quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

Aaron Swartz (1986-2013): Combatente contra a privatização do conhecimento


15/1/2013, The Real News Network - Entrevista de Paul Jay com Brian Guthrie e Roy Singham
Vídeoentrevista traduzida pelo pessoal da Vila Vudu

Entreouvido na Vila Vudu: Walter Benjamin nasceu em Berlin, dia 15/7/1892; e suicidou-se em Portbou (fronteira Espanha-França) dia 27/9/1940. Walter Benjamin TAMBÉM preferiu o suicídio, a deixar-se julgar pelo aparelho judicial dos nazistas.


PAUL JAY, Editor Sênior de The Real News Network: Aaron Swartz foi brilhante desenvolvedor de softwares. Recentemente, trabalhou para a empresa Thoughtworks – desenvolvedora global de softwares. Mas, antes disso, já era mundialmente conhecido como o desenvolvedor de Reddit, o inventor do RSS e um dos que conceberam e projetaram a organização Creative Commons. Na 6a-feira passada, Aaron suicidou-se em New York. 

Em junho desse ano (2012), Aaron Swartz foi acusado de ter usado o acesso que obteve do Massachusets Institute of Technology, MIT, para logar-se ao sistema JSTOR – um banco de dados de artigos acadêmicos, de onde teria baixado grande quantidade de artigos científicos com o intuito de distribuí-los. Temia-se que fosse condenado a mais de 30 anos de prisão.

Hoje, para falar conosco sobre Aaron, o homem, e o significado desse caso, temos, para começar, Roy Singham. Roy é fundador e presidente da empresa Thoughtworks Inc., a última para a qual Aaron trabalhou. E Brian Guthrie. Brian trabalhava com Aaron na mesma empresa; também é desenvolvedor de softwares e ativista pela liberdade da Internet. Obrigado a ambos, por aceitar nosso convite.

Brian Guthrie: Obrigado a você.

Jay: Roy, por favor. Para começarmos, fale rapidamente sobre o caso, sobre o que realmente se viu na acusação. Quero dizer: a pergunta que, suponho, todos nós nos fazemos hoje é: por que o Procurador atacou Aaron com tanta fúria? Nenhum documento foi distribuído. Se Aaron baixou os documentos pensando em torná-los públicos, jamais os distribuiu. Não houve nenhum crime. Apesar disso, o Procurador atacou-o furiosamente... 

Roy Singham: É... Não se sabe, mesmo... A família de Aaron distribuiu uma declaração [1], me parece, muito firme, na qual falam de excesso da Procuradoria e, infelizmente, nesse caso, também da cumplicidade do MIT, que permitiu que as coisas tomassem o rumo que tomaram. Fato é que, se Aaron baixou aqueles documentos, tinha pleno direito de baixá-los. Ele tinha acesso autorizado a eles; os documentos estavam num servidor... Mas nenhuma pessoa recebeu documento algum, porque Aaron não distribuiu documento algum. Quer dizer: se fosse crime, teria sido crime sem vítima... De fato, eles inventaram o “crime” de ter intenção de distribuir... do qual não há qualquer indício ou prova.

Deve-se lembrar também que são artigos acadêmicos. Não se trata de segredos empresariais, nem de segredo de estado. São artigos acessíveis a qualquer pessoa que tenha a necessária credencial que Aaron tinha e muitos têm, em todo o mundo. E naqueles documentos condensam-se séculos de saberes da humanidade, de conhecimento humano. A ideia de que haveria algum proveito de natureza econômica a extrair da distribuição daqueles documentos é falsa. Se tivesse havido algum crime, seria impossível provar qualquer motivação econômica. E ninguém nem nenhuma instituição foi lesada. A empresa JSTOR, que é a organização da qual os documentos foram baixados, mostrou grande surpresa com o rumo que a história tomou, porque, disseram, era coisa fácil de resolver, que ninguém fora prejudicado, que não acreditavam que chegasse a haver um ‘caso’ policial e julgamento...

