sábado, 31 de agosto de 2013

Robert Fisk: “O alvo do ocidente é o Irã, não a Síria”

30/8/2013, [*] Robert Fisk, The Independent
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu


Antes que comece a mais estúpida de todas as guerras ocidentais da história do mundo – falo, é claro, do ataque contra a Síria que ainda tenhamos de engolir – talvez se deva dizer que os mísseis Cruisers que tantos esperam, confiantemente, que chovam sobre as mais ancestrais cidades que a humanidade ergueu nada têm a ver, absolutamente nada, com a Síria.

Todos eles visam a ferir o Irã. Estão mirados contra a República Islâmica, agora que já tem novo e vibrante presidente – em tudo diferente de Mahmoud Ahmadinejad, o doido – e quando pode bem estar um pouco mais estável.

O Irã é o inimigo de Israel. Irã, pois, naturalmente, é o inimigo dos EUA. Assim, fogo nos mísseis contra o único aliado árabe do Irã.

Não se trata de defender o regime sírio. Nem me interessa absolvê-lo antecipadamente na questão das bombas de gás. Mas tenho idade suficiente para lembrar que, quando o Iraque – aliado dos EUA – usou gás contra os curdos de Hallabjah em 1988, nós não atacamos Bagdá. O ataque teria de esperar até 2003, quando Saddam já não tinha gás algum, nem qualquer dessas armas que habitam nossos pesadelos.

Também lembro muito bem que a CIA inventou, em 1988, que o Irã seria responsável pelos ataques químicos em Hallabjah, mentira completa, focada no inimigo dos EUA contra o qual, então, Saddam lutava em nosso nome. E milhares – não centenas – morreram em Hallabjah. Mas, sabem como é. Mudam os tempos, mudam os critérios.

Vista geral dos danos causados pelo bombardeio dos "rebeldes" na cidade de Deir Ezzor,
leste da Síria, em 26/8/2013
E acho que vale a pena lembrar que quando Israel matou mais de 17 mil homens, mulheres e crianças no Líbano em 1982, numa invasão supostamente provocada por uma tentativa de assassinato contra o embaixador israelense em Londres (supostamente levada a cabo por membros da OLP, mas quem organizou a matança foi o parceiro de Saddam, Abu Nidal, não a OLP, mas não importa), os EUA limitaram-se a pedir que os dois lados praticassem a “moderação”. E pouco antes daquela invasão, Hafez al-Assad – pai de Bashar – mandara seu irmão a Hama para varrer de lá milhares de rebeldes da Fraternidade Muçulmana, e ninguém achou ruim. Meu velho conhecido Tom Friedman falou, cinicamente, de “Leis de Hama”.

Seja como for, há hoje uma Fraternidade diferente – e Obama não conseguiu nem gritar “buuuuu”, quando o Irmão presidente eleito foi derrubado.

Ei, esperem! Mas o Iraque – quando era “nosso” aliado contra o Irã – também não usou gás contra o exército iraniano? Usou. Vi os feridos nesse ataque ensandecido, comandado por Saddam – e oficiais dos EUA, sim senhor, andaram depois pelo campo de batalha e informaram Washington – e nós não dissemos sequer um palavrão contra aquilo. Milhares de soldados iranianos na guerra 1980-88 morreram envenenados por essa arma vil.

Viajei de volta a Teerã, à noite, num trem que transportava militares feridos e senti o cheiro, e abríamos as janelas dos corredores do trem, para nos livrar do fedor do gás. Aqueles jovens tinham feridas sobre feridas – literalmente. Sobre as feridas cresciam bolhas ainda mais dolorosas. Quase indescritível. E quando aqueles soldados chegaram a hospitais ocidentais para tratamento, os jornais chamavam aqueles feridos – apesar das provas muito mais convincentes que as que talvez se obtenham nos arredores de Damasco – de “supostamente atingidos por gás”.

Assim sendo, o que estamos fazendo, santo deus? Depois que milhares incontáveis morreram na horrenda tragédia síria, de repente – de fato, depois de meses, de anos de prevaricação – começamos a nos perturbar por causa de umas poucas centenas de mortos. Terrível. Inconcebível. Indecente. Sim, é verdade. Mas já deveríamos estar traumatizados, horrorizados e em ação contra essa guerra desde 2011. E durante 2012. Por que agora?

