Israel sozinha, como a única potência nuclear no Oriente Médio (o país jamais reconheceu a existência de seu arsenal nuclear).

Os impactos da reorientação – se se confirmar – serão vários. Israel será obrigada a reconsiderar vários itens; os estados do Golfo terão de reconfigurar suas relações com o Irã – e, de fato, também com a Síria - e a Europa terá de também  reconfigurar suas relações com o Golfo.

Porque, se o “sistema” norte-americano foi derrotado na Síria, e se os EUA tiveram de pôr fim repentino à doutrina Carter (com o fim, de fato, do guarda-chuva dos EUA sempre a proteger os estados do Golfo), por que, doravante, os estados do Golfo continuariam obrigados a comprar aquelas armas caríssimas, que lá ficam, enferrujando no deserto? Por que se interessariam em continuar a pagar por um guarda-chuva já fechado e posto de lado?




[*] Conflicts Forum visa mudar a opinião ocidental em direção a uma compreensão mais profunda, menos rígida, linear e compartimentada do Islã e do Oriente Médio. Faz isso por olhar para as causas por trás narrativas contrastantes: observando como as estruturas de linguagem e interpretações que são projetadas para eventos de um modelo de expectativas anteriores discretamente determinam a forma como pensamos - atravessando as pré-suposições, premissas ocultas e até mesmo metafísicas enterradas que se escondem por trás de certas narrativas, desafiando interpretações ocidentais de “extremismo” e as políticas resultantes; e por trabalhar com grupos políticos, movimentos e estados para abrir um novo pensamento sobre os potenciais políticos no mundo.

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