domingo, 9 de dezembro de 2012

Os liberais egípcios não são democratas


1/12/2012, Mohamad Hamas ElMasry, Egypt Independent
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu






Mohamad Hamas Elmasry é professor-assistente no Departamento de Jornalismo e Comunicações de Massa da American University, no Cairo.





Ser liberal é ser democrata. Parece óbvio.

Mas no Egito – como na política externa dos EUA –, a coisa é mais complicada, porque há vários diferentes modos de trair os princípios da democracia – o que fazem muitos dos que se apresentam como liberais ou que falam do liberalismo como sua ideologia política.

Examinemos, por exemplo, rapidamente o quadro político no Egito, para ver como se desenrola, ante nossos olhos, um ataque “liberal” contra a democracia, no Egito contemporâneo.

Em junho, o Conselho Supremo das Forças Armadas e um Judiciário constituído de ampla maioria de juízes indicados pelo já expulso presidente Hosni Mubarak trabalharam juntos para desmoralizar, apoiados numa tecnicalidade, o primeiro Parlamento que os egípcios jamais elegeram em eleições livres e limpas.

Seria de supor que essa bofetada perturbaria qualquer um dos neoapaixonados pela democracia pós-revolução no Egito. Nada disso!

Muitos “liberais” egípcios não se opuseram ao golpe. Vários até o elogiaram abertamente. Por quê? Porque a Assembleia Popular estaria dominada por islamistas, e muitos “liberais” não engolem a ideia de ser governados, por quatro anos, por Parlamento de maioria islâmica, mesmo que democraticamente eleito. Em resumo, a ira que os islamistas causam aos “liberais” levou os “liberais” a esquecer completamente de todos os seus muito alardeados princípios democráticos.

Aí está narrativa que não soará estranha a quem acompanhe a atual política externa dos EUA, com os EUA ativamente envolvidos em golpes contra governos democraticamente eleitos, porque os eleitores (na Palestina, na Guatemala, no Irã, na Venezuela, no Brasil, dentre outros países) teriam, na opinião da Casa Branca, votado “errado”.

Muitos “liberais” egípcios, como os que governam os EUA, não parecem ter entendido, até hoje, que, em democracias, vota-se, contam-se os votos e a maioria assume o poder de pleno direito, mesmo que sejam islâmicos ou que não sejam “alinhados” com Washington. Supor que haja democracia “certa” – parece democrática para “nós”, mesmo que não seja democrática para “eles” – não faz de nenhum “liberal”, um democrata.

Mohamed Mursi
Mais recentemente, em julho, quando o movimento do presidente então recém eleito Mohamed Mursi para reinstituir a Assembleia Popular foi bloqueado, muitos “liberais” deram de ombros e não se incomodaram. E muitos nem deram de ombros, nem tomaram conhecimento.

Em agosto, Mursi, num esforço para atender a uma importante demanda da revolução, tentou demitir o Procurador Geral do Estado, homem nomeado por Mubarak e destinado a permanecer no posto até atingir a idade de aposentadoria. Outra vez, Mursi foi impedido de completar seu movimento democratizatório revolucionário; e, mais uma vez, os “liberais” egípcios calaram-se, quase completamente; e nada fizeram, ou quase nada.

Mais recentemente, e talvez o evento mais importante, a Assembleia Constituinte, democraticamente reunida e encarregada de redigir a nova Constituição do Egito, foi ameaçada pelos dois lados: pelas forças políticas “liberais” e pelo Judiciário. Relatos sugerem que o Judiciário chegou bem perto de dissolver a Assembleia Constituinte, enquanto ainda trabalhava na redação da nova carta constitucional do Egito [1].

A Assembleia Constituinte é um importante ponto a ser analisado. Cerca de 20 dos 54 membros não islâmicos dos 100 que constituem a comissão, abandonaram recentemente o barco, reclamando de excessiva, não autorizada e inadmissível influência islâmica na redação do documento.

As renúncias aconteceram apesar de, segundo vários relatos confiáveis, de dentro e de fora da Assembleia, a vastíssima maioria dos artigos da minuta da nova Constituição terem sido discutidos e aprovados pelos islâmicos e pelos membros seculares da Assembleia, com os grupos islâmicos mais conservadores já tendo desistido de introduzir na Constituição as exigências religiosas mais restritivas.

Recentemente, fontes confiáveis também confirmaram que muitos dos “liberais” que abandonaram o barco não estavam tão incomodados com os artigos “religiosos”, mas, sim, por que muitos membros da Assembleia não estavam dando atenção a uma de suas exigências “democráticas” mais importantes – que a presidência de Mursi fosse considerada concluída no momento em que a nova Constituição fosse aprovada; e que se realizassem novas eleições presidenciais.

Hamdeen Sabbahi
Hamdeen Sabbahi, destacado “liberal” socialista e ex-candidato à presidência expôs claramente essa preocupação “liberal” em outubro, quando exigiu que Mursi renunciasse depois de aprovada a nova Constituição. No mesmo parágrafo, admitiu que, fosse ele, jamais aceitaria tal proposta, no caso de ter sido eleito.

