terça-feira, 28 de agosto de 2012

Novilíngua: “Em tempo de falsos cognatos”


Tradução: do “segurancês”, para português, espanhol, guarani, bolivariano, grego, árabe, pashtun, farsi, aimará et aliae*

Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu


Kevin Carson
Quem leia os pronunciamentos da comunidade de “segurança nacional” dos EUA é sempre assaltado, no mínimo, por uma dúvida: será que falam do mundo que todos nós habitamos? Ou falam de outro mundo, só deles? Tudo começa a fazer melhor sentido se se assume que o Estado de Vigilância e Controle, chamado estranhamente também de “Estado de Segurança”, tem idioma próprio: o “segurancês”.

Como a Novilíngua, um inglês ideologicamente reformatado que substituiu o idioma corrente no mundo que Orwell descreve em1984, o “segurancês” foi reformatado para ocultar e apagar o mais possível qualquer informação verdadeira. Por exemplo, consideremos as declarações do embaixador Jaime Daremblum, Diretor do Centro de Estudos Latino-Americanos do Instituto Hudson, em 2010, em depoimento à Comissão de Relações Externas do Senado dos EUA.

Jaime Daremblum
Daremblum, depois de elogiar os senadores Lugar e Dodd pelos esforços de muitos anos para promover “a segurança nacional e a democracia” na América Latina, alertou para os perigos do “populismo radical que se enraizou na Venezuela, Bolívia, Equador e Nicarágua.” Mais alarmante ainda, o presidente da Venezuela, Hugo Chávez, fez aliança com o Irã “principal patrocinador do terrorismo em todo o mundo.” O governo da Nicarágua, que “voltou às velhas táticas”, ocupa uma ilha fluvial da Costa Rica, em claro desrespeito ao que ordena a Organização dos Estados Americanos (OEA).

A aliança firmada entre Chávez e o Irã é “a maior ameaça à estabilidade hemisférica desde a Guerra Fria”. O governo de Chávez é “séria ameaça aos interesses da segurança dos EUA”.

UAAU! Parece conversa no mundo-às-avessas... Mas, se a dividimos em pedaços deglutíveis e traduzimos com calma e atenção, talvez até se possa extrair algum significado aproveitável dessas “declarações”.

Para começar: em “segurancês”, “democracia” não significa o mesmo que significa em português, grego, bolivariano, espanhol, árabe, pashtun, farsi, aimará, tupi et aliae. Você, muito provavelmente, entende que “democracia” significa “regime no qual pessoas comuns têm meios para controlar os processos pelos quais se tomam decisões que afetam a vida delas”.

E já começam os problemas. Porque em “segurancês” há um falso cognato, que soa como “democracia”, mas não significa “democracia”. Esse falso cognato, que só existe em “segurancês”, designa uma sociedade na qual o sistema de poder aparece sempre travestido, mascarado, ocultado, em rituais chamados “eleições periódicas”. Nessas eleições periódicas as pessoas escolhem entre candidatos que parecem diferentes, mas são, todos, saídos do mesmo grupo governante, que nunca muda. Os candidatos falam muito, parecem discutir muito, mas só falam e discutem questões secundárias, 20%, os temas sobre os quais discutem entre eles os vários partidos eleitorais que são, todos, facções do mesmo grupo governante. 80% das questões, as questões-chave, básicas, primárias – e sobre as quais não há qualquer discordância entre os partidos da classe governante – jamais aparecem nos debates eleitorais.

Quando a própria estrutura do poder aparece nas discussões – quando o povo começa a falar contra, por exemplo, a propriedade da terra, concentrada em poucas mãos de latifundiários proprietários; ou contra uma política de desenvolvimento orientada só para a exportação – surgem sinais de que a “democracia” está sob o risco de ser trocada pelo tal “populismo radical”. Aí já é caso de “democracia” cujos únicos especialistas, os únicos que entendem da coisa-lá, são ou a CIA ou os Marines. Importante é o seguinte: em “segurancês”, “democracia” significa proteger a estrutura de poder favorável aos EUA que exista em qualquer ponto do mundo... Mas dando às pessoas a ilusão de que, porque votam em eleições periódicas, estariam escolhendo entre projetos diferentes.

