domingo, 21 de outubro de 2012

EUA: Tempo de contrarrevolução


17/10/2012, Corey Robin, Stop NATO
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu


A London Review of Books que acaba de sair, publica resenha do livro Age of Fracture [Tempo de Fratura], de Daniel Rodgers, assinada por mim [1]. Só para assinantes da revista, o que é uma pena, não só porque é minha opinião, mas também porque é minha opinião sobre livro sensacional. Sem meias palavras, é a mais ampla história intelectual do pensamento social norte-americano no pós-guerra que jamais li. Merece muita atenção e discussão. Como já escrevi lá, é, também, uma reflexão falhada. O tema ao qual Rodgers se dedica não é alguma “fratura”: é uma contrarrevolução. Aqui, um aperitivo do que escrevi lá:

Corey Robin
Se se examinam os livros publicados entre 1944 e 1963 – dentre os quais An American Dilemma [2], The Origins of Totalitarianism  [3], The Power Elite  [4], The Organisation Man  [5], The Feminine Mystique  [6] e The Making of the English Working Class  [7] – vê-se que mostram um mundo que estaria em movimento, rumo a uma coesão quase claustrofóbica. As classes consolidam-se, os brancos oprimem os negros, os “colarinhos brancos” oprimem os sem colarinho algum, os ternos caros caminham pelas ruas dos centros financeiros das grandes cidades, onde só se veem bancos e escritórios de grandes empresas.

Auschwitz talvez estivesse a um mundo de distância de Levittown, mas o que Hannah Arendt viu como atos totalitários – “destruir todos os espaços entre os homens e empurrar homens contra homens” – autores do pós-guerra tomaram como boa descrição de toda a vida social.

Quando Betty Friedan recorreu ao campo de concentração como metáfora para o mundo da mulher, refletiu o pensamento de uma geração treinada para pensar em termos de blocos de homens e de mulheres obrigados a viver em espaços limitados, modelados ou constituídos por diferentes vias, por padrões sociais.

As décadas seguintes assistiram à publicação de The Declining Significance of Race  [8], In a Different Voice  [9], Free to Choose  [10], Gender Trouble  [11] e Freakonomics  [12]. A unidade ou foi-se ou está em ponto morto. Nenhuma regra, nenhuma lei conta ou interessa. Fora a lei. Viva o desvario personalista. Tudo que era (supondo-se que algum dia tenha sido) sólido derreteu-se no ar.

Mas onde Marx foi melancólico ou foi ao êxtase ao pensar essa noção, supondo que refletiria uma dissolução genuína do mundo social (burguês), autores e intelectuais veem hoje essa fragmentação não simplesmente como um modo transitório de ser do mundo, mas como a própria condição do conhecimento.

Professor, historiador da história intelectual, Daniel Rodgers chama a esse tempo “Tempo de Fratura”, percebendo a tendência entre os intelectuais das últimas quatro décadas, de trocar “leituras fortes da sociedade” por “leituras mais fracas”. Entre meados do século 19 e meados do século 20, diz ele, “os pensadores sociais envolveram o ego [orig. self] em círculos cada vez mais e mais amplos de relações, estruturas, contextos e instituições. Os seres humanos nasciam dentro de normas sociais, dizia-se. As chances da vida eram maiores ou menores conforme o lugar que cada um ocupasse na estrutura social; até as características de personalidade ganhavam forma dentro do campo das forças da socialização.” E, então, tudo se quebrou. Não só o mundo externo – tudo se quebrou, afinal de contas, desde o início da modernidade; os últimos 25 anos do século 20 foram só um pouco mais partidos e fraturados que os primeiros 25 anos do século 17 – mas também, e especialmente, “no campo das ideias e da percepção”. “Ouve-se cada vez menos sobre sociedade, história e poder; e cada vez mais sobre indivíduos, transitoriedade, contingência e escolhas”.

Rodgers rastreia essa “desagregação” das categorias sociais em vários discursos: econômicos, do Direito, da Ciência Política, da História, da Antropologia, sobre raças, gêneros e nos discursos filosóficos. E, se algumas das trajetórias que ele retraça são familiares (do patriarcado à performance nos estudos femininos, do pluralismo de grupos de interesse à teoria da escolha racional individualista na Ciência Política), o efeito cumulativo de ler outra vez, mais uma vez a mesma história, em tantos campos, é significativa e sedutora.

