quinta-feira, 31 de outubro de 2013

A briga da Arábia Saudita na ONU é contra Obama (2/2)


30/10/2013, [*] MK  BhadrakumarStrategic Culture
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

Ler antes:
23/10/2013, redecastorphoto[*] MK BhadrakumarStrategic Culture, em: A briga da Arábia Saudita na ONU é contra Obama (1/2).

A Arábia Saudita e a ONU
A lista de questões nas quais Arábia Saudita e EUA estão em campos opostos na política do Oriente Médio não para de aumentar – Irã,  Egito,  Síria, Bahrain,  Iraque.

Algumas questões, como Irã ou Síria, vão-se convertendo em grandes pontos de discordância, enquanto em outros já há marcadas diferenças, como, por exemplo, nos tumultos no Bahrain ou na questão da democratização do Egito. Os sauditas sentem-se abandonados em mar alto e anteveem tempestades que se formam no horizonte...

Riad enfrenta hoje uma experiência absolutamente nova nas estratégias regionais dos EUA para o Oriente Médio. Há setenta anos, aquelas estratégias usaram como eixo os laços com a Arábia Saudita, sem parar, desde quando o então presidente dos EUA Franklin Roosevelt deixou a reunião histórica de Yalta, com Joseph Stalin e Winston Churchill, e partiu para um rendez-vous secreto, no cruzador USS Quincy, no Grande Lago Salgado do Canal de Suez em fevereiro de 1945, com o rei Abdul Aziz (lbn Saud). Ali, os dois firmaram acordo não escrito, pelo qual Washington daria segurança militar à Arábia Saudita e concordava com fixar uma base militar em Dhahran, em troca de acesso ao suprimento de petróleo.

O governo Obama está assumindo visão mais estratégica dos interesses dos EUA no Oriente Médio, que qualquer governo antes dele. Em termos amplos, pode-se dizer que os interesses dos EUA na segurança e estabilidade da região não mudaram, essas preocupações gêmeas ainda tem tudo a ver com o fluxo sustentado de petróleo e gás para o mercado mundial, e com a segurança de Israel. Mas os meios para alcançar o mesmo fim estão mudando. As forças que foram libertadas pela guerra do Iraque de 2003 transformaram a região; e a Primavera Árabe trouxe para a cena a realidade de que não se inclui entre os interesses de longo prazo dos EUA serem vistos como protetores de regimes autoritários decadentes.

O não superado poder militar dos EUA revelou-se sem efeito, na modelagem das tendências regionais. Assim sendo, a ênfase na presença militar direta, ou a propensão a intervir militarmente, está mudando. Ao mesmo tempo, vai-se fixando a percepção de que excessiva interferência, e a ênfase na presença militar, tornaram-se contraproducentes e implicam insustentáveis custos humanos e econômicos.

Barack Obama na AG da ONU em setembro de 2013
Essa linha de pensamento é ainda nascente e incoerente; a primeira tentativa de dar-lhe forma coerente pode ter sido a fala do presidente Barack Obama na Assembleia Geral da ONU, mês passado. Na verdade, talvez ainda seja prematuro prever como se desenvolverá, especialmente sob o próximo presidente dos EUA. Nem a situação está sequer próxima de os EUA abandonarem seus aliados regionais ou seus relacionamentos especiais no Oriente Médio ou de darem as costas a muito duradouros compromissos regionais, como o seu “colar” de bases militares. Mas a tendência já é discernível – e pode-se conceber que assim permanecerá nesses tempos finais do governo de Obama e que, talvez, ganhe força.