E de repente, lá está o governo dos EUA, na pessoa do Procurador Federal no Estado de Massachussets, que se põe a perseguir alguém, mesmo sem dano algum, mesmo sem vítima. Enquanto os que poderiam sentir-se como “vítimas”, se tivessem perdido alguma coisa, mas nada perderam, pedem que o Procurador Federal cancele as acusações. Que é estranho, é.

Jay: Parece que, então, o objetivo tem de ser o de mandar um recado claro a todos que tenham esse tipo de talento de alta especialização, pode-se dizer, que Aaron tinha: fiquem bem longe de documentos que pertençam a seja quem for, proprietário privado ou proprietário estatal... E ponto final. Parece que não há dúvida de que Aaron foi usado para mandar o recado à comunidade da qual ele fazia parte.

Singham: É, mas... A verdade é que cada pessoa tem opinião diferente sobre o que houve. Glen Greenwald, no artigo, que achei brilhante, que escreveu para o The Guardian, [2] considera várias teorias potenciais sobre por que a Procuradoria cometeu tais excessos. Você sabe... Teria sido para criar um caso exemplar? Teria sido porque Aaron tinha inimigos poderosos nos EUA?

Como você provavelmente sabe, Aaron ajudou muito na luta para derrotar a legislação antipirataria. Ele também meteu-se com o governo, ao mostrar que as coisas [incompr.] que já produziram para os tribunais têm de ser lives. Baixou tudo aquilo, e expôs o ridículo do que estão tentando fazer. Claro que ele já chamara a atenção do FBI e do governo. Sabemos que já estava no alvo deles.

Mas o que aquele Procurador Federal fez, porém, em Boston, além das questões políticas que haja, são o que mais chama a atenção de todos, hoje. Houve vingancismo, aquele Procurador e seu gabinete rebaixaram a justiça federal. Afinal, é um Procurador Federal, juiz federal da Procuradoria Federal do Estado de Massachusetts, Carmin Ortiz. Ele já estava, há mais de dois anos, tentando meter o Aaron, praticamente um menino, um lindo rapaz, na cadeia. 

Quais, portanto, seriam os motivos pessoais, além do caso político, de, no mínimo, no caso de Aaron, dois Procuradores federais? Foi o perguntamos em nossa declaração, hoje [incompr.], distribuída à imprensa. Aqui, fala como indivíduo. Mas na declaração a ideia era que... Não é possível que haja Procuradores de justiça, nos EUA, que usem os poderes que têm para acuar gente inocente, que se sirvam do sistema judicial para chantagear inocentes e obrigá-los a se declararem culpados. Ser condenado, num processo desses, implica custas de milhões de dólares, o sujeito, a família, ficam arruinados, 35 anos de cadeia... Tudo isso assusta qualquer pessoa. 

E há muitas questões a serem ventiladas publicamente, na nossa opinião, sem dúvida alguma na minha opinião e na opinião de Brian, que trabalhava todos os dias ao lado de Aaron. Se se deixar sem discutir publicamente o que aconteceu, perderemos a geração atual e, possivelmente, mais uma geração de Aarons, duas gerações das melhores cabeças que o planeta produziu até agora. O que está em jogo é isso! Tenho ideias pessoais, sobre o que há, nesse caso, de motivação política, sim. Mas penso, em primeiro lugar, que a família de Aaron gostará de nos ouvir dizer isso. Por que, em todo o governo dos EUA, ninguém sequer tentou interromper a ação daquele Procurador Federal?  Por quê? Como é possível que isso tenha acontecido nos EUA? [incompr.]

Jay: Brian, você trabalhava ao lado de Aaron. Fale um pouco sobre o homem. Para começar, o que o motivou, em primeiro lugar, o que você acredita que o tenha motivado para baixar todos aqueles documentos? Tanto quanto sei, ele jamais negou que tivesse baixado os documentos. Mas a ação era parte de uma visão mais ampla, sobre o mundo. Que visão era essa?

