terça-feira, 15 de maio de 2012

A luta pela UNCTAD* (e por que interessa)


15/5/2012, Vijay Prashad, The Real News Network (TRNN) [vídeo e entrevista traduzida]
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

“Países do sul defendem a UNCTAD, enquanto o ‘norte’ quer implantar uma ‘cadeia global de suprimento’ que pode paralisar os países menores”.

Vijay Prashad é professor de estudos internacionais no Trinity College. Dentre outros livros, é autor de The Darker Nations: A People's History of the Third World e Arab Spring, Libyan Winter. Publica regularmente em Asia Times Online, Frontline magazine e Counterpunch.


PAUL JAY, editor-chefe, TRNN: Bem-vindos ao The Real News Network. Sou Paul Jay, em Washington.

No final de abril, apresentamos a vocês um programa sobre a Conferência das Nações Unidas para Comércio e Desenvolvimento reunida em Doha [XIII Session of the United Nations Conference on Trade and Development (UNCTAD XIII), 21-26/4/2012, Doha, Qatar] e a disputa em curso entre os países BRICS – Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul e alguns outros países em desenvolvimento – e o “Norte”, entendido como Europa e EUA, em torno da questão de se a UNCTAD, essa organização da ONU e importante centro de políticas de desenvolvimento e análise econômica, dedicará parte de seus esforços à reforma das finanças, associando a luta global contra a pobreza à questão da especulação e do capital parasitário.

(Assista ao primeiro programa dessa série postado dia 26/4/2012) 

Agora, já podemos avaliar o que houve depois daquela conferência. Para continuar a discussão, está conosco novamente o professor Vijay Prashad. Mais uma vez obrigado, Vijay, por aceitar nosso convite.

VIJAY PRASHAD: O prazer é meu.

JAY: OK, retomemos a história. Ao final da Conferência, houve uma declaração, uma grande luta. O que, afinal, havia naquela declaração? E o que acontecerá daqui em diante?

PRASHAD: Vivemos um momento interessante, porque a disputa “pela UNCTAD”, pode-se dizer, continuou até às 5h da tarde do último dia da conferência. Até a cerimônia de encerramento teve de ser adiada, porque a negociação em torno do que constaria daquela declaração estendeu-se para muito depois do previsto. A declaração é chamada Doha Mandate, e, em vários sentidos só com muito otimismo se pode chamar de “declaração”; melhor nome seria “concessões de Doha”. Várias sentenças redigidas pelo sul global – suas frases preferidas – foram incluídas. Houve um desencontro de posturas ideológicas no documento final.

Por exemplo: o sul global insistia em que se falasse de um chamado “estado capacitante” [orig. enabling state] – em que o estado pode assumir o papel de promover o desenvolvimento econômico. E o norte preferia a fórmula de um “estado eficiente” – , caso em que o estado não teria papel tão destacado na promoção do desenvolvimento em nome dos cidadãos, mas seria eficiente no papel de ajudar o capital privado a tomar decisões. O de sempre, como você sabe: sociedade e economia, para eles, têm de ser organizadas.

No texto do Mandate apareceram as duas expressões e frases: “estado capacitante” e “estado eficiente” [1].

Alguns ainda veem a conferência de Doha, por tudo isso, como ‘um empate’. Outros, por causa do poder desproporcionalmente maior do norte sobre o sul, veem o resultado como uma vitória do sul, porque preservou o Mandate da UNCTAD e permitiu que, para os próximos anos, a organização continue a pesquisar as questões da finança, do desenvolvimento econômico. Ao mesmo tempo, pode-se dizer que a conferência foi centrada no povo, mais do que centrada nas finanças. Quero dizer: como não se alteraram as linhas que definem a UNCTAD, há gente que diz que a conferência foi grande vitória do sul, e que levará a outras conferências esse ano, principalmente Los Cabos, onde o G-20 reúne-se em meados de junho, pouco depois, portanto, da reunião do grupo RIO+20 no Rio de Janeiro, quando, outra vez, temas da mudança climática e da finança estarão no centro do debate. [Falam simultaneamente].