Mapa da situação da atividade "rebelde" na Síria em 22/8/2013
Acho que sei por quê. Acho que o impiedoso exército de Bashar al-Assad está afinal derrotando os “rebeldes” que nós secretamente armamos. Com a ajuda do Hezbollah libanês – aliado do Irã no Líbano – Damasco quebrou os “rebeldes” em Qusayr e pode já estar perto de quebrá-los no norte de Homs. O Irã está cada vez mais profundamente envolvido na proteção ao governo sírio. Assim, vitória de Bashar é vitória do Irã. E o ocidente não admite vitórias iranianas.

E já que falamos de guerra, o que aconteceu àquelas magníficas negociações palestino-israelenses de que John Kerry tanto falava? Enquanto manifestamos nossa angústia pelos terríveis ataques a gás na Síria, a terra palestina continua a ser roubada. A política likudista de Israel – negociar a paz, enquanto ganha tempo até conseguir roubar toda a terra dos palestinos – prossegue a passos rápidos, e esse é o pesadelo do rei Abdullah da Jordânia (pesadelo pior que as “armas de destruição em massa que inventamos em 2003), que só cresce: que toda a “Palestina” logo estará na Jordânia, não mais na Palestina.

Mas, a dar-se crédito aos absurdos que vêm de Washington, Londres e Paris e do resto do mundo “civilizado”, é só questão de tempo, e nossa espada vingadora degolará os damascenos.


Ver lideranças do resto do mundo árabe a aplaudir essa destruição é talvez a mais dolorosa experiência histórica pela qual a região jamais passou. E a mais vergonhosa. Exceto pelo fato de que estaremos atacando muçulmanos xiitas e seus aliados, sob aplausos de muçulmanos sauditas. Disso se faz a guerra civil.

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[*] Robert Fisk é filho de um ex-soldado britânico da Primeira Guerra Mundial, Robert Fisk estudou jornalismo na Inglaterra e Irlanda. Trabahou como correspondente internacional na Irlanda - cobrindo os acontecimentos no Ulster - e Portugal. Em 1976, foi convidado por seu editor no The Times para substituir o correspondente do jornal no Oriente Médio. Fisk trabalhou para The Times até 1988, quando se mudou para The Independent - após uma discussão com seus editores sobre modificações feitas em seus artigos, sem seu consentimento.
Fisk cobriu a guerra civil do Líbano, iniciada em 1975; a invasão soviética do Afeganistão, em 1979; a guerra Irã-Iraque (1980-1988), a invasão israelense do Líbano, em 1982), a guerra civil na Argélia, as guerras dos Balcãs e a Primeira (1990-1991) e a Segunda Guerra do Golfo Pérsico, iniciada em 2003. Fisk notabiliza-se também pela cobertura ao conflito israelo-palestino. Ele é um defensor da causa palestina e do diálogo entre os países árabes, o Irã e Israel.
Considerado como um dos maiores especialistas nos conflitos do Oriente Médio, Fisk contribuiu para divulgar internacionalmente os massacres na guerra civil argelina e nos campos de refugiados de Sabra e Chatila, no Líbano; os assassinatos promovidos por Saddam Hussein, as represálias israelenses durante a Intifada palestina e as atividades ilegais do governo dos Estados Unidos no Afeganistão e no Iraque. Fisk também entrevistou Osama bin Laden, líder da rede terrorista Al-Qaeda (em 1993, no Sudão, em 1996 e em 1997, no Afeganistão).
Robert Fisk é o correspondente estrangeiro britânico mais premiado. Recebeu o Prêmio Correspondente Internacional Britânico do Ano sete vezes (as últimas em 1995 e 1996). Também ganhou o Prêmio à Imprensa da Anistia Internacional no Reino Unido em 1998 e 2000.

Israel “quase em pânico” (e não é metáfora)

Da série “O que diz Israel, quando fala prô seu próprio público”

30/8/2013, [*] Conflicts Forum, “Comentário semanal” [excerto]
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

O Secretário de Estado John Kerry, à esquerda, e o Primeiro-Ministro israelense, Benjamin Netanyahu, antes de sua reunião de 23 de maio de 2013, em Jerusalém, Israel. Foto Uriel Sinai 
O evento mais significativo dessa semana foi, talvez, a publicação de um artigo em Israel. Foi escrito pelo principal analista militar israelense, Alex Fishman, e publicado em hebraico no jornal Yedioth Ahronoth no domingo. Foi atentamente lido na região e nos EUA, sobretudo porque Fishman, muito respeitado, é o veterano correspondente militar desse jornal de grande circulação em Israel, conhecido pela qualidade de suas fontes.