GUTHRIE: Aaron é mais conhecido pela contribuição técnica, mas ele tinha, mesmo, alma de filósofo e de ativista. Era excepcionalmente culto, lia muito. Desde muito cedo e sempre, em sua vida, procurava aproximar-se de gente que admirava, procurava pessoas que admirava, perguntava o que fazer, como podia ajudar. E usou aquele talento técnico para melhorar coisas em toda a Internet. Se há coisa que todos dizem de Aaron é como ele se movimentava, como aparecia, sem mais nem menos, com ideias para ajudar, querendo trabalhar junto, oferecendo apoio à página internet de um, de outro. Era, sim, prodigiosamente inteligente e sinceramente desejava usar a inteligência que sabia que tinha e suas habilitades, e sua energia, para o bem do mundo.

Escrevia também muito, e muito bem. Pensava longamente no que escrever. Pode-se ver muito do tipo de homem que era, nos seus escritos online. Em pessoa, frente à frente, era meio calado, quase tímido, passava facilmente despercebido. Nunca chegava como o incrível ativista que foi. Mas, de fato, se se acompanhava o que ele dizia online, se se lê o arquivo online de seus escritos, do que pensava, das suas opiniões, então, sim, se vê a riqueza do conhecimento que ele tinha, tudo pesquisado, tudo organizado, as questões discutidas e expostas com enorme clareza.

Jay: Você deve ter discutido esse caso, especificamente, com ele. Como você explica a ação de ter baixado aqueles arquivos e o que ele esperava?

Singham: Aaron tinha uma abordagem muito disciplinada do modo como trabalhava e como trabalhar para maior proveito geral, do mundo, especificamente na luta em torno da questão dos direitos de autor, o copyright. Estava à procura de bancos de dados nos quais se arquivassem documentos que realmente contivessem algo de interesse social, de bem público, que devesse ser aberto, fosse pelo conteúdo, fosse por ser produzido com dinheiro de impostos que todos pagam, documentos que devessem ser propriedade aberta do povo dos EUA.

Por exemplo, o banco de dados PACER é banco de dados de documentos que foram usados em julgamentos públicos. Foi um dos bancos de dados públicos que ele ajudou a abrir para toda a internet. Nessa operação, todos descobriram que PACER estava cobrando pelo acesso àqueles documento públicos! São documentos de domínio público. São pagos e produzidos pelo povo dos EUA. Nada justifica que quem queira lê-los tenha de pagar pelo acesso.

Aaron fazia esse tipo de trabalho. Estava trabalhando para fazer-ver a desconexão absoluta que há entre as leis que temos sobre informação e o modo como as pessoas comuns têm (ou não têm!) acesso àquela informação. Estava fazendo isso. Estava trabalhando para abrir bancos de dados de documentos que já teriam de estar abertos há muito tempo, de fato, para todo mundo.

Singham: E há aí muitas e muitas nuances muito mais importantes do que o público sabe. Por exemplo: os acadêmicos que escrevem para periódicos especializados não são pagos para escrever ou publicar. Praticamente em todos os casos, as pesquisas e estudos cujos resultados são publicados são financiadas por instituições do Estado. Muitos daqueles artigos tiveram algum dia algum direito autoral, em muitos casos, já expirados. E coisas assim... De fato, o mesmo JSTOR distribuiu milhões de artigos de seu banco de dados, semana passada, porque....

Guthrie: Distribuíram 20% do que tinham arquivado.

Singham: 20%. Uma das coisas que Aaron disse em sua fala, acho, de 2011 foi “vocês sabem... Aqui está arquivado o conhecimento humano dos últimos 200 anos. Eu, como estudante de um país rico, numa universidade rica, tenho acesso livre a tudo isso, mas... e se uma estudante na Índia quiser ler o que eu leio gratuitamente, ela não pode. Porque não tem a senha que a universidade em que eu estudo me dá e me dá pleno acesso a tudo isso; mas não dá nenhum acesso a ela, à cultura literária e ao conhecimento científico da humanidade. Eu, ando um pouco e chego a uma biblioteca e posso ler o que quiser. Mas um jovem estudante pobre, por exemplo, no Brasil, não pode ler o que eu leio de graça, aqui.” Era algo que o ofendia profundamente, sinceramente, no plano moral. E ele via, muito claramente, o quanto essa discriminação prejudicaria também a sociedade norte-americana.