Quando Ronald Reagan começa a soar como Judith Butler, e quando a ala evangélica da direita reacionária completa a ‘virada linguística’, não há como não ver que há algo no ar.

...

É possível que Rodgers esteja narrando, em outras palavras, menos a história de uma fratura intelectual ou, mesmo, uma deriva nos modos básicos do capitalismo e, mais, uma contrarrevolução, organizada nos mais altos círculos econômicos e acadêmicos, e que se irradiou pela cultura, não raras vezes envolvendo até os mais convictos opositores da mesma contrarrevolução.

Se Mises acertou ao dizer que “até os opositores do socialismo são dominados por ideias socialistas” – e os governos de Macmillan e Eisenhower sugerem, falando em termos amplos, que assim é – parece plausível que os opositores da contrarrevolução do livre mercado (de tecnocratas de esquerda, a teóricos do feminismo) podem, sim, na via contrária, ter sido dominados pelas ideias do livre mercado.

Não necessariamente por orientação e prescrição política – embora muitos no Partido Democrata tendam a favorecer políticas monetárias mais que políticas fiscais e desenvolvimento, e desenvolveram um reflexo automático de cortar impostos –, mas no nível mais profundo das respectivas imaginações políticas, em particular no modo de ver o mundo em termos de ações não planejadas, espontâneas, não coordenadas, de um bilhão de particulares fraturados e desconectados; além de um correspondente cetismo quanto aos movimentos de massa.

Há precedentes históricos de associação entre fratura e contrarrevolução. Em resposta às insurgências de endividados que se viram na América nos anos 1780s, e que ameaçaram os interesses de credores e proprietários, James Madison observou que, em pequenas sociedades, é possível, para maiorias democráticas, com interesses claros e distintos (usualmente contra a propriedade), unir-se e impor sua vontade à minoria. Mas “amplie a esfera” da sociedade, Madison escreveu, “e você tem maior variedade de partidos e interesses; e você torna menos provável que uma maioria do todo tenha motivo comum para invadir os direitos de outros cidadãos; ou, se tal motivo comum existe, será mais difícil para todos que dele partilhem descobrir a própria força e agir em associação uns com outros””.

Depois da Revolução Francesa, doutrinadores como François Guizot e Pierre Royer-Collard, e um aluno deles, Tocqueville, chegaram a conclusões similares sobre o valor contrarrevolucionário do pluralismo. E no Sul Velho [orig. Old South] [EUA], John Calhoun formulou sua teoria das maiorias co-ocorrentes [orig. theory of concurrent majorities] [13] – uma sociedade já fragmentada fragmentar-se-á cada vez mais, pela quase impossibilidade de o governo nacional empreender qualquer ação concertada a favor da maioria – para contra-arrestar o Norte abolicionista. [14]

Mas nem sempre a fratura é dispositivo contrarrevolucionário. E nem todas as contrarrevoluções seguem a via da fratura. Mas o fato de fratura e contrarrevolução aparecerem tão frequentemente associadas obriga a perguntar por que a fratura tanto ameaça a revolução e a reforma; e por que é tão amigável face à contrarrevolução e ao retrocesso? Por que unidade e coesão são condição necessária, se não suficiente, para qualquer movimento democrático de baixo para cima?

Movimentos das classes subordinadas exigem ação concertada de homens e mulheres os quais, individualmente ou localmente, têm pouco poder; mas os quais, coletivamente e nacionalmente (ou internacionalmente) têm, potencialmente, muito poder. Se esperam exercer o poder que têm, esses movimentos têm de pressionar a favor da unidade e têm de manter a unidade, em inúmeros contextos de desafio e dificuldades; e não têm só de defender a unidade dentro dos movimentos (sempre são movimentos onde não faltam heterogeneidades, de gênero, de raça, de status, de religião, de etnia, de ideologia): têm também de defender o poder dos próprios comandantes. Para movimentos democráticos de baixo para cima, a unidade é a conquista mais precária e mais preciosa, sempre sob ameaça, simultaneamente, de dentro e de fora.