JAY: Então, só para relembrar: adiante, abaixo desse vídeo, vocês encontram algumas das entrevistas que publicamos, com Heiner Flassbeck, que dirigiu a seção econômica da UNCTAD. Ali vocês verão por que vários países do ‘norte’ bem gostariam de suspender o trabalho de Flassbech, porque suas análises, seu discurso, é bem claramente divergente, oposto, às economias neoliberais. Um dos relatórios que publicaram fala de “aproxima-se do limite” [2], e numa das entrevistas que fizemos com Flassbeck, ele diz que a Europa já ultrapassou o limite, em termos de andar na direção da recessão. Quero dizer: a UNCTAD é uma fonte de trabalho intelectual que evidentemente tem importância, ou não teriam disputado tão furiosamente o resultado da Conferência. Afinal... Parece-me que a UNCTAD já se converteu em uma plataforma a mais sobre a qual se trava essa espécie de disputa global em torno do papel do Estado. Mas... Prossiga, Vijay. Em que pé estamos agora?

PRASHAD: Examine a reunião da UNCTAD 2012. Havia dois outros pontos também muito importantes. O primeiro é que a UNCTAD, desde os anos 1980s, quando o sul global foi enfraquecido pela crise da dívida, a UNCTAD assumiu um novo papel. Tornou-se, em certo sentido, emissária do investimento estrangeiro direto, e um lugar onde os países do mundo em desenvolvimento encontravam apoio técnico, que os ajudava a encontrar investimentos estrangeiros diretos, capital de investimento, etc..

Quer dizer: uma parte da UNCTAD produzia críticas ferozes à economia neoliberal. Uma parte da UNCTAD, você sabe, a divisão chefiada por Flassbeck, por exemplo, produzia relatórios críticos do modo pelo qual a finança, sobretudo, chegara a dominar toda a vida social. Outra parte prometia ajudar o capital a investir no sul global. Quer dizer: em Doha havia um desequilíbrio, que tem havido na UNCTAD já por longo período. E essa questão também surgiu lá: que tipo de entidade de duas cabeças é a UNCTAD?

E uma terceira coisa, também muito importante: uma avant-première do resto dos debates do verão entre norte e sul. Essa terceira discussão travou-se em torno da chamada “narrativa do novo comércio”. Na UNCTAD, o presidente da Organização Mundial do Comércio, Pascal Lamy, falou muito sobre essa narrativa do novo comércio. O que estavam querendo sugerir é que, em vez de ver as negociações comerciais como, como se diz, uma negociação de toma-lá-dá-cá, como, por exemplo, uma negociação comercial entre o Mali e a França; o Mali diz, escutem, eis as coisas de que não abrimos mão, não podemos vender nossos preços abaixo desses... Quero dizer, os dois lados de fato negociam. Claro: vez ou outra essa negociação pode ser hostil; vez ou outra, países que produzem, digamos, petróleo, unem-se num cartel como a OPEC, e têm relacionamento hostil com o norte, sobre o preço a ser fixado para a mercadoria.

Em vez disso, disse Pascal Lamy, temos de ter uma nova forma de comércio internacional menos agressiva: temos de compreender a narrativa do novo comércio como parte dessa cadeia de suprimentos, porque cada país do mundo está ligado à cadeia de suprimentos. De fato, não há contradição entre o norte e o sul; já não há antagonismos no mundo. Todos têm de encontrar o próprio lugar. De certo modo, é uma versão, do século 21, para a teoria das vantagens comparativas de David Ricardo.

Na reunião de Doha, Pascal Lamy apresentou essa ideia. Como você sabe, foi apoiado pela ministra das Finanças da Costa Rica. E ela, aliás, trabalhou na divisão de manufaturas da Organização Mundial do Comércio, antes de voltar à Costa Rica e tornar-se ministra  das Finanças. E, agora, fez firme defesa dessa nova narrativa do comércio: a teoria da cadeia de suprimentos para comerciar.

JAY: Mas... Sim, é muito bom, mas... Já ouvimos essa história no início do século 20, sobre o que o capitalismo global faria, que uniria todos. E resultou na 1ª. Guerra Mundial. Essa história é velha.

PRASHAD: Sim, é velha. Como eu já disse, é dos tempos de David Ricardo, do tempo da constituição da Economia como disciplina. Mas na reunião de Doha, o ministro do Comércio sul-africano, Rob Davies, contestou muito veementemente a história. Disse que... “Calma. O que vocês estão dizendo é o motivo pelo qual a UNCTAD foi criada. E o primeiro secretário-geral da UNCTAD, Raúl Prebisch, criticou essa teoria de Ricardo”.