Guthrie: [incompr.] JSTOR [sigla de The Scholarly Journal Archive] é uma organização que tem uma missão [3], deve trabalhar pelo bem público, e com certeza baseia-se em um conjunto de boas intenções. Não tenho dúvidas de que, hoje, a JSTOR, como instituição, está muito mais feliz com o modo como conduziram o assunto, do que outras instituições envolvidas.

Mas Aaron sabia que professores e alunos das grandes universidades norte-americanas que têm acesso ao banco de dados de JSTOR também já partilhavam o acesso àquele conhecimento. JSTOR começou a cobrar de outras universidades pelo acesso aos seus bancos de dados. Muitos professores e alunos continuaram a partilhar senhas, ou distribuíam textos pelas suas próprias redes. Muitos acadêmicos já são uma comunidade de partilha de conhecimentos. São os que visam a distribuir conhecimento pelo mundo. Muitos não são obcecadamente preocupados com o sigilo de suas pesquisas. Querem que o maior número de pessoas saiba do que estão fazendo, leiam suas pesquisas.

Aaron sabia, contudo, que, mesmo assim, muita gente que vive em locais sem qualquer acesso às universidades, ou onde nem as universidades possam pagar as taxas de inscrição que JSTOR cobra têm também direito de acesso àquele conhecimento. Queria mudar isso. Queria mudar mesmo, em grandes números...

Jay: E então, Roy? Por que esse Procurador – e, como você disse, não pode ser só um Procurador. Mais gente, no Departamento de Justiça tinha de ter conhecimento do que estava sendo feito. Por que decidiram sair à caça de Aaron? Porque se puseram a persegui-lo tão ferozmente? Por que vocês acham que essa perseguição é tão ameaçadora, tão grave?

Singham: Por que... é claro... É claro que nós não temos muita chance. O pior de todos os Procuradores do Gabinete de Ortiz é Heymann, é o mais vingativo. Trabalha para Ortiz, é o chefe de gabinete do Procurador. Esses dois, Ortiz e Heymann, na minha opinião, são 100% culpados pela perseguição infatigável, sem tréguas. E por tudo que aconteceu. E outros, todos sabem, outros também discutiram o caso, Holder e outros. É absolutamente impossível acreditar que não soubessem, que não tivessem discutido o caso.

E se se analisa o momento em que as acusações foram formalizadas contra Aaron, foi exatamente no mesmo momento em que acusaram Assange e Manning. Havia no ar aquela paranoia, no Departamento de Estado, no Serviço de Segurança Nacional... [incompr.] Há ativa, hoje, uma geração inteira de hackers e, pensaram eles, temos de acabar com isso. Se não metermos essa gente na cadeia, a segurança nacional estará ameaçada.... O “clima”, naquele momento era de... temos de acabar com eles. Muita gente sentiu, não aconteceu só com Aaron. Houve outros, Jeremy Hammond, os Anonymous, muita gente que está trabalhando muito pela liberdade na Internet. Muitos deles estão sendo caçados globalmente. Quero dizer é que... Pode-se dizer que é uma coisa social, histórica. 

Ontem à noite, discutimos internamente, na nossa empresa. Há o pessoal que acha que “Por que, como empresa, temos de nos meter nisso? Por que chamar atenção para nós? Parece que queremos que o Procurador se ponha a nos investigar... Queremos que ele nos cace também?!” Discutimos os termos da nossa declaração pública. E, sim, estamos exigindo que o MIT peça desculpas à família de Aaron. Não se pode admitir que, sem mais nem menos, mudem toda a política da instituição... por causa de um Procurador Federal? 

