sábado, 13 de outubro de 2012

A Europa é projeto político morto*


25/5/2012, Étienne Balibar, Guardian, UK (sugestão de Nicolás Varela)
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

Étienne Balibar
Num único mês, vimos o primeiro-ministro grego George Papandreou anunciar o possível calote de seu país; um vasto empréstimo-resgate europeu ser-lhe oferecido, sob a condição de impor cortes devastadores no orçamento, seguida a oferta, imediatamente, pelo rebaixamento da qualidade dos papéis das dívidas de Portugal e Espanha; ameaças contra a própria sobrevivência do euro, criação (sob forte pressão dos EUA) de um fundo europeu de seguro (das dívidas) no valor de €750 bilhões; a decisão, pelo Banco Central Europeu (contra o que determinam seus próprios estatutos) de resgatar dívidas contra os fundos soberanos, e, afinal, o anúncio de medidas de austeridade em vários estados-membros da União Europeia.

Bem claramente, é só o começo da crise. O euro é o elo fraco da cadeia – como a própria Europa. Cabem só poucas dúvidas de que estejam a caminho consequências catastróficas.

Em resposta, os protestos gregos foram plenamente justificados. Primeiro, porque todos vimos que todo o povo grego denunciou a manobra. Segundo, porque mais uma vez o governo traiu suas promessas eleitorais, sem qualquer forma de debate democrático. Por último, a Europa não manifestou nenhuma real solidariedade a nenhum dos seus estados membros, e ainda impôs as regras coercitivas do FMI, que não protegem as nações, mas os bancos.

Nicolás Varela
Os gregos foram as primeiras vítimas, mas dificilmente serão os últimos, de uma política de “resgatar a moeda europeia” – medidas que todos os cidadãos deveriam poder debater, porque todos serão afetados pelo resultado. E a pouca discussão que houve é fortemente enviesada, porque as determinações essenciais são ocultadas ou desmascaradas.

Na forma atual, sob a influência das forças sociais dominantes, a construção europeia pode ter produzido algum grau de harmonização institucional, e generalizou alguns direitos fundamentais, o que não é desprezível, mas, ao contrário dos objetivos declarados, não produziu qualquer evolução convergente das economias nacionais, ou zona de prosperidade partilhada. Alguns países são dominantes, outros são dominados. Os povos da Europa podem não ter interesses antagônicos, mas as nações sim têm, e cada vez mais antagônicos.

Em segundo lugar, qualquer estratégia keynesiana para gerar “confiança” pública na economia depende de três pilares interdependentes: moeda estável, sistema racional de impostos, mas também política social que vise ao pleno emprego. Esse terceiro aspecto é sistematicamente ignorado na maioria dos comentários.

Além disso, todo o debate sobre o sistema monetário do euro e o futuro da Europa continuará absolutamente debate abstrato, se não for articulado às reais tendências da globalização, que a crise financeira acelerará com muita força, a menos que sejam politicamente dirigidas aos povos que elas afetam e seus líderes.

Vivemos hoje uma transição de uma modalidade de competição internacional, para outra: não mais competição entre (principalmente) capitais produtivos, mas competição entre territórios nacionais, que usam as isenções de impostos e pressão sobre os salários do trabalho para atrair mais capital flutuante que os vizinhos.

Agora, claramente, se a Europa opera como sistema efetivo de solidariedade entre os membros para protegê-los de “riscos sistêmicos”, ou simplesmente delineia um quadro jurídico para promover maior grau de competição entre eles, determinará o futuro da Europa, politicamente, socialmente e culturalmente.

Mas há uma segunda tendência: uma transformação da divisão internacional do trabalho, que desestabilize radicalmente a distribuição do emprego no mundo. É uma nova estrutura global na qual norte e sul, leste e oeste, estão, hoje, trocando de lugar. A Europa, ou a maior parte dela, conhecerá aumento brutal das desigualdades: colapso das classes médias, encolhimento dos postos de trabalho qualificados, deslocamento de indústrias produtivas “voláteis”, regressão no bem-estar e direitos sociais, e destruição das indústrias culturais e serviços públicos em geral. Com isso, se precipitará o retorno dos conflitos étnicos que a construção europeia desejava superar para sempre.

