quinta-feira, 24 de maio de 2012

Dívida e “austeridade”: O modelo alemão do pleno emprego precário


21/3/2012, Coordination des Intermittents et Précaires de Île de France
Introdução a “La fabrique de l’homme endetté, essai sur la condition néolibérale”, Maurizio Lazzarato*
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

“O endividamento do Estado é, bem ao contrário, de interesse direto da fração da burguesia que governa e legifera nos Parlamentos. O déficit do Estado era, precisamente, o objetivo ao qual visavam às especulações e principal base do enriquecimento daquela fração. Ao final de cada ano, um novo déficit [1]. Ao cabo de quatro ou cinco anos, novo empréstimo. Ora, cada novo empréstimo dava à aristocracia nova ocasião para cobrar resgate para “salvar” o Estado, o qual, mantido artificialmente à beira da bancarrota, era forçado a negociar com os banqueiros sob condições as mais desfavoráveis. Cada novo empréstimo era nova ocasião para roubar o público que aplica seus capitais em papéis do Estado...”
(MARX, Karl. Les luttes de classes en France [jan.-nov./1850]**).

“As saídas da crise estão fora dos caminhos traçados pelo FMI. Essa instituição propõe sempre o mesmo tipo de contrato de ajuste fiscal, que consiste em diminuir o dinheiro entregue às pessoas – salários, aposentadorias, pensões, auxílios públicos, mas também às grandes obras públicas que geram empregos – para consagrar ao pagamento dos credores todo o dinheiro economizado. É absurdo. Depois de quatro anos de crise, não se pode continuar a entregar o dinheiro sempre aos mesmos. Ora, é exatamente o que, hoje, querem impor à Grécia! Diminuir tudo, para entregar aos bancos. O FMI está se transformado em instituição encarregada de proteger, exclusivamente, os próprios interesses financeiros. Quando se está numa situação desesperada, como estávamos na Argentina, em 2001, é preciso mudar de rota.”
(LAVAGNA, Roberto. Ministro da Economia da Argentina entre 2002 e 2005).

Menos de 20 anos depois da “vitória definitiva contra o comunismo” e 15 anos depois do “fim da história”, o capitalismo está num impasse. Desde 2007, vive de injeções de somas astronômicas de dinheiro público. Apesar disso, gira no vazio. No máximo, reproduz-se ele mesmo, destruindo, com raiva, todas as conquistas sociais dos dois últimos séculos.

Depois da “crise das dívidas soberanas”, o capitalismo exibe um espetáculo às vezes hilariante do próprio funcionamento. As normas econômicas de “racionalidade” que os “mercados”, as agências de risco e os especialistas impõem aos Estados para sair da crise da dívida pública são as mesmas que levaram à crise da dívida privada (que está na origem da dívida pública).

Os bancos, os fundos de pensão e os investidores institucionais exigem que os Estados ponham em ordem os orçamentos públicos, dado que os bancos ainda têm em carteira milhões de títulos podres, frutos de sua política de substituição de salários por dívidas [2].

Depois de dar nota AAA a títulos que hoje valem nada, as agências de risco trabalham para, contra todas as evidências, impedir a boa avaliação e as boas medidas econômicas [3].

Os especialistas (professores de economia, consultores, banqueiros, serventes do Estado e outros) – nos quais a cegueira sobre os estragos que a autorregulação dos mercados e da livre concorrência provocam na sociedade e no planeta é proporcional ao servilismo intelectual – foram catapultados para postos “técnicos” de governo que lembram irresistivelmente “os comitês de comércio da burguesia”. Trata-se mais de novas “técnicas de governo” – autoritárias e repressivas, em ruptura com o “liberalismo” clássico –, que de “governos técnicos”.