Tudo isso é muito importante. O acesso à internet para todos não é importante, para nós, pessoalmente, e também para nossa empresa? Claro que é! Se você visitar a página de Aaron, há alguém lá, de 14 anos que escreveu que Aaron é seu “herói’. Se essa geração, onde pode haver centenas, milhares de Aarons, começa, desde já, a ser “ensinada” que os que trabalham para garantir mais liberdade para todos podem ser presos, destruídos, arrasados, que alguns, mais desesperados ou mais frágeis, não suportarão a pressão ou a dificuldade da luta... Não se pode admitir que aconteça, porque, se acontecer, a internet humanista do futuro, a internet revolucionária, terá sido assassinada no ovo. 

Fomos forçados a uma posição de mais ativismo, para combater a supressão da desobediência e da resistência civil. Infelizmente, alguns de nós, nós... Mas, nos dois últimos dias, algumas das melhores cabeças, das cabeças mais criativas, já trouxeram algumas das respostas mais inteligentes de toda a comunidade, contra, contra esses horrendos atos de autoritarismo.

Jay: Parte da questão é que... Os EUA têm superioridade militar sobre todo o mundo, têm superioridade financeira sobre todo o mundo? Será que têm? Porque, no que tenha a ver com tecnologia de computadores... parecem tão assustados nesse front. Talvez suspeitem que não têm qualquer superioridade intelectual? Talvez saibam que não têm? Por isso se sentem vulneráveis, assustadiços? Por isso atacam tão furiosamente? Porque se sintam expostos?

Guthrie: Há uma narrativa segundo a qual fazem o que fazem porque a tecnologia é novidade e eles têm medo do hacker-bandido que entra em qualquer sistema e faz o que bem entenda com os dados... É narrativa fantasiosa, nada disso é v erdade. Quero dizer... O que compreendemos da tecnologia está ainda no começo. Mas acho que Aaron acabou capturado por essa narrativa que os Procuradores da Justiça Federal podem manipular a favor deles mesmos. Se conseguirem pintar Aaron como bandido perigoso, como mais um de uma vasta conspiração de hackers-bandidos. E Aaron...  

Jay: Antes da entrevista, fora do ar, você disse uma coisa importante: que Aaron não invadiu sistema algum. Ele tinha a senha de acesso, dele, legalmente dele. O que Aaron fez foi como ir a uma livraria com a carteirinha de entrada, entrar normalmente e fotocopiar livros de domínio público. Para distribuir as cópias, se quisesse. Foi isso?  

Singham: Não é bem isso, porque Aaron nunca imprimiu nada. Não houve nenhuma cópia. Ele baixou os arquivos para o seu computador. Não há crime algum.

Guthrie: É. A comparação correta é com alguém que entra legalmente numa biblioteca e passa os olhos, muito rapidamente, por muitos livros. O que impacta o sistema, é que ele baixou muitos artigos, muito rapidamente. Mas não fez coisa alguma que alguém, seja quem for, possa descrever como hackear alguém ou a propriedade de alguém. Aaron não entrou em nenhum sistema, não alterou nenhuma senha. Não fez coisa alguma que a página que ele acessou não autorizasse a fazer. Nem, sequer, alterou a URL, o que é óbvio...  

Singham: É óbvio...

Guthrie: É absolutamente óbvio que não alterou nem a URL – que é algo que tem sido usado como pretexto para acusar pessoas de estarem hackeando páginas. Se você alterar a URL de um vídeo do YouTube, alguém poderá alegar que, em circunstâncias que façam pensar nisso, você estaria hackeando o vídeo. Aaron não fez nem isso. Nem faria. Aaron não era esse tipo de gente.

Jay: Você está dizendo que, se um aluno comum, sem histórico nem interesse no ativismo de Internet e sem ter os dotes e a habilitação excepcional de Aaron, tivesse feito o que ele fez, nada teria acontecido e, com certeza, não teríamos Procurador algum em surto persecutório. O Gabinete do Procurador Federal do estado de Massachusetts pôs-se a caçar Aaron porque se tratava dele, Aaron Swartz. E porque tem medo do que gente como ele é capaz de fazer. É isso?