Movimentos contrarrevolucionários, ao contrário, sempre se beneficiam, pelos mais diferentes modos, da ação de forças de fragmentação. Elites políticas e econômicas, porque são independentes umas das outras no controle sobre os recursos, não precisam tanto de unidade e coordenação. Importante, para essas elites, é criar, estimular e preservar a desunião entre seus adversários, na direção absolutamente oposta ao que disse Rosa Luxemburg, para quem “o mais importantedesideratum” em qualquer luta é “a máxima unidade possível da parte social-democrática das massas proletárias”. [15]

É muito fácil, como sempre se acaba por descobrir, construir a desunião. A fragmentação não apenas pulveriza os revolucionários que se opõem às forças contrarrevolucionárias, espalhando-os em vários bandos de gente tão insatisfeita quanto incapaz de qualquer ação produtiva. A fragmentação também torna ainda mais difícil identificar a classe ou a claque governante. A ação de massa já não encontra alvo claro (a Bastilha, o Palácio de Inverno). O que se vê é uma espécie de poder borrifado sobre muitos, sem qualquer ligação com alguém, grupo ou indivíduo, potencialmente acessível para vários, tanto quanto efetivamente acessível para ninguém.

Esse, na minha avaliação, é um dos grandes obstáculos que a esquerda enfrentou nos últimos cerca de 50 anos. Talvez, com o Movimento Occupy – a convocação à unidade, o esforço de unidade com os “proletários de todo mundo” (“somos os 99%”) que já quase parecem pós-estruturais –, estejamos deixando para trás aquele obstáculo.




Notas dos tradutores

[1] ROBIN, Corey. Achieving desunity. Resenha de RODGERS, Daniel, Age of Fracture, Harvard, 360 pp, £14.95, September, ISBN 978 0 674 06436 2, in London Review of Books, vol. 34, n. 20, 25/10/2012, p. 23-25 (só para assinantes).

[2] MYRDAL, Gunnar, An American Dilemma. The Negro Problem and Modern Democracy [1944].

[3] ARENDT, Hannah, Origens do Totalitarismo [1951] (em português do Brasil).

[4]  WRIGHT MILLS, C. A elite do poder [1956], Rio de Janeiro: Zahar, 1968.

[5]  WHYTE, William H, The Organization Man [1956].

[6] FRIEDAN, Betty, A Mística Feminina [1963] (em português do Brasil).

[7] THOMPSON, E. P. [1963; nova ed. revista, 1968] A Formação da Classe Operária Inglesa: A Árvore da Liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 3 vols, 1987. Trad. Denise Bottman e Antônio Augusto Pereira Prates.

[8]  WILSON, J. The Declining Significance of Race: Blacks and Changing American Institutions [1978].

[9] GILLIGAN, Carol. In a Different Voice [1982].

[10] FRIEDMAN, Milton; FRIEDMAN, Rose [1980], Liberdade para escolher, Rio de Janeiro, Ed. Record, 1980.

[11] BUTLER, Judith. Gender trouble: feminism and the subversion of identity [1990].

[12] DUBNER, Stephen J.; LEVITT, Steven D., Freakonomics: o lado oculto e inesperado de tudo que nos afeta, Rio de Janeiro: Elsevier, 2007.

[13] CALHOUN, John Caldwell [1782-1850], Dissertação sobre o governo (Estudos introdutórios de Viriato Soromenho-Marques e Diogo Pires Aurélio. Trad. João C.S. Duarte, Lisboa: Círculo de Leitores, imp. 2010, 175 p., Coleção: Clássicos da política.

[14] Para Calhoun “A imposição dos interesses protecionistas do Norte a todo o país poderia acontecer, mediante o fortalecimento do poder central criado pela Constituição, entendida como compromisso pré-constituído e esgotado. A defesa dos interesses dos Estados sulistas fez com que Calhoun afirmasse uma abertura da Constituição ao poder constituinte, fundado na construção da política com base no antagonismo social e que não deveria ser amarrado nos ditames do poder constituído”. [Nota de esclarecimento, de: A Constituição de 1787 e a Limitação da Participação Popular]

[15] LUXEMBURG, Rosa. Greve de massas, partidos e sindicatos. São Paulo: Kairós, 1979 [ing. The Mass Strike, the Political Party and the Trade Unions [1906], Cap. 8: “Need for United Action of Trade Unions and Social Democracy.  

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