JAY: Vamos explicar aos que assistem a esse programa, sobre o que estamos falando. Quando se fala de “cadeia global de suprimentos”, é como, digamos, Cuba produzir açúcar e outro produzir frutas, e outro vender o suco industrializado. Ou então, você produz bens industrializados, usando trabalho barato, e é proprietário do copyright.

PRASHAD: Vou explicar de um jeito pior. A Malásia descobre a borracha. Cingapura produzirá alguns tipos de equipamento técnico. As partes serão montadas em Shenzhen na China. Mas a ideia foi concebida nos EUA e, por causa das leis de propriedade internacional, os EUA protegerão a própria habilidade para fazer dinheiro a partir do trabalho de gente que está longe dos EUA. É ruim para os trabalhadores nos EUA, porque implica que ninguém precisa criar empregos nos EUA; e é assustador para as pessoas que vivem na Malásia ou em Shenzhen, porque eles só produzem uma mínima parte do lucro da venda do que eles produzem. O grosso do lucro irá para o chamado “detentor do direito de propriedade intelectual”, que será quase sempre uma grande corporação transnacional com sede no norte; e o juro será distribuído para advogados, banqueiros, etc., cujo trabalho é proteger o copyright e preservar a riqueza acumulada pela tal empresa transnacional. O que Rob Davies disse é que isso é um tipo de neocolonialismo. Que não nos interessa.

E agora, quando todos se preparam para a reunião do G-20 em Los Cabos (México, 18-19/6/2012), a agenda desse encontro “vazou”.

A agenda foi produzida por Pascal Lamy da Organização Mundial do Comércio e por Ángel Gurría, da OECD [Organisation for Economic Co-operation and Development, você sabe, aquele think tank do norte. Fizeram a agenda, uma agenda que, basicamente, diz que todos lá têm de falar sobre a nova narrativa do comércio: ‘Temos de falar das cadeias de suprimentos; não podemos, de modo algum, falar, sobre subsídios para a agricultura no norte; não podemos falar sobre qualquer daqueles assuntos que emperram sempre a chamada “Rodada de Doha” das negociações da OMC. Temos de varrer para o lixo todas as contradições entre o norte e o sul. Temos já essa nova narrativa e queremos expor... E, em seguida, queremos que o G-20, reunido em Los Cabos ratifique tudo.

JAY: E isso afetará sobretudo os pequenos países. Quero dizer: os grandes países... China, Índia, Brasil, esses países não serão parte de alguma cadeia global de suprimentos. São países que têm economia e produção muito complexas, multifacetadas. Ou seja: a tal cadeia de suprimentos só tem a ver com países pequenos, bem pequenos, não é?

PRASHAD: Os países pequenos, esses, serão apagados, obliterados do mundo econômico global. De fato, a Costa Rica, cuja ministra do comércio mostrou-se tão favorável às cadeias de suprimento, é país que está em certo sentido isolado desses problemas que os pequenos países enfrentam, porque fizeram um movimento realmente inteligente, na direção do ecoturismo; e graças ao relacionamento político muito próximo que mantêm com os EUA estão também entrando numa pequena fatia da indústria de microships. A Costa Rica portanto não é exemplo que se possa generalizar. O exemplo que faz sentido pode ser, por exemplo, digamos, o Camboja, ou se se olha, digamos, para o Benin e vários outros países. O exemplo costarriquenho não se aplica àqueles casos. É história muito específica. Entraram nesse debate, em certo sentido, porque lhes interessa negar a própria especificidade e falar como se o caso deles pudesse ser apresentado como universal. Não é possível para os países da África Ocidental adotar o mesmo ponto de vista, que só faz sentido na história da Costa Rica. Mas essa é uma luta política.

JAY: As questões a discutir aqui não são que China, Rússia, Índia, Brasil... O Brasil talvez seja caso à parte, mas não muito. O caso é que esses países não vivem hoje em economias neoliberais. Esses países não querem a dominação dos EUA nesse sistema global neoliberal. Mas não que sejam contra, por conta de algum princípio, ou coisa semelhante.

PRASHAD: Não, não. Quero dizer, aí está a razão pela qual esse caso da chamada “nova narrativa do comércio” tanto os perturba: porque é algo que incomoda esses países já há mais de 20 anos: a questão dos direitos de propriedade intelectual.