Singham: Acho, é minha opinião pessoal, que há um movimento calculado, no governo dos EUA, para tornar inoperante a próxima geração de “gente de computador”. Aliás, a desobediência civil que esse pessoal pratica não é diferente da que o Dr. [Martin Luther] King, da que Gandhi pregavam. O argumento de que Gandhi desrespeitou a lei no imposto do sal, ou, então, que o Dr. King violou leis ao “desrespeitar” as leis racistaas... São pequenas transgressões, sem importância alguma, de leis injustas... 

Aaron gostava de riscos. Acreditava que, acho que... Não sei se ele teria antevisto alguma resposta tão absurda... Não sei se alguém poderia prever a reação alucinada desse Procurador, mas... Aaron compreendia muito bem que as leis que há hoje, não dão conta, de modo algum, das mudanças tecnológicas. Que são leis aprovadas há 30, 40 anos, que já nada significam nessa área nova em que vivemos hoje. Entendia também muito bem que aquelas leis estão sendo usadas por um pequeno grupo de empresas gigantescas para privatizar e converter em dinheiro todo o capital intelectual que é legado humano, de toda a humanidade. 

Por isso, até a revista The Economist, que não é afamada pelas posições progressistas, chamou-o ontem de “o homem dos comuns” [orig. commons man], [4] e não no [incompr.] sentido de ele defender, ou ser um dos grandes defensores do conceito dos bens “commons” e a completa erosão...

Mas Aaron, nesse sentido, estava atacando diretamente os interesses econômicos dos que estão tentando privatizar o conhecimento humano.

Mas ele também sabia que havia uma relação entre aqueles interesses e o Estado, razão pela qual quase tudo em que estava trabalhando era ativismo em torno de leis. Porque ele então começou a entender que o contexto mais amplo era, sim, um contexto político. Por mais apaixonado que fosse por Creative Commons, também era apaixonado pela próxima geração de combatentes.

Jay: Brian, fale um pouco sobre as outras áreas em que Aaron trabalhava. Você me disse, antes da entrevista, que essa era parte pequena do ativismo de Aaron.

Guthrie: É. Nós conhecemos Aaron como técnico, mas a tecnologia para ele era uma ferramenta. Algo que ele queria usar para realmente mudar o mundo. O trabalho que estávamos fazendo com ele na Thoughtworks envolvia construir um software usando as mesmas ferramentas e técnicas que o pessoal do Vale do Sílício está usando para fazer as pessoas postarem mais no Facebook, aplicando o mesmo nível de detalhes analíticos para encorajar as pessoas a trabalhar certo, fazer o bem no mundo e aproximar as vozes num coletivo de gente que tenta mudar as coisas.

E assim, para esse objetivo, estão trabalhando num software que Aaron queria fazer e fez – já está disponível, gratuito. Basta baixar, você mesmo. É distribuído sob licença de fonte aberta. Aaron planejava usar esse programa para chegar às ferramentas mais avançadas para ativismo social na internet em todo o mundo, para gente que não teria acesso às ferramentas, se não pagasse.

Singham: É. [incompr.] O pessoal pensa nele como uma espécie de ‘herói global do ocidente’. Aaron era profundamente internacionalista. É que... [incompr.] nesse aspecto, em especial,  ele percebeu que o conhecimento sobre campanhas, militância, sobre organização, hoje, é fenômeno restrito a países ricos; que até entre os progressistas, há o risco de que as agendas não sejam montadas pelas próprias pessoas, que alguém as monta ‘pelas pessoas’. Aaron era democrata empenhado, dedicado. O que alguém faz, se vive numa aldeia perdida no Burundi e quer espalhar a minha campanha, não importa o que seja, a favor ou contra seja lá o que for, e o sujeito não quer que a agenda dele seja ‘traduzida’ por alguém em Washington, nem em New York, o sujeito quer falar, ele mesmo, e ser ouvido por aquelas pessoas que ouvem os tais celulares, e computadores moderníssimos.... 