Seja como for, os sauditas foram gravemente abalados quando viram a tendência começar a surgir, há dois anos, no Egito, quando o governo Obama retirou-se da linha de frente, apesar dos clamores dos aliados regionais e recusou-se a garantir uma linha de salvação a Hosni Mubarak. Ainda mais enfurecedor para os sauditas, foi ver o governo dos EUA a estabelecer laços de comunicação com a Fraternidade Muçulmana. Isso, sim, causou terrível incômodo em Riad. Como o conhecido autor e professor Vali Nasr escreveu essa semana no New York Times Riad vê a Fraternidade como representando

Vali Nasr
(...) o mesmo grau de ameaça à inamovível monarquia saudita que foi o populismo secular de Nasser (...) [E] o islamismo populista da Fraternidade, que promete justiça e igualdade, e empoderamento do indivíduo na religião e na política, ressoa profundamente entre os muitos jovens sauditas desempregados e inquietos.

Nasr concluiu que:

(...) nos anos vindouros, o maior desafio estratégico para a Arábia Saudita pode não ser o Irã, como foi, mas a Fraternidade.

O nó egípcio

Por outro lado, os EUA não podem deixar de considerar que a Fraternidade tornou-se uma força regional já no Maghreb e por todo o Oriente Médio cujo momento pode ter chegado. Isso interessou Washington, e negociar com a Fraternidade como entidade legítima na paisagem política do Oriente Médio é provavelmente a melhor garantia contra o movimento tornar-se mais extremado e vir a ameaçar a “legitimidade islâmica de todas as monarquias árabes”. Isso posto, os sauditas, por sua parte, estão furiosos, porque Washington até agora continua a recusar-se a aceitar o golpe militar no Egito, que eles apoiaram, nem apóia a repressão militar à Fraternidade.

Vai-se tornando difícil desfazer esse “nó egípcio” nas relações EUA-sauditas. Os sauditas desafiaram os EUA e estão bancando o governo provisório no Cairo, mas não impressionaram o governo Obama, o qual, ao contrário, suspendeu a ajuda militar que dava ao Egito e insiste na exigência de que o Egito volte a uma democracia “inclusiva” que admita a participação da Fraternidade. Os sauditas supuseram que o medo de levar os militares egípcios a diversificar suas fontes de armamentos forçaria Washington a voltar atrás, mas o governo Obama não parece intimidado – pelo menos até agora – e parece avaliar que, no longo prazo, estabelecer progresso econômico e estabilidade política na região será o melhor modo de assegurar segurança e estabilidade regionais, e que isso será bom também para os interesses estratégicos dos EUA.

Além de tudo mais, o atrito que surgiu nas relações da Arábia Saudita com o governo Obama tem tudo a ver com a situação interna no reino saudita. Em resumo, a paranoia em Riad está relacionada ao fantasma de o torvelinho regional chegar, em algum momento, a respingar na própria Arábia Saudita. É aflição que tem caráter existencial. Christopher Davidson, autor, professor e arabista britânico, escreveu recentemente que o “contrato social [da monarquia saudita] com seu povo está agora se rompendo publicamente, em escala significativa”. Seus dois argumentos chaves são que, em primeiro lugar, o tempo está acabando para a estratégia de subornar os manifestantes com petrodólares; e, em segundo lugar, que o nível atual de subsídios sociais – impressionante recorde de $500 bilhões – é insustentável, porque já é alto demais até para as economias do Golfo do petróleo árabe, inclusive a da Arábia Saudita.

Christopher Davidson
Davidson lembra que o break-even price [1] do petróleo é agora de mais de $115 no Bahrain, enquanto está chegando a $102 em Omã. O Fundo Monetário Internacional (FMI) alertou o Kuwait para que contenha os gastos em bem-estar e nos salários do setor público. Assim, Davidson concluiu, as medidas longamente testadas de dividir para governar, como estimular tensões sectárias e culpar a interferência externa, já não estão funcionando; e estão tendo “impacto demonstrável” na legitimidade do regime saudita, que “pode ruir antes do que muitos creem”.