O prêmio do ridículo máximo cabe à imprensa, a chamada “mídia”, os veículos, mais que os “meios”. A “informação” distribuída por noticiários de televisão e entrevistas [talk shows] explica que “a crise é culpa de vocês [público audiente, telespectador e leitor pagante], que se aposentam cedo demais, que consultam médicos sem necessidade, que trabalham pouco e por pouco tempo e querem trabalhar cada vez menos e por menos tempo que o necessário; vocês não são flexíveis e desgastam-se depressa demais. Vocês, afinal de contas, são culpados por consumir pouco e viver abaixo dos próprios meios”.

Por sua vez, a publicidade – diferente dos discursos em que se culpam os economistas, os especialistas, os jornalistas e os políticos – diz exatamente o contrário ao público telespectador, audiente e leitor: “Você é imaculadamente inocente. Você não tem responsabilidade alguma! Não há mácula, nem vestígio de sentimento de culpa ou de responsabilidade, na sua alma pura. Você merece tudo, sem exceção, sem interrupção, tudo de todos os paraísos das nossas mercadorias. De fato, é dever seu consumir, consumir, consumir compulsivamente”.

Farejam-se de longe as “ordens” [os imperativos: “faça”, “compre”, “procure” etc.] e injunções dos significantes semióticos da culpa/ culpabilização/ culpabilidade [4] e das semióticas icônicas e simbólicas da inocência. Por um lado, a moral ascética do trabalho e da dívida; por outro, a moral hedonista do consumo de massa. E ambas se contradizem abertamente, sem alcançar qualquer composição.

Mais do que sugerir alguma saída da crise, essa agitação assemelha-se mais a um círculo vicioso no qual o capitalismo parece emparedado. A visão de nossas elites jamais ultrapassa o próprio bolso e deve-se esperar o pior. A ferocidade com que os governos ditos “técnicos” e os outros lutam para obterem pagamentos do que emprestaram e para defenderem a propriedade não recuam ante nada e ninguém.

Segundo o New-York Times, representantes dos bancos e fundos credores da dívida grega tentaram apresentar queixa à Corte Europeia dos Direitos do Homem. O estado grego teria violado direitos fundamentais, porque “property rights are human rights” [direitos de propriedade são direitos humanos]. Até a recessão e a depressão na Grécia são pequenos males, ante a não quitação do dinheiro devido.

Em entrevista recente, o presidente do Banco Central Europeu recomenda, com cinismo thatcheriano, receitas, para reembolsar os credores, que, não só causaram a crise, mas que ainda podem agravá-la: baixar impostos para enriquecer os ricos e reduzir despesas sociais para empobrecer os pobres.

Os políticos nada são além de contadores e office-boys do capital. Sarkozy propôs que as receitas para pagar “os juros da dívida grega seja depositados numa conta bloqueada, que garantiria que as dívidas de nossos amigos gregos serão honradas”. Favorável a essa ideia, Angela Merkel acredita que a medida permitirá “ter certeza de que esse dinheiro permanecerá disponível por longo tempo”.

Se há constante no capitalismo, é o estado de guerra ao qual o liberalismo sempre leva, de modo quase “automático”. A guerra intercapitalista parece hoje menos intensa que a guerra que cada capital nacional combate contra seu “inimigo interno”. Sem acordo sobre como dividir o bolo da exploração global, os diferentes capitalismos convergem, no que tenha a ver com maneiras de intensificar a exploração no plano de cada Estado.

Para sair da crise, é hora pois de “reformas estruturais”: regular a finança? Redistribuir a riqueza? Reduzir as desigualdades, a precariedade, o desemprego? Fim da “assistência” escandalosa garantida pelo Estado-providência, quer dizer, dos presentes (isenções) fiscais aos ricos e às empresas? As “reformas estruturais” das quais se cogita e fazem-se são de dois tipos: restruturação drástica do mercado de emprego, acompanhada de redução de salários e cortes vigorosos nos gastos sociais, como sempre, a começar, sempre, pelo seguro-desemprego [5]. O modelo de referência é o modelo alemão.

Em recente entrevista à televisão, Sarkozy [6] citou nove vezes o exemplo alemão; e o governo “técnico” de Mario Monti foi enfeitiçado pela neodama-de-ferro, da qual recebe “conselhos” (ordens) com frequência.