Aaron era pensador incrivelmente avançado sobre a natureza do poder político, como democratizar o acesso, como a internet tem de ser usada para esvaziar o poder da acumulação de riqueza e poder. Foi dos últimos, infelizmente, nesse sentido... dos grandes humanistas, que lutaram contra o poder concentrado em poucas mãos e os estados totalitários.

JAY: Brian, gente como Aaron atualmente faz fortuna rápida. Mas ele parecia não se interssar por dinheiro... se entendi bem.

Guthrie: É – e diga-se a favor dele. Acho que Aaron poderia ter sido o que quisesse e fazer absotamente o que quisesse. O dinheiro caiu sobre ele, sem que ele o procurasse. E, diga-se, outra vez a favor dele, que ele continuou a seguir suas pistas e oportunidades, onde conseguisse encontrar alguma, sempre procurando fazer o maior bem possível à maior quantidade possível de pessoas. Nunca pensou em ganhar dinheiro. Ajudou a criar a empresa Reddit.com, e depois que foi vendida ao grupo Condé Nast, separou-se completamente e usava o dinheiro como usava o oxigênio que respirava, não para acumular oxigênio dentro dele, mas para andar o quanto precisasse, para melhorar o mundo.

Singham: Verdade é que ele não ganhou tanto dinheiro como se disse. Não foi tanto quanto as pessoas pensam.  

Guthrie: É.  

Singham: Aaron era um dos proprietários. Havia outros. E ele gastou nas “operações”, no caso PACER, para viver e morar. Nunca viveu como rico. Há muita coisa errada, no que se disse dele. 

Pessoalmente, como técnico, estou preocupado com gente que acredita nos retratos que se pintam por aí de Steve Jobs, como ícone. O mundo precisa de ícones como Aaron Swartz, não como Steve Jobs. De fato, na nossa indústria, somos pessoas de sorte, porque conseguimos viver do que gostamos de fazer. Mas... usamos para quê, o que nós sabemos fazer? Nesse sentido, pensando com meus botões, acho que Aaron foi o mais importante personagem modelo da nossa geração, com certeza nos EUA... É muito difícil, para mim...

Você e eu tivemos muita, muita sorte, porque vivemos tanto tempo com ele, nos últimos seis, oito meses. E passei dois dias chorando sem parar. Você também. E só hoje, no terceiro dia, estamos começando a conseguir começar a reconstruir o legado de Aaron, como, tenho certeza, ele queria que fizéssemos.

O que mais me perturba é gente que tenta inserir Aaron em cenários sempre estreitos, estreitos demais. É o hacker, ou é o cara da Internet. Conheço gente, conheço muita gente... Você e eu conhecemos muita, muita gente. Você conheceu algum sujeito melhor que ele? Mais atento, mais carinhoso? Eu ainda não consigo acreditar. Ainda choro. 

Conversamos uma vez, recentemente, sobre como se podia mudar o modo como os americanos veem os muçulmanos. Aaron, um jovem, belo e bom judeu. Entrou na sala onde havia vários, você sabe, ativistas muçulmanos, e disse que todos temos de fazer alguma coisa para mudar o modo como os norte-americanos veem os muçulmanos. Chegou até a lousa e disse “escutem, temos de combater, fazer uma guerra contra os mercadores do ódio”. [incompr.] Tinha ido até lá dizer isso. Ficaram lá, uma, duas horas.

Guthrie: É.

Singham: Ele fazia essas coisas. A amplitude das questões sobre as quais pensava era quase inacreditável. Nesse sentido, era quase um radical. Leu Chomsky com 15 anos. Falava de tudo sobre o que as pessoas não querem falar. Era homem profundamente insatisfeito. Numa de suas falas sobre a campanha SOPA, quando falou sobre isso pela primeira vez, disse “olha, não estou interessado em lei de direitos de autor; direitos de autor não me interessam, nem a favor nem contra. Quero mexer no acesso a assistência médica, quero mexer nessa crise financeira, quero entender por que não temos o Congresso “na cola” das empresas que negociam com o Pentágono. Quero dizer... Ele pensava assim.  