Fishman diz, sem meias palavras, que Israel entrou numa situação de “emergência diplomática”: do primeiro-ministro para baixo, Israel combate “batalha diplomática desesperada” em Washington para desconstruir o antagonismo dos EUA contra Sisi e “os generais”. Essa caracterização de quase pânico, vinda de Fishman, não é metáfora nem “licença poética”. 

Vê-se, de outras matérias na imprensa israelense, que embaixadores israelenses em pontos chaves já foram instruídos, com mensagens claras de que a situação no Egito pode ter “agudo” [orig. dire] impacto em Israel. 

A mensagem oficial alerta que Israel, portanto, não pode manter-se omissa, em momento em que a fragilidade do governo egípcio e a deterioração da economia exigem que o exército seja autorizado a restaurar a segurança no Egito [i.e., que Europa e EUA devem ajudar o exército nesse papel].

Alex Fishman
Fishman alerta que a reação antagonista dos EUA contra o golpe militar acabará por explodir sobre Israel. O modo incompetente como os EUA lidaram com a situação, diz Fishman, inflamou os dois lados na arena egípcia, gerando desejo vicioso de “ferir qualquer coisa que simbolize os EUA – o que inclui Israel”. A oposição liberal/secular, diz ele, já reúne assinaturas insistindo em que o Egito abandone os acordos de Camp David.

Simultaneamente, Fishman sugere, o Egito aproxima-se – ou, como ele especula, talvez até já tenha ultrapassado – seu próprio “momento Síria” [o momento no qual protestos inicialmente administráveis converteram-se em conflito armado]. “Ninguém está falando sobre uma guerra civil no Egito. Os ganhos obtidos pelo exército egípcio contra a Fraternidade Muçulmana foram apenas táticos. Nenhum lado obteve vitória decisiva e hoje mal se seguram em suas posições”.

“A previsão em Israel” – escreve Fishman – “é que o Egito está entrando em longo conflito interno de baixa intensidade (tumultos, terrorismo) que anuncia período de instabilidade continuada, durante o qual será impossível administrar adequadamente o país, não haverá investimentos externos e a indústria do turismo permanecerá paralisada. O resultado disso será uma situação de declínio econômico que piorará gradualmente, e o Egito ficará dependente do bolso dos regimes na Arábia Saudita e estados do Golfo Pérsico. Alimentar 85 milhões de bocas com doações por muito tempo não é solução que reabilite a economia egípcia e dê solidez ao atual regime”.

Num segundo artigo, publicado dia 20 de agosto, sob o título “Eventualmente seremos engolidos”, Fishman associa especificamente o “massacre de 25 soldados das forças especiais do Egito, na véspera”, à decisão do Exército Egípcio de retirar suas forças especiais antiterrorismo do Sinai – temendo a possibilidade de um ataque no Canal de Suez. As Forças Especiais foram re-deslocadas para Port Said.

Mais uma vez, Fishman lamenta o vácuo de segurança criado no Sinai, que foi imediatamente preenchido por jihadistas. A menos que o comando egípcio consiga conter rapidamente a situação, ele prevê que “o fogo se espalhará – não só na direção do que resta do Exército Egípcio no Sinai – mas também em direção da fronteira com Israel”.

Ephraim Halevy
Outra publicação importante essa semana em Israel foi uma entrevista com Ephraim Halevy, ex-diretor do Mossad, por Yossi Melman, publicada em Sof Hashavua. Ecoa o tema de Fishman, de que se está abrindo uma ravina entre EUA e Israel: Dessa vez não é o Egito; diz respeito à possibilidade de uma implosão da credibilidade de Israel nos EUA, mas tem a ver com o Irã.

Halevy, ex-diretor do Mossad e ex-Conselheiro de Segurança Nacional, aponta abertamente as contradições da política de Israel para o Irã: de um lado, Israel diz que as sanções não estão funcionando; mas insiste em mais sanções (enquanto os EUA supõem que as sanções ajudaram a modelar a agenda de Rowhani, como Halevy destaca). 

De modo semelhante, Israel diz agora que o presidente iraniano, que obteve mais de 50% dos votos, não importa, e que só o Supremo Líder fala na questão nuclear [posição contrária à de antes, quando Israel pintava o presidente Ahmadinejad como causa de todos os problemas].

