quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

“Zero Dark Thirty”: dádiva de Hollywood ao poder


25/1/2013, Slavoj Žižek, The Guardian, UK
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

Slavoj Žižek
Eis aqui como, nem carta ao LA Times, Kathryn Bigelow justificou a exibição (pedagógico-didática?!) de métodos de tortura usados por agentes do governo dos EUA para cercar e assassinar Osama bin Laden, em seu filme “A hora mais escura” [orig. Zero Dark Thirty]:

Nós, que trabalhamos com artes, sabemos que mostrar não é apoiar. Se fosse, nenhum artista poderia pintar práticas inumanas, nenhum autor poderia escrever sobre elas, nenhum cineasta poderia mergulhar nos difíceis temas de nosso tempo.

É? É mesmo?! Ninguém precisa ser moralista nem idiota, quanto às urgências e necessidades de combater ataques terroristas, para saber que torturar um ser humano é ação, ela mesma, tão profundamente destrutiva e avassaladora que mostrar a tortura de modo ‘neutro’ – quer dizer: neutralizar a dimensão destrutiva e avassaladora da tortura – já é um tipo de apoio.

Imaginem um documentário que mostrasse o Holocausto de modo “neutro”, cool, desinteressado, como se fosse operação de logística industrial, atento a cada mínimo problema técnico (transporte e disposição dos cadáveres, prevenção de pânico entre os prisioneiros a serem executados hora a hora nas câmaras de gás). Tal filme manifestaria profunda (e obscena, imoral) satisfação com o Holocausto? Ou contaria com a neutralidade obscena do estilo, para gerar horror e medo entre os espectadores. Onde se encaixa Bigelow?

Kathryn Biglow (à direita) diretora de Zero Dark Thirty. "A defesa mais obscena do filme é a ideia de que Bigelow rejeitaria o moralismo barato e exibiria com sobriedade a realidade da luta antiterrorismo".
Sem vestígio de dúvida, Bigelow encaixa-se a favor da normalização da tortura. Quando Maya, heroína do filme, assiste pela primeira vez à simulação de afogamento, dá sinais de estar um pouco chocada, mas rapidamente entende do que se trata; adiante, já sabe chantagear um prisioneiro árabe de alto nível: “Se você não contar tudo, entregamos você a Israel”. A caça obcecada, fanatizada a Bin Laden ajuda a neutralizar os padrões morais regulares, substituídos por imoralidade total.

Ainda mais repugnantemente amoral é o parceiro de Maya, um jovem agente da CIA, de barbas, que domina com mestria a arte (imoral) de passar da tortura à amizade, tão logo a vítima tenha sido partida ao meio (quanto acende o cigarro da parceira e trocam risadinhas e piadinhas). Há algo profundamente perturbador em como, mais tarde no filme, ele passa, de agente torturador vestindo jeans, a bem-vestido burocrata de Washington. É normalização da tortura no grau mais puro e mais eficiente – com algum mal-estar, mais por causa de sensibilidades ofendidas do que por ação antiética. Mas o serviço tinha de ser feito. Essa consciência de que o que o torturador sofre é (seria) o mais alto custo humano da tortura obriga a ver que o filme não é apenas propaganda barata: a complexidade psicológica é levada à cena de modo que os liberais possam assistir sem se sentirem culpados. Por essa razão “A hora mais escura” é muito mais imoral que “24 horas” – onde Jack Bauer, pelos menos, “racha” emocionalmente, ao final da série.

O debate sobre se simulação de afogamento é tortura ou não, tem de ser esquecido para sempre: não passa de óbvio nonsense: por que, se não por causa da dor e do medo de morrer, a simulação de afogamento faz falar até militantes muito experientes, duros, treinadíssimos? A troca dos nomes, de “tortura” para “técnica de interrogatório estimulado”, é mais um truque da lógica do politicamente correto: bastam algumas pequenas alterações de linguagem, e a violência mais brutal, praticada por agentes do Estado, é afinal apresentada como publicamente aceitável.

Cena do filme (início da invasão)
A defesa mais obscena do filme é a ideia de que Bigelow rejeitaria o moralismo barato e exibiria com sobriedade a realidade da luta antiterrorismo, que levantaria questões difíceis e, assim, nos obrigaria a pensar (além do que, como alguns “críticos” observaram, Bigelow “desconstrói” clichês femininos – Maya não mostra qualquer sentimento, é durona e obcecada na “missão”, como qualquer homem).
Santo deus! Não se pode “pensar” a tortura! Exemplo paralelo que se impõe inevitavelmente é o estupro. E se o filme mostrasse um estupro violento, também com “isenção”, cool, neutro, com todos os detalhes técnicos e topográficos... e insistisse em que temos de fugir do moralismo barato e passar a tentar compreender o estupro em toda sua abissal, infernal, complexidade?

Nossas tripas nos gritam que há aqui alguma coisa terrivelmente errada: prefiro viver numa sociedade na qual o estupro seja apenas INACEITÁVEL; e de tal modo que quem defenda o estupro, o Holocausto ou a tortura seja imediatamente visto e avaliado como louco varrido, como idiota perfeito, com o qual ninguém, em nenhum caso, seria obrigado a discutir.

É sinal de avanço e amadurecimento éticos, que a tortura seja sempre rejeitada, DOGMATICAMENTE rejeitada como repulsiva... sem que ninguém tenha de construir complexas redes argumentais, para “demonstrar” o horror da tortura.

E o que dizer do argumento “de realismo”: a tortura sempre existiu; não é melhor discuti-la e falar publicamente sobre ela?

Pois é aí, precisamente, que mora o problema: se a tortura sempre continuou, se jamais foi interrompida... por que o governo dos EUA não fala abertamente sobre ela? A resposta é uma só: para naturalizar a tortura, para normalizá-la, para destruir, para baixar muito, os nossos padrões éticos.

Tortura salva vidas? Talvez sim, mas, com certeza, perde almas. A mais obscena justificação da tortura é o argumento de que herói-herói-mesmo é ele, ou ela, que esteja pronto a perder sua alma... para salvar vidas dos compatriotas...

A normalização, a naturalização da tortura em “A hora mais escura” é sinal do vácuo moral no qual vamos aos poucos mergulhando. Quem tenha qualquer dúvida, tente imaginar qualquer grande produção de Hollywood, que mostrasse tortura em detalhes, como Bigelow mostra hoje... há 20 anos. Nunca existiu nem existiria: é impensável.

Ficha técnica e “trailer” do filme:
Título em português: “A hora mais escura”
Ano da produção: 2012
País: EUA
Duração: 157 mins
Diretora: Kathryn Bigelow
Elenco: Chris Pratt, Edgar Ramirez, James Gandolfini, Jason Clarke, Jennifer Ehle, Jessica Chastain, Joel Edgerton, Kyle Chandler, Mark Strong.
Mais sobre o filme (em inglês)


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