Deve-se também ter em mente que, em “segurancês”, o rótulo “estado patrocinador do terrorismo” nunca, jamais, em caso algum, pode aparecer associado ao nome dos EUA. Por essa razão, ações da Única Superpotência Dominante para promover a “democracia” nunca, jamais, em caso algum serão “ações terroristas”. Mas ações que promovam “populismo radical”, essas sim, sempre são.

Com o acontece também na Novilíngua, ações consideradas elogiáveis se praticadas por uns, passam a ser repreensíveis se praticadas pelo outro. Vejam por exemplo (i) a ação da Nicarágua, que ocupou território da Costa Rica e desrespeitou resolução da OEA (é repreensível); e (ii) a ação praticada pelos EUA e que também desrespeitava resolução da OEA, quando os EUA minaram, com explosivos, o porto de Manágua, como meio para combater “populistas radicais” há 30 anos (é elogiável).

É o caso de apresentar a aliança entre Irã e Venezuela como “a maior ameaça à estabilidade hemisférica depois da Guerra Fria”. Quase parece que só se fala em Guerra Fria, para lembrar as ações de detonação da estabilidade hemisférica promovidas, patrocinadas ou executadas pelos EUA durante e imediatamente depois da Guerra Fria. Afinal, os EUA derrubaram o governo democrático (“mudança de regime”, como se diz hoje, em “segurancês”) da Guatemala em 1954 e instalaram ali um regime militar que aterrorizou o país durante décadas. Os EUA apoiaram esquadrões da morte na América Central, que mataram centenas de milhares de pessoas. E instalaram ditaduras militares no poder (“mudança de regime”, a começar pelo golpe que depôs o governo democrático do Brasil nos anos 1960s). E ainda sem falar da Operação Condor, de Kissinger, nos anos 1970s, nem das demais ditaduras militares que os EUA puseram no poder em toda a América Latina.

Operação Condor
Mas essas coisas não entram na conta. Quando os EUA derrubam governos democráticos, um depois do outro, que caem como dominós, para instalar ditadores pró EUA no poder, por todo o hemisfério... A ação significa “proteger a estabilidade”, não pô-la abaixo. E tudo, sempre, para derrotar o tal “populismo radical” que, no dicionário de “segurancês”, é a única expressão que se deve traduzir por “ameaça à estabilidade”.

Também em “segurancês”, dizer que uma aliança entre Venezuela e Irã é “ameaça” não significa que alguém esteja pensando em atacar e invadir território dos EUA. Significa apenas aqueles países preparam para defender-se, no caso de os EUA os atacarem; e que, nessas condições, talvez os EUA não consigam derrubar aqueles governos democráticos. São “ameaça”, em outras palavras, porque começa a surgir alguma possibilidade de o governo da Venezuela expropriar latifúndios e redistribuir terras a quem de fato trabalha a terra. São “ameaça”, afinal, porque algumas economias começam a tentar atender antes as necessidades e carências do próprio povo, do que os interesses das grandes empresas norte-americanas. Isso então deve-se traduzir sempre como “ameaça” (ao interesse das corporações norte-americanas).

A expressão “segurança nacional” também é interessante, porque não significa, em “segurancês”, “segurança para o povo da nação norte-americana”. Significa, isso sim, “segurança para o Estado norte-americano e para a coligação de forças que o controla”. Nesse sentido, qualquer populismo econômico local é grave “ameaça à segurança nacional” [dos EUA]. Elites econômicas nos EUA são o coração (e o coldre) de um dos lados que lutam hoje em todo o mundo: os proprietários do mundo versus aqueles sem cujo sangue e suor não haveria mundo. Quando um servidor do Estado dos EUA, como Daremblum, usa o idioma do “segurancês” para falar de “ameaça à segurança nacional”, sua fala tem de ser traduzida como “ameaça à estabilidade dos proprietários do hemisfério, dos que precisam de estabilidade para continuar a extrair sangue e suor dos não proprietários, quer dizer, de nós”.

Ora... Afinal, nem é tradução assim tão difícil!


Nota dos tradutores
*Latim: “e outras [línguas]”

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