O modelo alemão

Há dez anos, a Alemanha persevera em políticas de flexibilização e de precarização do mercado de trabalho, e de cortes nos Welfare State. No parlamento europeu, Daniel Cohn-Bendit interpelou Angela Merkel : “Como é possível que um país rico, como a Alemanha, tenha 20% de pobres?” [7]. O ex sessenta-e-oitista é tolo, ou amnésico? Ainda mais hipócrita e cínico, porque é o governo “vermelho-e-verde” de Schröder o qual, entre 2000 e 2005, introduziu todo o conjunto básico de leis que estão na origem da situação que hoje se vê: quando de “pleno emprego precário”, que converteu desempregados e “inativos” numa impressionante massa de “trabalhadores pobres”.

Um pouco de história e alguns dados são indispensáveis para trazer à luz o modelo alemão que a Troika (Europa, FMI e BCE) empenha-se hoje para impor a todos os países europeus.

Entre 1999 e 2005, o governo “vermelho-verde”, apoiado no “Fördern und fordern” [promover e exigir], promoveu quatro reformas no seguro-desemprego e no mercado de trabalho (as quatro Leis Harzt), cada uma delas especialmente catastrófica.

Em janeiro de 2003, a Lei Harzt II introduziu os contratos “Mini-job” [mini-tarefa], que são uma espécie de trabalho escravo legal (a lei dispensa os empregadores das contribuições sociais e não garante nem aposentadoria nem salário-desemprego aos trabalhadores) e “Midi-job” [midi-tarefa], com salários entre 400 e 800 euros/mês, para “estimular” todos a converterem-se em “empresários” da própria miséria.


Em janeiro de 2004, a Lei Hartz III reestruturou as agências nacionais e federais de emprego, para ampliar o controle e acompanhar a vida e o comportamento dos trabalhadores pobres. Construídos esses dispositivos de governo impostos aos trabalhadores pobres, o governo “vermelho-verde” aprovou várias leis para “produzir” número cada vez maior de pobres.

Entrada em vigor dia 1/1/2005, a Lei Hartz IV prevê:

1. - Redução da duração dos benefícios, de três anos, para no máximo um ano; endurecimento das condições de admissão ao trabalho e dever de aceitar emprego proposto. Para ter direito ao seguro-desemprego, exige-se um mínimo de 12 meses de trabalho nos dois anos anteriores à perda do emprego. Depois de um ano recebendo o seguro-desemprego, o desempregado recebe uma ajuda social de 374 euros. Relatório da Agência Federal de Empregos indica que um, dentre quatro trabalhadores que perdem o emprego passam a receber diretamente só a ajuda social (Arbeitslosengeld II, ALG II) e nem chegam a passar pelo seguro-desemprego (ALG I). Motivo disso é o tipo de emprego que o trabalhador perdeu: precário ou mal pago. 

2. - Redução dos benefícios pagos aos desempregados de longa duração que se recusem a aceitar empregos abaixo da própria qualificação. 

3. - Os desempregados têm de aceitar postos que paguem salário de 1€/hora (superior ao seguro-desemprego que recebem). 

4. - Passa a ser possível reduzir o benefício de desempregados que tenham contas-poupança; para essa “investigação”, criou-se lei que assegura acesso às contas bancárias dos “assistidos”; passa a ser possível também que o estado decida o tipo de apartamento onde cada “assistido” tem direito de morar; sendo o caso, o estado pode exigir que o “assistido” mude-se.

Estima-se que 6,6 milhões de pessoas – entre as quais 1,7 milhões de crianças – sejam beneficiários do auxílio social formatado pela Lei Hartz IV. Os 4,9 milhões de adultos são, de fato, trabalhadores pobres, empregados durante menos de 15 horas/semana. Em maio de 2011, as estatísticas mostravam que havia 5 milhões de Mini-jobs, com aumento de 47,7%, depois de um boom Midi-jobs que alcançou 134%.