De fato, documento recente do Carnegie Endowment for International Peace destaca que o governo dos EUA bem fará se previr tumulto social e político na Arábia Saudita. Os sauditas sentem-se amargurados ao constatar que a disposição do governo Obama para manter-se “do lado certo da história” no novo Oriente Médio que emerge só tem feito estimular populações inquietas em todo o mundo árabe, o que, por sua vez, incitará à agitação na vizinhança.

Porém, o corte mais doloroso de todos é a crescente evidência de que, com o governo Obama sem comprar a tese saudita na Síria e no Bahrain, Riad está lutando contra aliados de um Irã expansionista. Assim como na jogada com o Irã é importante para Israel manter o processo de paz no Oriente Médio em fogo lento, também é importante para o regime saudita insistir no ataque contra os xiitas no Bahrain e leste da Arábia Saudita – os quais são as reais vítimas de uma estratégia sectária viciosa fundamentada no wahhabismo.

A liderança saudita lastimou que o governo Obama não tenha lançado ataque militar contra a Síria mês passado; que tenha dado as costas à promessa de armar os rebeldes sírios com armamento pesado para derrubar o governo de Assad; e que, em vez disso, esteja trabalhando com a Rússia, para abrir a trilha diplomática via Genebra-2. Os sauditas estão fazendo horas extras para garantir que Genebra-2 não decole, e estão empenhados em nova tentativa para arregimentar os aliados árabes regionais, como se viu no mais recente movimento para organizar uma nova reunião em nível de ministros de Relações Exteriores da Liga Árabe, no Cairo, na próxima 2ª-feira (4/12/2013).

E tudo isso, enquanto melhora no ocidente a percepção sobre o regime sírio, graças à excelente cooperação que tem dado à ONU para a destruição das armas químicas e graças também à evidência, mais clara a cada dia, de que as forças do governo sírio são o único obstáculo importante que há contra o crescimento da al-Qaeda naquela parte da região.

Águas desconhecidas

Tudo isso considerado, as relações EUA-sauditas estão entrando em águas desconhecidas. Houve relatos de que a liderança saudita considera uma “ampla mudança” que a afastará da cooperação de décadas com os EUA. E de que a decisão de “desistir” do assento no Conselho de Segurança da ONU marcaria o tom de uma política externa saudita radicalmente diferente. Esses relatos dizem que Riad tem intenção de afastar-se dos EUA, explorando, dentre outras coisas, relações militares que dariam mais alta prioridade à defesa e a outros interesses sauditas. A mudança de que se fala aconteceria na direção de uma política externa mais proativa.

Pode-se dizer que tal política proativa já está em andamento há algum tempo, como se viu na intervenção saudita no Iêmen e no Bahrain e nos movimentos unilaterais para manter em andamento o projeto de mudança de regime na Síria, apesar dos crescentes sinais de desagrado ocidental. Se se considera o sucesso relativo dos planos sauditas no Bahrain e Iêmen, é perfeitamente concebível que os sauditas deixem de lado a proposta de Genebra-2 e trabalhem a favor de uma iniciativa regional contra a Síria, dando cobertura econômica, política e militar e arregimentando seus aliados do Conselho de Cooperação do Golfo e a Jordânia e o Egito, no quadro de alguma espécie de acordo de segurança coletiva.

Poderia ser uma iniciativa na direção de intervencionismo local, mediante uma aliança árabe revitalizada, o que significará afastamento da dependência histórica da presença militar dos EUA. A raison d’êtrenesse caso, seria que só mediante tal aliança regional o regime saudita e os regimes do Golfo poderão priorizar a própria sobrevivência – tornando-se assertivos, menos dependentes do apoio ocidental e isolando-se dos efeitos da reaproximação EUA-Irã.

Mas, na essência, não passará de um gambito, de cercar a caravana em vez de entrar em desafio estratégico contra os EUA. Os sauditas certamente sabem que um quadro de segurança árabe coletiva não é realista e sempre será artificial, e que o continuado apoio dos EUA sempre será fator criticamente decisivo.

Enquanto isso, as perguntas não param de brotar.