Hassan Rouhani
“Mas”, pergunta Halevy, se Rouhani “é tão pouco importante”, como se diz agora em Israel, por que Israel tanto se empenha em demonizá-lo como “lobo em pele de cordeiro”? Na opinião de Halevy, ao adotar essa abordagem Israel se torna redundante nas negociações entre o Irã e o ocidente: “Israel basicamente diz, desde o início, que as negociações não são importantes e que os iranianos, não importa o que aconteça, não desistirão do programa nuclear, porque o programa nuclear sempre esteve nos interesses nacionais do Irã – já no tempo do Xá – e, portanto, não faz diferença quem esteja no poder em Teerã”. E continua: “Portanto, negociações não fazem sentido, porque fracassarão sempre”. Halevy diz aqui, porém, que não é o que pensam os EUA – que não faz sentido negociar com Rouhani. E que Israel corre o risco de divergir e “perder os EUA nessa questão”: “Interessaria a Israel expor, nesse estágio inicial, antes mesmo do início de qualquer negociação, que há divergência entre nós e os EUA nosso aliado?” – pergunta Halevy, só retoricamente.

Os dois artigos, duas manifestações de preocupação que se constata entre os israelenses, parecem relacionados a um certo ressentimento muito visível na imprensa em hebraico. 

O primeiro sinal de apreensão e ansiedade surgiu da declarada intenção da União Europeia de formalizar decisões anteriores sobre comércio com os Territórios Ocupados da Palestina. 

Benjamin Netanyahu
A imprensa israelense sugere que Netanyahu preocupa-se menos com a des-legitimação em si, que não ferirá tanto Israel, e, mais, porque qualquer deslegitimação enfraquecerá a posição de Netanyahu para mobilizar a União Europeia e os EUA em sua “cruzada” a favor de ação militar contra o Irã.

Outros israelenses têm preocupação diferente: o chamado “processo de paz” visava precisamente a “vacinar” Israel contra movimentos do tipo “Boicote-Desinvestimento-Sanções” (BDS) (com o “processo” apresentado como sacrossanto). Mas ali estava a União Europeia a agir na direção oposta, e no mesmo momento em que Kerry lançava sua iniciativa. O episódio parece sugerir, segundo outros israelenses, que o sistema imunológico israelense estaria enfraquecendo – e que já não estava operando com a eficácia de antes. E esse, de fato, é o tema, também, de Halevy.

Vários jornais israelenses têm sugerido que o principal objetivo de Netanyahu – talvez o único – para engajar-se no “processo de paz” de Kerry é, precisamente, fortalecer a posição de Israel, para influir mais decisivamente no lobby contra o Irã – especialmente durante a fase de “pato manco” de Obama, depois das eleições de meio de mandato de senadores e deputados, quando Netanyahu pode girar o “porrete” de um “ataque israelense independente” com um pouco mais de credibilidade operacional. 

Jeffrey Goldberg
Mas Halevy diz que isso tampouco funcionará – pressupor, simploriamente, que bastaria Israel engajar-se num ‘'processo de paz'’, para adquirir legitimidade ‘'imediata'’ para ameaçar o Irã –, sobretudo porque os EUA, hoje, estão pensando de outro modo. A velha (inconsistente) retórica já não basta. 

Na entrevista que Kerry deu a Jeffrey Goldberg, Kerry absolutamente não confirmou a eficácia da estratégia de “processo de paz” de Netanyahu. Em vez de o “processo” valer a Israel alguma recompensa e “licença” mais ampla, Kerry disse o contrário – que se Israel não se entender com os palestinos terá de enfrentar a deslegitimação – e ainda acrescentou, para enfatizar, “deslegitimação reforçada com esteroides”.

John Kerry
O que mais chocou o comentarista israelense é que Kerry omitiu todos os comentários considerados obrigatórios sobre os EUA manterem-se fiéis aos compromissos assumidos com a segurança de Israel etc., etc.. Em resumo, Fishman fez, sutilmente, soar o alarme: a maioria dos israelenses pode estar maravilhada com a ascensão ao poder no Egito do “machado matador de Irmãos” (o general Sisi). Mas ninguém pode esquecer o quanto os amigos de Israel (Arábia Saudita, Egito e Jordânia) estão fragilizados nesse momento. E amigos fragilizados são amigos que rapidamente se tornam pouco confiáveis e até infiéis – sobretudo contra Israel – e num momento em que também se abrem ravinas profundas a separar aqueles mesmos amigos e os EUA.