Essas formas de contrato são também muito numerosas entre os aposentados: 660 mil aposentados combinam a aposentadoria e um Mini-job [8]. Parte importante da população, 21,7%, trabalhou só em meio-período, em 2010.

A agência alemã Destatis (equivalente ao Instituto Nacional de Estatísticas e Estudos Econômicos, INSEE francês) mediu o aumento da precariedade na Alemanha e das formas que ela recobre: entre 1999 e 2009, todas as formas atípicas de trabalho aumentaram, no mínimo, 20% [9] . Os dois grupos mais atingidos são as famílias monoparentais (com mulheres como chefe-de-família) e os velhos. Sob condições do atual pleno emprego precário, a taxa oficial de desemprego, divulgada como ‘prova’ do “milagre econômico alemão” pouco significa!

Em rápida expansão, esse exército de trabalhadores pobres não é composto exclusivamente de empregados a título precário, mas também de trabalhadores sob Contrato por Tempo Determinado e de jornada integral. Em agosto de 2010, relatório do Instituto do Trabalho da Universidade de Duisbourg-Essen estabelecia que, na Alemanha, mais de 6,55 milhões de pessoas recebem menos de 10 euros brutos/hora – mais de 2,26 milhões de trabalhadores a mais, que há dez anos. São, na maioria, desempregados há mais tempo, que o sistema Hartz conseguiu “ativar”: de menos de 25 anos, estrangeiros e mulheres (69% do total).Além disso, em Outre-Rhin, 2 milhões de empregados recebem menos de 6 euros/hora; e na ex-RDA, muitos são os que sobrevivem com menos de 4 euros/hora, quer dizer, menos de 720 euros/mês, para jornada de tempo integral. Resultado: os trabalhadores pobres são cerca de 20% dos empregados alemães.

Durante a crise financeira, o governo recorreu massivamente ao desemprego parcial, que permite que as empresas paguem apenas 60% da remuneração normal aos assalariados e fiquem dispensadas de pagar metade das contribuições sociais.

Outra consequência das políticas de Schröder, desde 2002: o total de salários caiu para menos de 5% do PIB.

As mudanças introduzidas pelos “vermelho-verdes” são qualitativas: depois de anos de desenvolvimento caótico e selvagem da precariedade, dos subempregados e dos subassalariados, chegou a hora de introduzir alguma regulação e alguma racionalização da miséria e da precariedade. Constituindo um “verdadeiro” e “coerente” mercado de emprego dos “mendigos”, empurram agora também os mais bem empregados na direção da “flexibilidade” e da razão economicista. Todo o universo da população, precários, trabalhadores pobres, trabalhadores qualificados, todos tornam-se flutuantes, prontos a serem flexibilizados para sempre. Os diferentes vetores que compõem a “força de trabalho” social já não passam de simples variável de ajustamento da conjuntura econômica.

O programa “vermelho-verde” faz por merecer o nome. Segundo a Agenda 2010 [10], 10 anos depois da primeira Lei Hartz os resultados são mortais. E não se trata de simples metáfora! A esperança de vida para os mais pobres – menos de 2/3 da renda média – recuou, na Alemanha: para os de baixa renda, caiu, de 77,5 anos em 2001, para 75,5 anos em 2011, segundo estatísticas oficiais; nos Lander do leste do país, a situação é ainda pior: a esperança de vida caiu, de 77,9 anos, para 74,1 anos.

A Alemanha é o primeiro país europeu a seguir os EUA na via do progresso liberal. Mais duas décadas de esforços para “salvar o regime de aposentadorias” e a morte coincidirá exatamente com a idade da aposentadoria [11]. A guerra interna também tem seus “ataques cirúrgicos” disfarçados. Mantidas as demais condições, na antiga Alemanha Ocidental, a expectativa de vida logo chegará aos 66 anos, e a morte chegará bem a tempo de tornar desnecessária a aposentadoria. Mors tua, vita meã (tua morte é minha vida). E que importa, se a economia está “saudável”, as agências de risco dão-lhe boas notas, os credores vão bem de saúde e a expectativa de vida dos mais ricos não para de aumentar.