Por um lado, ainda não se viu até que ponto a intervenção do CCG no Iêmen ou Bahrain será sucesso duradouro. No Bahrain, a repressão é ordem do dia; e no Iêmen os sauditas apenas trocaram um governante impopular pelo respectivo vice. Todos esses são paliativos, temporários, que os sauditas impuseram sem ouvir o povo desses países. Mais uma vez, a abordagem saudita implicará militarizar os conflitos (como no Bahrain ou na Síria); essa abordagem com certeza atrairá o opróbrio internacional e talvez se comprove inadequada para empurrar a maré mudancista.

A única real vantagem do regime saudita é que possui inigualável capacidade financeira, mas, por outro lado, não se vê a Arábia Saudita aceita em papel de liderança na região. Há ressentimentos entre os estados do CCG sobre o intervencionismo saudita no Bahrain. Na verdade, o regime saudita nem é modelo que inspire nações árabes – os sauditas tem péssima imagem na região – nem anda ao ritmo do espírito do tempo. O regime faz papel ridículo, sempre que grupos de mulheres educadas zombam dele e insistem no direito de dirigir seus próprios carros.

Em última análise, o grande trunfo da Arábia Saudita é sua capacidade para patrocinar uma “jihad” em outros países. Tem capacidade comprovada para produzir quadros militantes para suas intervenções clandestinas em outros países. Até agora, os sauditas têm-se dado bem na estratégia de empurrar o islamismo militante para além das próprias fronteiras. A estratégia tem funcionado, mas, a cada dia mais, a comunidade internacional vai-se fartando disso. É onde a Síria torna-se caso-teste.

Seja como for, o que finalmente fez entornar a taça foi, provavelmente, a visão do contato direto entre EUA e Irã, especialmente a conversa telefônica entre Obama e o presidente Hassan Rouhani do Irã. Um ministro saudita de Relações Exteriores em estado de choque, o príncipe Saud Al Faisal, saiu às pressas de New York, sem sequer fazer o discurso programado e rotineiro à Assembleia Geral da ONU. Desde então, o secretário de Estado dos EUA John Kerry não parou de telefonar-lhe, para sua Villa privada em Paris, tentando amolecê-lo e pedindo que Riad reconsidere a atitude da ONU. Kerry, na sequência armou cara de valente, sobre a briga EUA-sauditas, e disse que tem “grande confiança” de que os dois países “continuarão a ser os amigos e aliados próximos e importantes que nós sempre fomos”.

Conselho de Segurança da ONU
De fato, até aqui, a vantagem de Kerry está em que há posições conflitantes entre os próprios sauditas, que refletem profundas divisões internas no interior do regime. E absolutamente não se entende que, até agora, Riad ainda não tenha notificado formalmente a ONU sobre sua decisão de recusar o assento ao qual foi eleito, para o Conselho de Segurança. Mas há tempo. Só em janeiro, afinal de contas, será necessário aparecer fisicamente, para tomar posse (ou não) da cadeira na famosa mesa em formato de ferradura do Conselho de Segurança. Ainda não se ouviu a palavra final desse surto temperamental dos sauditas.

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Nota dos tradutores
[1] Break-Even Price“A quantidade de dinheiro pela qual um produto ou serviço tem de ser vendido, para cobrir os custos de produzi-lo ou provê-lo”.
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[*] MK Bhadrakumar foi diplomata de carreira do Serviço Exterior da Índia. Prestou serviços na União Soviética, Coreia do Sul, Sri Lanka, Alemanha, Afeganistão, Paquistão, Uzbequistão e Turquia. É especialista em questões do Afeganistão e Paquistão e escreve sobre temas de energia e segurança para várias publicações, dentre as quais The HinduAsia Times Online, Strategic Culture, Global Research e Indian Punchline. É o filho mais velho de MK Kumaran (1915–1994), famoso escritor, jornalista, tradutor e militante de Kerala.


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