Kerry e a União Europeia parecem estar dizendo, isso sim, que Israel não pode continuar a contar com favores especiais – simplesmente por aceitar participar do “processo”. Alguma coisa está mudando.



[*] Conflicts Forum visa mudar a opinião ocidental em direção a uma compreensão mais profunda, menos rígida, linear e compartimentada do Islã e do Oriente Médio. Faz isso por olhar para as causas por trás narrativas contrastantes: observando como as estruturas de linguagem e interpretações que são projetadas para eventos de um modelo de expectativas anteriores discretamente determinam a forma como pensamos - atravessando as pré-suposições, premissas ocultas e até mesmo metafísicas enterradas que se escondem por trás de certas narrativas, desafiando interpretações ocidentais de “extremismo” e as políticas resultantes; e por trabalhar com grupos políticos, movimentos e estados para abrir um novo pensamento sobre os potenciais políticos no mundo.

Tambores de guerra, outra vez! A “imprensa-empresa-poodle-de-colo” não aprende...

29/8/2013, [*] Patrick L. Smith, Salon
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

A ONU continua a coletar e analisar evidências do uso de armas químicas na Síria. Não há resultados no momento, mas os países ocidentais (EUA e Europa) estão fixados na ideia de agir contra o governo sírio mesmo sem provas que Assad teria usado armas químicas contra seu próprio povo.
Enquanto escrevo, 5ª-feira (29/8/2013de manhã cedo, muitos sírios estão sendo “agendados” para pagar com a vida pela “credibilidade” dos EUA. O bombardeamento de um país já devastado pela guerra é dito “simbólico”, para simplesmente dar um recadoÉ obscenidade tão grande quanto aquela contra a qual Washington diz reagir. Mais uma sociedade do Oriente Médio será ainda mais destroçada e os destroçadores nada terão a oferecer para substituir o que destroçarão.

Os EUA há muito tempo desperdiçaram qualquer credibilidade que talvez tenham tido ou desejado ter no Oriente Médio. Se a credibilidade for a causa, Washington precisa fazer muito mais que se pôr a desmontar a vila cenográfica que ela fez dos princípios que tediosamente gagueja. Mas aí está pensamento que hoje em dia já não vai a lugar nenhum.

E os EUA mergulham em outra guerra no Oriente Médio. Diferente das guerras do Iraque e do Afeganistão – verdadeiras obras de arte norte-americanas – o conflito na Síria é quadro pintado por outros. Mas, exceto por isso, esses três casos de hostilidade injustificável contra regimes “desobedientes” são espantosamente similares.

Manifestantes em Downing Street, Londres contra a intervenção ocidental na Síria
Melhor dizendo: são tragicamente similares. Ao longo da história, os norte-americanos insistimos na virtude da ignorância, em nada aprender, não saber de nada. E o que estamos à beira de fazer é o que sempre fazemos, previsivelmente, sempre. Os norte-americanos somos povo singular. Não há dúvida. Talvez, até, excepcional.

Como tantas vezes já aconteceu, o governo Obama está na mídia, rejeitando qualquer deliberação que a ONU considere justa. Na noite de 4ª feira, o Primeiro-Ministro britânico David Cameron rendeu-se às objeções do Partido Trabalhista ao apoio que o ministro vinha dando aos planos de Washington para invadir a SíriaA Grã-Bretanha agora quer esperar um relatório da ONU sobre os supostos ataques químicos, dos inspetores de armas, e dar mais tempo ao processo do Conselho de Segurança.

Mas ouçam o que disse o presidente Obama na 4ª-feira, no programa Newshour, da PBS, e é evidente que os EUA consideram atacar sozinhos o regime sírio, se preciso for:

Estamos preparados para trabalhar com qualquer um – russos e outros – para tentar reunir os grupos e resolver o conflito, disse Obama. Mas queremos que o regime Assad entenda que, ao usar armas químicas em larga escala contra o próprio povo (...) está criando uma situação na qual os interesses nacionais dos EUA são afetados, e isso tem de parar.

Portanto, já nada conta, nem a folha de parreira da concordância internacional.