É preciso saber um pouco sobre Peter Hartz [A], que está na origem das leis do seguro-desemprego e da ajuda social. O “caso Hartz” é exemplo da “corrupção” co-substancial ao modelo neoliberal. Peter Hartz, ex-diretor de Recursos Humanos da Volkswagen e moralizador-chefe dos Anspruchdenker [“os que se aproveitam do sistema”]. Descoberto e acusado, confessou haver pago propinas a Klaus Volkert, ex-presidente da Comissão de Empresas da Construção Automobilística, em troca de prostitutas e viagens exóticas. [Em 2005] Foi condenado a dois anos de prisão com direito a sursis e multa de 576 mil euros. Klaus Volkert, por sua vez, foi levado aos tribunais por incitação ao abuso de confiança; Klaus-Joachim Gebauer, diretor de pessoal da Volkswagen, foi acusado de cumplicidade nos mesmos crimes.

Fazer da propriedade e da precarização uma variável estratégica da ‘flexibilização’ do mercado de trabalho: eis a política implantada na Itália, em Portugal, na Grécia, na Espanha [12], na Inglaterra e na Irlanda.

A “reforma” do mercado de trabalho que o governo “técnico” italiano está hoje trabalhando para implantar é diretamente inspirada no modelo alemão.

A ministra do Trabalho e Bem-estar da Itália, Elza Fornero, já o disse claramente ao jornal Stampa, dia 4 de março. A leitura da realidade dramática vivida pela maioria dos assalariados e da população alemã, expressa na novilíngua usada pela “governança”, é obra-prima de hipocrisia e cinismo:

“O exemplo mais próximo de uma reforma geral do mercado de trabalho e de proteção social – deixando-se de lado o processo em curso na Espanha – é o que tivemos na Alemanha, há dez anos, quando o país era considerado “o doente da Europa”, incapaz de crescer e superar o trauma da reunificação. As reformas alemãs atingiram todos os aspectos do mercado de trabalho e bem-estar: aprimoramento dos instrumentos de formação profissional, apoio aos menos favorecidos para que participem do mercado de trabalho e emprego, mesmo parcialmente; ligação mais forte entre o direito de gozar tratamento privado e a efetividade da ação de requalificação e de busca de trabalho; desenvolvimento da atividade de centros para o emprego; introdução de mais flexibilidade também mediante novos tipos de contratos, que independem de negociação entre empresa e empregado.” [B]

Sob a chantagem da dívida, o Estado quer completar a mudança iniciada nos anos 1980s: do bem-estar social (direitos e serviços sociais), da legislação para a força de trabalho (subordinar as políticas sociais à disponibilidade e a flexibilidade máximas de um “pleno emprego precário”). A virada autoritária do neoliberalismo está em vias de pôr fim ao “modelo social europeu”, porque, como diz o inenarrável Mario Draghi, não é admissível sustentar “gente que não trabalha”. [C]

A Renda de Solidariedade Ativa (RSA) francesa, produzir o “trabalhador assistido”

A França também está engajada nesse terreno, embora os resultados não sejam tão visíveis como na Alemanha. Graças mais uma vez a homem de centro-esquerda, Martin Hirsch, empregado, dessa vez, por presidente de direita, estamos vendo a experiência de converter um magro direito a alguma renda, a Renda Mínima de Inserção, 417 euros por pessoa, em máquina de produzir trabalhadores pobres. A Renda Mínima de Inserção (RMI) foi convertida em RSA: Renda de Solidariedade Ativa.

Mediante essas técnicas para governar pobres fazem-se testes dos dispositivos de poder e controle que, em seguida, são estendidos para o conjunto da sociedade. Tudo isso, contudo, parece deixar indiferentes a esquerda e os sindicatos.

A instauração da Renda de Solidariedade Ativa (RSA) prolonga e amplia a superação dos dualismos fordistas, em operação já há 30 anos. As dualidades desemprego/emprego, salário/benefícios, direito ao trabalho/direito à segurança social, lei/contrato já não se aplicam; a Renda de Solidariedade Ativa organiza a imbricação de todas essas dualidades e o agenciamento delas, na figura do trabalhador pobre.