Só resta, pois, propor a pergunta: estamos no começo do fim da União Europeia, cuja construção começou há 50 anos, baseada numa utopia velha, que hoje se expõe como incapaz de cumprir o que prometeu? A resposta, infelizmente, é sim: mais cedo ou mais tarde, será inevitável e possivelmente não sem tumulto e violência. A menos que encontre a capacidade para recomeçar em bases radicalmente novas, a Europa é projeto político morto.

Mas o fim da União Europeia abandonará inevitavelmente os povos aos azares da globalização em grau ainda maior. Por outro lado, uma refundação da Europa não garante qualquer sucesso, mas, pelo menos, dá-lhe uma chance de alguma alavancagem geopolítica. Mas sob uma condição: que todos os desafios envolvidos na ideia de uma forma nova de federação pós-nacional sejam enfrentados com seriedade e coragem. Implica construir uma autoridade pública comum, que não é nem estado nem simples “governança” por políticos e especialistas; garantir equidade genuína entre as nações, o que implica combater contra todos os nacionalismos reacionários; e, sobre tudo, implica reviver a democracia no espaço europeu, que opere, portanto, contra os atuais processos de “des-democratização” ou de “estatismo sem Estado” que o neoliberalismo inventou.

Já se reconheceu pelo menos um óbvio: não haverá progresso rumo ao federalismo na Europa (o mesmo que agora alguns pregam e pelo qual advogam, com razão), se a própria democracia não evoluir para além das formas atualmente existentes, de modo a permitir influência cada vez maior das populações nas instituições supranacionais.

Pergunta: Significará isso que, para reverter o curso da história recente, para sacudir a letargia da construção política hoje em ruínas, carecemos de algo semelhante a um populismo europeu, um movimento simultâneo ou insurreição pacífica das massas populares, que gritarão sua ira como vítimas da crise contra os autores e beneficiários da crise, exigindo um “controle pelos de baixo” sobre as negociatas secretas e negócios escusos de que vivem mercados, bancos e estados? Sim, sem dúvida alguma. Concordo que possa levar a outras catástrofes. Mas o risco é maior, se prevalecer o nacionalismo, não importa sob que forma.

Nessa parte do mundo, essas forças são tradicionalmente conhecidas como “a esquerda”. Mas a esquerda europeia que sobrou também está falida. No espaço político mais amplo, ultrapassando fronteiras, o que é hoje relevante, perdeu completamente a capacidade para expressar as lutas sociais ou lançar movimentos emancipatórios. “A esquerda” europeia rendeu-se aos dogmas e axiomas do neoliberalismo. Consequentemente, desintegrou-se, como pensamento. Sem suporte popular forte, os partidos da esquerda europeia, que a representam só nominalmente, são hoje espectadores impotentes da crise, para a qual não oferecem qualquer resposta específica ou coletiva.

Pode-se bem perguntar, nessas condições, o que a acontecerá quando a crise entrar em suas próximas fases? Haverá movimentos de protesto quase com certeza, mas se perceberão isolados, sós, e possivelmente tomarão o desvio da violência, ou serão capturados pelo racismo e pela xenofobia (que já brotam por toda parte, à nossa volta).

Mas a questão diz respeito também aos intelectuais: o quê, como, qual poderia ser um plano de ação política elaborado democraticamente contra a crise no plano europeu? Responder essa pergunta é tarefa dos intelectuais progressistas, sejam reformistas ou revolucionários; discutir essa questão e correr os riscos. Nunca serão perdoados se nem, pelo menos, tentarem.



*Versão editada do artigo Final Crisis? Some Theses publicado, na íntegra, na edição de junho do jornal online Theory and Event (John Hopkins University Press),

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