Se você olha a pirâmide dos lucros... A verdade é que é uma pirâmide invertida de lucro. O país onde as empresas controlam a propriedade intelectual, esse sim, pode obter todas as vantagens da cadeia global de suprimentos. E pode, você sabe, por causa do chamado “valor agregado”, extrair o máximo da venda de manufaturas. Quem enriquece não é o trabalhador que fabrica o tênis Nike na Indonésia, nem o dinheiro fica na Indonésia. Quem enriquece é a empresa Nike nos EUA – que saqueia a Indonésia e o trabalhador indonésio e recebe os lucros... Mesmo que a empresa Nike de fato não fabrique nem um pé de sapato. Nike é uma marca: Nike não fabrica sapatos. O caso é que o lucro está, precisamente, na seção de design e marca da cadeia global de suprimentos.

Por isso países como Brasil, Índia, China, esses países estão lutando para levar suas próprias marcas ao mercado, seus próprios designs para o mercado, e são impedidos de fazê-lo, por um regime global ou internacional de propriedade intelectual que evita que esses países [que têm projetos e marcas e design a promover] consigam mostrar o que têm.

Um dos truques nos anos 1980s que mais perturbam esses países foi uma mudança na propriedade intelectual: você já não protege por copyright o processo pelo qual você produz, digamos, sapatos de tênis; agora, o copyright protege o próprio sapato. Implica que ninguém pode pensar em inventar algum novo meio para produzir sapato, ou alguma droga, digamos, um antirretroviral, porque o que está coberto pelo copyright não é o processo, mas o produto, o próprio antirretroviral. Isso mantêm países como China, Índia e Brasil, de mãos atadas. Esse é um dos aspectos da narrativa da cadeia global de suprimentos.

JAY: Sim, pode ser apenas um aspecto, mas suficiente para alterar todo o complexo das relações da economia global.

PRASHAD: Exatamente. E, precisamente por isso, esses países, me parece, não se deixarão degolar, como cordeiros, em Los Cabos. Será hora de ver que tipo de concessão estarão dispostos a fazer/a exigir, para aceitar essa nova narrativa do comércio. Mas, se se considera o que aconteceu em Doha, parece que não irão a Los Cabos, dias 18-19 de junho, para aceitar e ratificar essa nova narrativa do comércio global – a qual, como já dissemos, não passa, mesmo, da velha narrativa de Ricardo, proposta com palavras novas.

JAY: Muito obrigado, Vijay, por ter-nos recebido 

[fim da entrevista]





Nota explicativa

*UNCTAD (página em português) é a sigla em inglês para Conferência das Nações Unidas para Comércio e Desenvolvimento. A UNCTAD (página oficial em inglês) é o órgão do sistema das Nações Unidas que busca discutir e promover o desenvolvimento econômico por meio do incremento ao comércio mundial. Trata-se de um foro intergovernamental estabelecido em 1964 com o objetivo de dar auxílio técnico aos países em desenvolvimento para integrarem-se ao sistema de comércio internacional.   
Notas dos tradutores

[1] A UNCTAD diz, em press-release de 26/4/2012, que:

“O documento chamado Mandate será acompanhado de uma declaração política, que receberá o título de “Doha Manar” [o farol de Doha, em árabe], no qual se apoiam fortemente os esforços da UNCTAD para promover o desenvolvimento inclusivo, mediante o comércio e mudança estruturais ao longo dos próximos quatro anos”. “Reconhecemos a necessidade de fazer a nossa vida econômica comum andar mais decididamente no rumo de mudanças estruturais progressivas, com crescimento mais produtivo e inclusivo, com crescimento e desenvolvimento sustentáveis e ação mais efetiva para favorecer inclusão social ampla e contrato social novo e mais robusto” – lê-se em Doha Manar.

(...) O Doha Manar também reconhece a significação econômica dos protestos revolucionários ao longo de 2011:

“Os ventos da mudança que sopram em muitas partes do mundo hoje atestam o desejo, entre as populações, de políticas responsáveis, em que se vejam abordagens participativas e inclusivas nas questões do desenvolvimento, e que visem a garantir prosperidade para todos”.


[2] 21/4/2012, FLASSBECK, Heiner. Transcrição em inglês em: “German Mercantilism and the Failure of the Eurozone”. Vídeo a seguir:

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