Basta considerar o crescimento espantoso do número de “desempregados, ativos em meio período” (cerca de 40% dos desempregados que receberam seguro-desemprego, por exemplo), quer dizer, inscritos como desempregados, indenizados por um ou outro dispositivo, por serem desempregados, e empregados por uma ou outra empresa. O deslocamento do dualismo emprego/desemprego e de suas fronteiras, já estava muito claramente visíveis.

Por sua vez, a Renda de Solidariedade Ativa institui o novo estatuto perene do trabalhador assistido, ou acumulam-se salários de atividade e uma fração da renda chamada “de solidariedade”. Na sequência dessa diluição dos limites entre as figuras do “assalariado” e do “assistido”, que tornam caducas as fronteiras entre emprego, desemprego e ajuda social, ou entre Direito do Trabalho e Direito da Securidade Social, a Renda de Solidariedade Ativa condiciona um enésimo segmento do mercado de trabalho, uma nova norma para o subemprego e para o subsalário. A adoção desse dispositivo indica, implicitamente, o abandono oficial da meta de pleno emprego e sua troca por uma política da “plena atividade” – concebida como atividade para todos, independentemente da duração e da qualidade do emprego.

Com a Renda da Solidariedade Assistida, passa-se para uma lógica estatutária e institucional que, na época da Renda Mínima de Inserção – apesar da diversas exceções, da exclusão de estrangeiros, dos menores de 25 anos, e do cálculo econométrico da renda por habitação – mesmo assim ainda era a lógica dos direitos iguais para todos; passa-se aí para uma lógica contratual e discricionário, em cujos termos cada locatário tem de assinar um contrato que impõe condições à conservação dos Direitos e que considera cada solução particular. A Renda de Solidariedade Ativa aprofunda o que é típico de todas as políticas sociais neoliberais: a individualização.

O contrato de inserção é um híbrido de “lei” e “contrato” que, segundo Alain Supiot, não significa igualdade e autonomia dos contratantes, mas afirma uma assimetria de poder: “O objeto do contrato de inserção não é trocar bens determinados, nem selar alguma aliança entre iguais; é legitimar o exercício do poder”, que o contratante é obrigado a aceitar, para conseguir o benefício. Passa-se de uma lógica de direitos, a outra lógica, que institui um “direito a” um dispositivo que condiciona o benefício a um envolvimento subjetivo, cuja primeira imposição é cada um fazer um “trabalho sobre si mesmo”, necessário para “estar disponível” para os subempregos e os subsalários. A Renda da Solidariedade Ativa opera uma inversão da lógica do auxílio social, quer dizer –opera uma inversão da “dívida”. A RSA preenche a brecha que a RMI abriu no direito à seguridade social: é benefício independente do “emprego” e sem “contrapartida” direta.

De modo ambíguo, a Renda Mínima de Inserção (RMI) afirmava uma dívida “da nação” para com “os cidadãos menos favorecidos”:

“Ao término dos debates parlamentares [sobre a Renda Mínima de Inserção, RMI], apesar da persistência de posições opostas quanto ao sentido do contrato e da adoção de um texto de compromisso, o desejo do legislador, de romper com a demanda de contrapartida na prestação do benefício nada tinha de ambíguo: a inserção era um direito, e fazê-lo valer comprometia a instituição em relação a ela mesma. Do ponto de vista do beneficiário, a inserção era um objetivo e não uma condição à prestação do benefício” (Nicolas Duvoux).

