sexta-feira, 26 de outubro de 2012

Os Jovens com Síndrome de Down e a Música



Publicado em 25/10/2012 por Urariano Motta*

Recife (PE) - No Recife, no sábado 13 de outubro, estamos no Bar Mamulengo, em um encontro que reúne os melhores violonistas e chorões da cidade. Estamos aqui para uma confraternização com Luís Nassif, jornalista e escritor, que ama e divulga os músicos pernambucanos lá em São Paulo. E quando digo estamos, e me incluo indevido numa confraria de monstros das cordas, quero dizer: estão Beto do Bandolim, Henrique Annes, Lalão, Racine, Ravel, o próprio Nassif, e mais músicos na plateia, nas mesas em torno, que inibidos não vêm ao pequeno círculo onde se destacam os bambas e microfones.

Existe uma atmosfera que faz a gente ser bom, franco, verdadeiro, retornar amizades ou fazer amigos pelas revelações mais sérias, como o grande Nassif me faz à mesa, como se falasse nada, e que derrubam as defesas deste pernambucano por essência desconfiado. Ele seria capaz de me dizer, como por outras palavras me disse: “eis porque o meu amor percorre o mundo desta maneira”. E a gente olha para longe, para não se trair, porque está entre a comoção e a mais irrestrita solidariedade.

As vozes ao redor ajudam a gente a disfarçar, ninguém é louco de pedir silêncio, porque há sempre um ruído nas manifestações coletivas, mesmo nas mais solenes. 

Então vem dos jovens com Síndrome de Down, ali presentes, o melhor. Uma bela mocinha com os seus olhinhos onde brilha uma irreprimível simpatia, com seus olhinhos puxados que são uma nascente de amor, beija no rosto o violonista Lalão. Ele, mulato escuro, enrubesce na penumbra do momento. Ficou confuso, a sorrir para a mocinha. Ao que ela lhe pede, pois grande é o cerco e cercania das atrações do sentimento: “Toca Olha pro céu meu amor”. Ela pede e sai. Ele resmunga para mim: “olha pro céu meu amor...”. E eu sei o que isso significa. Lalão quer apenas dizer, tocar uma coisa tão boba, para um músico da minha altura e talento, era só o que faltava.    

Eu não sei se existe uma hora em que a leveza toca o coração do grande artista. Eu não sei se há um instante em que um afeto simples, singelo, idiota, como resposta a um beijo assoma e revolve o peito de um virtuose, eu não sei, enfim, se a vaidade da gente cede o passo a uma compreensão total, absoluta, que vem da grande arte. Sei que Lalão toca “Olha pro céu, meu amor”. A mocinha e outros jovens começam a dançar, numa confraternização, como se fossem a própria tradução da música em corpos e alegria.
      
Pois assim como o beijo que tem uma duração para toda a vida, que vai além do segundo em que os lábios se encontraram, cresce mais para mim a percepção daquele instante. Ali houve uma contaminação da doença que tem o nome de solidariedade.

No salão, em todo o bar houve uma onda solidária, a ponto de fazer Lalão chamar Henrique Annes para tocar a seu lado. E ficarem eles mesmos, os dois geniais violonistas, a tocar puros como dois grandes excepcionais. Como se fossem dois meninos grandes que fazem dos acordes olhinhos puxados.
  
Os jovens especiais dançam. Então as pessoas que pensamos serem diferentes em tudo de nós, “eles veem a vida em tons sombrios, ou de angustiado amarelo, ou de explosivo vermelho, de melancólico azul”, então pessoas assim, para nossa descoberta, veem balões multicoloridos subindo no céu. Talvez delas, mais do que outras, seja esse direito.

Elas veem, dançam e se encantam, pois grande é a procura de alegria, e com mais necessidade em quem no seu natural não a possui. Isso deixa a gente também meio bobo, com vontade apenas de repetir: foi numa noite, igual a esta, que tu me deste o teu coração, o céu estava assim em festa, pois era noite de são João... 

Não sei se Lalão viu. Ou se viu, como bom artista, viu e guardou escondido no seu coração. Para ninguém ele disse naquele minuto, pois parecia tocar alheio àquele mar de felicidade, que se espraiava na singela composição, no modo e humildade com que ele a tocava.

Ele fez que não viu que estávamos todos felizes ao ver a felicidade dos jovens de Down a dançar. A gente se amarrando pra não cantar em voz bem alta os versos:    

“Olha pro céu, meu amor
Vê como ele está lindo
Olha praquele balão multicor
Como no céu vai sumindo
Foi numa noite, igual a esta
Que tu me deste o teu coração
O céu estava, assim em festa
Pois era noite de São João
Havia balões no ar
Xote, baião no salão
E no terreiro
O teu olhar, que incendiou
Meu coração”.

O momento em imagens com a duração de um beijo ficou aqui, a seguir:


Urariano Motta* é natural de Água Fria, subúrbio da zona norte do Recife. Escritor e jornalista, publicou contos em Movimento, Opinião, Escrita, Ficção e outros periódicos de oposição à ditadura. Atualmente, é colunista do Direto da Redação e colaborador do Observatório da Imprensa. As revistas Carta Capital, Fórum e Continente também já veicularam seus textos. Autor deSoledad no Recife (Boitempo, 2009) sobre a passagem da militante paraguaia Soledad Barret pelo Recife, em 1973, e Os corações futuristas (Recife, Bagaço, 1997).

Enviado por Direto da Redação

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