Os eventos, desde o que parece ser ataques com armas químicas em quatro áreas residenciais de Damasco semana passada já trazem todas as marcas de um assalto violento de rua, com os bandidos atropelando e espancando vítima colhida em alta velocidade. 

Dado que os mísseis Cruisers que o governo está a ponto de disparar contra a Síria levarão a impressão digital de todos os norte-americanos, como uma bomba da 2ª Guerra Mundial, os bandidos somos nós (aliás, outra vez). Aí, a responsabilidade é partilhada. Somos cúmplices.

As mentiras e frases inventadas que nos contam, enquanto Washington prepara-se para “responder” à mais recente selvageria contra os sírios são construídas de modo tão esquisito, que é difícil acompanhar a jogada. O pessoal de Obama mudou completamente a coisa, diametralmente, diante de nossos olhos, deixando de lado qualquer preocupação com a verossimilhança, inventando argumentos conforme a hora. É claro que é tudo inventado! E é sempre a mesma história que já recitaram incontáveis vezes. Vai-se ver, é a única narrativa que os norte-americanos sabemos articular ou compreender – ideia assustadora, mas da qual é impossível fugir, considerando o que estamos vendo.

Especialistas em armas químicas das Nações Unidas na quarta-feira (28/8/2013) se reuniram com moradores de Zamalka, um subúrbio de Damasco que foi alvo de um ataque químico na semana passada.
As narrativas precisam da imprensa-empresa, é claro, e aí está ela, no caso da crise síria, distribuindo versões irresponsavelmente recolhidas de uma só fonte, apresentadas como se fosse opinião responsavelmente exposta, recolhida de várias fontes. E desde quando os jornalistas passaram a ver-se, eles mesmos, como agentes clandestinos da segurança nacional? Já é insuportável, essa atitude de moleque de recados do poder. Se os jornalistas fizessem o próprio trabalho com decência e seriedade, os EUA nos tornaríamos responsáveis por muito menos tragédias semelhantes à tragédia síria, e estaríamos todos, aqui, muito mais seguros. Do jeito que estão as coisas, a imprensa-empresa é peça defeituosa no mecanismo democrático.

No instante em que chegaram notícias de armas químicas e vítimas, semana passada, Washington e aliados puseram-se a exigir que o presidente Bashar al-Assad da Síria autorizasse uma equipe de inspetores da ONU a examinar os locais em questão. Tinha de ser. Exigência absoluta. Era isso ou isso. Todos lemos as “declarações”.

48 horas depois, o pessoal de Obama pôs-se a “declarar” que não, que ninguém precisava do relatório da ONU. Desnecessário. 
Quando Assad autorizou a visita da equipe da ONU, o que nem demorou, considerando-se que se trata de zona de guerra, já era “tarde demais para ter credibilidade. As provas já estariam “degradadas”, como todos também lemos.

William J. Broad
Tarde demais? Provas degradadas? A equipe da ONU é equipe de especialistas. Estão na Síria para examinar locais nos quais se diz que há meses teriam sido usados produtos químicos, e não estariam lá se a tal “degradação” tivesse algum fundamento científico. Isso ninguém leu, com uma exceção. Na 4ª-feira, William J. Broad, correspondente de ciências do New York Times teve a decência e o bom senso de citar fontes não governamentais – afinal! Alguém! – que informou que esses agentes químicos que estão sendo discutidos não se dissipam por períodos de tempo terrivelmente longos. Quem não acreditar, pode perguntar aos vietnamitas.

A matéria de Broad ganhou o pé da página oito. Como I.F. Stone disse certa vez do Washington Post, jornais são sempre problema, porque você nunca sabe onde encontrará a matéria de primeira página.

Mas no início dessa semana, se é que se pode engolir essa, funcionários dos EUA já estavam pressionando secretamente a ONU para que abortasse a missão na Síria. Washington decidira que, dessa vez, nenhuma prova seria interessante. Isso ninguém leu – não em publicação norte-americana.

Era o caminhãozão que o pessoal de Obama estava tentando estacionar em cima da calçada.

As “provas” de que haviam sido usadas armas químicas, por mais que o pessoal de Obama tivesse tentado, antes, se esconder delas, logo se tornaram “inegáveis” (Secretário de Estado Kerry), assunto “sem dúvida” (Vice-Presidente Biden), e mais várias coisas “declaradas” e repetidas. Isso todos lemos em abundância – e sem qualquer confirmação ou investigação profissional decente, de parte dos jornalistas que escreviam ou diziam, sem parar.