Jay: Roy, muitos dos que nos assistem perguntarão por que Aaron não quis lutar esse combate contra o Procurador. Já se sabe que ele sofria de depressão. Não é verdade que, porque sabia que seria preso, preferiu outra solução. Acho que, como sempre acontece, a depressão tomou conta da capacidade de decidir...  

Guthrie: Uma das conversas que circularam foi a questão do dinheiro, que o dinheiro não seria problema. Você entra num processo desses, mesmo que seja completamente inocente, numa corte federal, passa um dia lá dentro sendo julgado e, à tarde, você está condenado a passar o resto de sua vida na cadeia ou deve 1,5 milhão de dólares. Não há como imaginar o que é isso [conversas cruzadas].

Singham: Esse dinheiro ele não tinha.

Guthrie: É. Não tinha. E, para pagar, ele teria de pedir a alguém... Isso....

Singham: Nós estávamos tentando ajudá-lo a levantar o dinheiro. Eu disse a ele várias vezes, Aaron, a comunidade sairá em sua defesa. Mas ele era tão reservado, tão discreto. Um cenário desses, para ele, era inconcebível. Acho também que... Tive de enfrentar a depressão, conhecidos meus tiveram depressão, há os que têm depressão. Tenho pensado muito sobre isso. Sei que depressão é coisa complexa. Ele sabia e falava abertamente. Pouca gente, da importância dele, falaria tão aberta e sinceramente sobre essa coisa. 

Sinto também que... Aaron era muito amado. Posso dizer com segurança que era muito amado. O sócio dele, a família dele, são grandes pessoas. O que me ocorre é que... ele sabia que era amado. Mas é difícil, não importa o que digam os amigos, até os que mais nos amem, para alguém que vivia sinceramente preocupado com o futuro mais profundo, mais grave, da humanidade, ter, de repente, de se preocupar consigo mesmo, com arranjar dinheiro, advogados, sob o risco de ser preso. Não sei. Nem a família, nem na empresa falamos sobre isso. Mas todos o amamos muito [incompr].

Claro que sempre que se enfrenta uma tragédia como essa, todos se perguntam – fizemos tudo que poderíamos ter feito? Poderíamos ter feito mais? Estamos todos em luto, um processo de luto. Andamos, de fato, em torno do problema, porque nada muda alguns fatos? Como explicar e como reagir à fúria daquele Procurador? O que algum dia explicará a reação do MIT? O que algum dia explicará o terror de um homem jovem, ante uma sentença de 35 anos de prisão? 

É uma tragédia pessoal, para Aaron, para nós que o amávamos. É tudo horrível demais e exigimos explicações. Em todos os casos, ainda maior tragédia será, se tudo isso intimidar uma geração inteira de jovens combatentes. E os EUA criamos o estado mais totalitário do mundo, muito mais totalitário que 1984.

Jay: Obrigado pela entrevista.


ADAM SWARTZ: A Internet é incontrolável. Mas se esquecermos disso, se deixarmos que Hollywood reescreva a história e invente que a grande empresa Google fez o serviço todo, se deixarmos que nos convençam de que não fizemos diferença alguma, se passarmos a ver as coisas como responsabilidade de outros, que eles fizeram tudo, que nosso papel é ir para casa, fazer pipocas e ver Transformers... Aí, talvez, da próxima vez, eles talvez nos derrotem. Não podemos deixar que aconteça.

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Notas de tradução:
[1] Em português, 15/1/2013, redecastophoto em: Aaron Swartz (1986-2013), ativista, combatente da liberdade, “hacker”

[2] 12/1/2013, The Guardian, Glenn Greenwald em: The inspiring heroism of Aaron Swartz (em inglês).

[3]  JSTOR  é um sistema online de arquivamento de periódicos acadêmicos sediado nos Estados Unidos, fundado em 1995, que reúne bibliotecas de todo mundo. Leia também sobre JSTOR-USP.

[4] 13/1/3013, The Economist  em: Remembering Aaron Swartz - Commons man

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