Como se não bastassem os esforços “liberais” para encurtar o mandato de Mursi, já circulam notícias confiáveis de que o Judiciário prepara-se para cancelar a declaração constitucional de Morse, de julho; para reinstaurar a declaração do Conselho Supremo das Forças Armadas (que limita os poderes do presidente e dá ao Conselho Supremo autoridade para modificar a Constituição); e para destituir o Conselho da Shura – a Câmara Alta do Parlamento, democraticamente eleita.

Depois de ver desmontada a Assembleia Popular; de ser impedido de demitir o Procurador Geral; das ameaças de destituição da Assembleia Constituinte e do Conselho da Shura; e de mais ameaças de ter o próprio mandato encurtado ou encerrado para sempre, com a reinstauração do mandato antidemocrático do Conselho Superior das Forças Armadas... pouco restou ao presidente Mursi, além de tentar garantir para ele mesmo, poderes temporários para ficar no posto para o qual foi eleito – esforço para tentar ainda salvar as instituições democraticamente constituídas do novo Egito e o processo constitucional, que ainda não está concluído.

Como se poderia adivinhar que aconteceria e aconteceu, muitos dos “liberais” egípcios protestaram que o movimento do presidente Mursi – o qual, sim, do ponto de vista da propaganda e das Relações Públicas, não foi conduzido e divulgado tão bem como poderia ter sido – comprovaria que Mursi teria traços autoritários, que fariam dele ditador semelhante a Mubarak.

O decreto pelo qual Mursi se assegurou poderes, de fato, serviu como excelente munição para os “liberais” que tentam derrubá-lo ou limitar sua influência, medidas que desde bem antes já interessavam muito aos mesmos “liberais”.

As preocupações “liberais” relacionadas à dita “ditadura” (temporária) de Mursi são, de fato, muito confusas, embora compreensíveis, se se considera o medo “liberal” dominante em março de 2011, no período de governo provisório do Conselho Supremo, quando os militares avocaram para eles poderes especiais, um “provisório” que se estendeu por dois anos.

Mohamed ElBaradei
“Liberais” egípcios, como Mohamed ElBaradei, que sugeriu, ele mesmo, o prolongamento do governo provisório dos militares, não parecem preocupados com a evidência de que poderes legislativos e executivos voltem a ser entregues a militares não eleitos, que ainda têm raízes longas e profundas em toda a estrutura do poder no Egito.

A recente agitação contra o decreto do presidente Mursi rapidamente levou a conclamações para que fossem queimadas as sedes da Fraternidade Muçulmana, gerou revolta contra o presidente eleito e envolveu países ocidentais – ideias brotadas, todas elas, do ramo “liberal” da política egípcia.

Para sermos justos, há, sim, liberais equilibrados e sérios no Egito, entre os quais Mohamed Al-Omdah, que recentemente denunciou Sabbahi – que Omdah ajudou a eleger, trabalhando em sua campanha eleitoral durante seis meses – por suas posições antidemocráticas e autoritárias.

Evidentemente, ninguém, exceto Mursi e seu círculo mais íntimo, podem ter certeza sobre se o primeiro presidente que o Egito elege em eleições democráticas tem, ele também, desejos ditatoriais à moda Mubarak, ou, sabe-se lá, até pior que isso.

Em todos os casos, parece prudente – e mais democrático – esperar que transcorra o cronograma que Mursi definiu, antes de se pôr a chamá-lo de “faraó” e “ditador”. Se, ao cabo de três meses, ficar claro que os poderes que Mursi reivindicou para si nada têm de temporários, então, sim, os “liberais” estarão em posição de reivindicar o apoio da maioria da rua egípcia para iniciar revolta popular e democrática. Serei o primeiro a clamar por mobilização e protestos de rua, se isso acontecer.

É preciso saber ver com clareza o quadro, hoje: muitos do “liberais” egípcios apreciaram muito a ideia de ver desbaratada a Assembleia Popular democraticamente eleita; tentaram acabar com o presidente Mursi, eleito, antes, mesmo, de ele tomar posse; e, sem conseguir impedir que tomasse posse, puseram-se a tentar desconstituir e desmoralizar todo o processo constituinte. Assim, os “liberais” só conseguiram devolver o projeto de uma nova democracia egípcia, de fato, a um proverbial marco zero.

Bobby Ghosh
Verdade é que, em vez de se mobilizarem para próximas eleições, os “liberais” só se dedicam hoje, no Egito, a procurar meios – ilegais, não éticos e antidemocráticos – para tirar do poder, ao qual chegou por vias democráticas e lícitas – a mais poderosa força política que há no país.

Por pouco estimulante que pareça, a realidade contemporânea no Egito é clara: alguns respeitam a democracia; a maioria desses, são islâmicos. Bobby Ghosh, da revista Time, acertou perfeitamente quando disse, em 2011, que os islâmicos são os melhores democratas que há no Egito.

Quanto aos “liberais” egípcios, ainda têm longo caminho a percorrer, antes de poderem ser reconhecidos como democratas. Por hora, dedicam-se a “conter a democracia” – tomando emprestada a expressão de Noam Chomsky – por vias e modos que não são muito diferentes do que têm feito sucessivos governos norte-americanos.



Nota dos tradutores
[1] Sobre isso, ver também, muito interessante, na redecastorphoto, A imperfeita Constituição do Egito, 3/12/2012, Paul R. Pillar (Consortium News), traduzido.

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