E... você percebeu? “Prova de uso” imediatamente se converteu em prova de que o regime de Assad usou. Aí está o truque sujo. Nenhum funcionário do governo dos EUA disse que a responsabilidade poderia ser dos “rebeldes”. Claro que, se nenhum funcionário do governo “declarou”, ninguém leu sobre essa possibilidade nos jornais norte-americanos ou ouviu-a dos “âncoras” e “comentaristas” de rádio ou televisão. O imperdoável lapso de lógica passou despercebido. Já não há palavras para dizer o quão absolutamente idiotas eles supõem que nós sejamos.


Agora nos prometem prova incontroversa da culpa de Assad, para a 5ª-feira, ao longo do dia.Inútil tentar adivinhar. Na guerra de imagens e espetáculo, frequentemente se repetem variantes da rotina acima descrita. Lembrem do yellowcake, ou de Colin Powell na ONU, ou os “tubos de metal” de Judith Miller ou os “laboratório de armas móveis” no Iraque – todos empenhadamente noticiados pelo New York Times.

Nesse espaço, semana passada, aventei minhas suspeitas de que os “rebeldes” bem poderiam ser os culpados. Repito aqui os mesmos argumentos. 

Os inimigos de Assad não têm suprimentos de gás sarin ou de outros agentes químicos – como se sugere.

Bobagem. Podem ter, é claro.

Os “rebeldes” não seriam capazes de montar um ataque de grande escala como parece que foi o ataque em Damasco semana passada – como disseram incansavelmente. Mais bobagem.

Posição defensável é a dos russos e de alguns elementos responsáveis na Grã-Bretanha: querem investigação séria e propõem que todos aceitem os resultados.

Carla del Ponte
Carla del Ponte, conhecida especialista, investigadora de crimes de guerra e membro da comissão da ONU que examina o caso da Síria, disse em maio que havia fundados motivos para examinar se os “rebeldes” seriam responsáveis por uma obscenidade na Síria, naquele momento, envolvendo gás sarin. 

A investigadora de direitos humanos da ONU disse que “segundo depoimentos que reunimos, os “rebeldes” usaram armas químicas, tendo feito uso de gás sarin”, e acrescentou que sua comissão trabalhava, como hipótese mais bem fundada, com a ideia de que “foi usado gás sarin (...) pela oposição ao governo, pelos “rebeldes”, não pelo governo sírio”.

Foi depenada e assada, na melhor tradição do “jornalismo” norte-americano.

Mas Obama parece decidido a atropelar a ONU, independente do que digam os especialistas. 

Na 4ª-feira, a Grã-Bretanha apresentou projeto de resolução ao Conselho de Segurança, exigindo a intervenção militar, mas só pro forma. O Conselho de Segurança tem vários membros, para que várias visões de mundo estejam adequadamente representadas. 

Obama honra visões de mundo alternativas, tanto quanto George W. Bush. Assim sendo, da ONU nada sairá que se aproveite, não com o veto da Rússia, membro do Conselho de Segurança. Melhor partir logo para o crime e a marginalidade outra vez, e esse é o mundo para termos em mente, se os fogos de artifício prometidos começarem a chover sobre a Síria nos próximos dias. (...)

Nas colinas de Golan - Síria, sentinela israelense fica sobre um "bulldozer" 
Concluo com o que considero o máximo, a cereja do bolo, o prêmio de “notícia-mais-ridícula-da-semana”, embora só se encontre, na “mídia” norte-americana, online.

A parte mais consistente das provas de que o regime de Assad usou armas químicas e que dá base legal essencial para justificar ação militar ocidental – foi apresentada pela inteligência militar de Israel.

É. Aquele pessoal confiável. Do Mossad. A notícia está no The Guardian, grande jornal britânico, que simplesmente repete uma revista alemã, Focus.

Santo deus! Chamem os palhaços. Eles já estão aí.
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[*] Patrick Smith é o autor de Time No Longer: Americans After theAmerican Century foi chefe da sucursal do International Herald Tribune em Hong Kong e Toquio 1985-1992.Durante este tempo também escreveu a coluna “Carta de Tóquio” para a revista The New Yorker. É o autor de quatro livros e contribuiu com frequência com artigos para o New York Times,The Nation, The Quarterly Washington e outras publicações.