A Renda de Solidariedade Assistida (RSA), ao contrário, tem o objetivo de indexar a prestação a um subemprego, à disponibilidade para a empregabilidade e para um contrato de inserção. Ela não institui apenas o “trabalhador” pobre, mas, também, sua culpabilidade, pois o trabalhador pobre é tido, implícita ou explicitamente, segundo o caso, como responsável por sua condição e como estando, o trabalhador pobre, em dívida em relação à sociedade e ao Estado. [D]

Em todas as mudanças das fases econômico-políticas, encontram-se sempre o Estado e seus governos, no comando das operações. Assim como iniciou e favoreceu políticas neoliberais de crédito nos anos 80 e 90, o Estado outra vez intervém para organizar a continuidade das mudanças sob as novas formas autoritárias e repressivas do reembolso da dívida e da figura do homem endividado [13].

Cai por terra mais outra ilusão da esquerda: a da eficácia política de opor, à lógica da propriedade privada do mercado, uma esfera estatal pública. Não existem nem a autonomia do político, nem a neutralidade do Estado. Os agentes da administração do governo agem em profundidade sobre a economia, a sociedade e as subjetividades – como o demonstra, paradigmaticamente, a construção do mercado de emprego e sua permanente reestruturação.

Crise da finança ou crise do capitalismo?

Trata-se, portanto, menos de mostrar a potência do capitalismo, que de apontar sua fragilidade, no médio e no longo prazo. Se as contrarreformas estruturais vão atingir dramaticamente uma grande parte da população, nem por isso indicam qualquer via para sair da crise.

Porque nem os experts, nem os mercados, as agências de avaliação de risco ou os políticos sabem para onde correr para aprofundar as políticas neoliberais de produção e de intensificação das diferenças de classe – que são, essas, a verdadeira origem da crise.

A máquina capitalista está correndo desembestada, não porque esteja bem regulada, não porque tenha havido excessos, não porque os financistas são gananciosos, etc. (essas não passam de ilusões da “esquerda” regulatória!). Tudo isso é verdade, mas não chega á origem da crise atual, que não começou com a quebradeira das finanças. A quebradeira é, antes, o resultado do fracasso do programa neoliberal (fazer da empresa o modelo para todas as relações sociais) e da resistência que a figura subjetiva que aquele programa tentava impor (o capital humano, o “empresário de si mesmo” [14]) enfrentou.

Essa resistência, mesmo passiva, ao entravar a realização do programa neoliberal... converteu o crédito, em dívida.

Se o crédito e o dinheiro manifestam a natureza comum de ambos ao aparecerem como “dívidas”, é porque a acumulação está bloqueada; assim bloqueada, a acumulação já não garante novas rentabilidades e já não produz novas formas de servidão.

Nos EUA, entre 2001 e 2004, só foi possível um crescimento de 10% do PIB, porque se implantaram medidas para relançar a atividade; injetaram-se na economia 15,5 pontos do PIB; reduziram-se impostos equivalentes a 2,5 pontos do PIB; o crédito imobiliário passou, de 450 a 960 milhões (1.300, antes da crise de 2007); os gastos públicos aumentaram cerca de 500 milhões.

Na alvorada do século 21, a Alemanha estava em situação semelhante. Entre 2000 e 2006, o PIB alemão cresceu 354 milhões de euros. Mas, se se comparam esse crescimento e os números da dívida no mesmo período (342 milhões), constata-se facilmente que esse é um quadro de “crescimento real zero”!

O Japão que, depois da explosão da bolha imobiliária nos anos 90, e depois que a dívida, para reinflar o sistema bancário, também explodiu, foi o primeiro a entrar em “crescimento real zero” (e, em 2012, já está entrando em recessão). O Japão mostra, melhor que outros países, a natureza da crise contemporânea.

Não se deve buscar as causas do impasse do modelo neoliberal só nas contradições econômicas, por mais reais que sejam. É preciso buscá-las também – e sobretudo –, no que Guattari chama de “uma crise da produção de subjetividade” [15].

O “milagre japonês” foi capaz de forjar uma força de trabalho coletivo e uma força social “muito integrada ao maquinismo” (Guattari), mas parece girar no vazio, apanhados também o Japão e o milagre japonês, nas malhas da dívida e de seus modos de subjetivação. O modelo subjetivo “fordista” (emprego vitalício, tempo dedicado unicamente ao emprego, o papel da família e a divisão patriarcal dos papéis, etc.) está esgotado e ninguém sabe o que por no seu lugar.

A crise da dívida não é loucura da especulação, mas tentativa de manter vivo um capitalismo já doente. O “milagre econômico” alemão é resposta regressiva e autoritária aos impasses que já se manifestavam desde antes de 2007.

Por essa razão, a Alemanha e a Europa mostram-se tão ferozes e inflexíveis com a Grécia. Não só por causa do “exijo meu dinheiro de volta” (o dinheiro dos credores), mas, também e sobretudo, porque a crise financeira inaugura nova fase política, na qual o capital já não pode mais depender de alguma “promessa de riqueza futura” para todos, como nos anos 1980s. O capital já não tem à sua disposição as armadilhas de ‘luz’ da “liberdade” e da “independência” do capital humano, nem as arapucas da sociedade da informação do “capitalismo cognitivo”.

Para dizer como Marx, o capital só pode contar ainda, hoje, com um maior aprofundamento da “mais-valia absoluta” [16], quer dizer, com um prolongamento do tempo de trabalho, com um aumento do trabalho não remunerado, com salários muito baixos, com cortes em todos os serviços, com condições precárias de vida e de emprego e com a redução da expectativa de vida.

A “austeridad”’, os sacrifícios, a fabricação da figura subjetiva do “endividado”, não são má hora para passar, de algum “novo crescimento”, para técnicas de poder. Assim se chega a um autoritarismo que já nada tem de “liberal”, mas é o único que talvez garanta a reprodução das relações de poder. O governo do pleno emprego precário e a “salvação” [o “resgate”] do pagamento da dívida exigem que vastas porções do programa da extrema direita sejam incorporados ao sistema político democrático.

A resistência passiva, que não foi integrada ao programa neoliberal, engajou-se por outras vias depois de 2007. E é hoje a única esperança de escapar às técnicas de poder dos governos, acionadas pela dívida.

Apesar da feira de horrores que se veem, nos planos da “austeridade” imposta à Grécia, todos devem hoje de admitir que, seja de um modo seja de outro, de te fabula narratur [a história está falando de ti]!

Notas de rodapé (do autor)

[1] É o que se vê também hoje, para diversas caixas “sociais”, como, por exemplo, Unedic, os celulares do crime.


[3] Um banco estudou uma amostra de 2.679 títulos; dos 17 mil títulos endossados para empréstimos imobiliários anotados por S&P., 99% tinham nota AAA ao serem emitidos, mas 90% têm, hoje, notas desestimulantes para qualquer investidor [“non-investment grade”].


[5] Refundação social patronal: Le Pare, une entreprise travailliste à la française.


[7] Estatísticas falam de 14,5% de pobres, o que já seria notável. Impressionante, mesmo, é que os números da miséria não diminuem, mas aumentam, com o “crescimento”. Isso diz muito sobre a real natureza do “crescimento”.

[8] Se não representam mais que 3% do conjunto dos de mais de 65 anos em termos de estoque, o fluzo emprego/desemprego está em constante aumento, o número de contratos de Mini-job aumentou mais de 58% em dez anos. Em 2007, o governo alemão elevou a idade legal de aposentadoria, de 65 para 67 anos; quando a idade efetiva de aposentar-se é de 62,1 (H) e 61 (M). Assim se provoca precarização crescente e redução efetiva do nível dos benefícios.

[9] Em 11/1/2012, Destatis publicou “Ombres et lumière sur le marché du travail” [Sombras e luz sobre o mercado de trabalho], onde se lê: “o número de empregos ditos atípicos (de tempo parcial de menos de 20 horas/semana, incluindo atividades marginais, empregos temporários e substituições) aumentou em 3,5 milhões, de 1991 a 2010; e o número de ativos com emprego regular diminuiu em cerca de 3,8 milhões”.

[10] A social-democracia alemã, depois de converter-se a economia social de mercado (o ordo-liberalismo) e no pós-guerra, converteu-se ao neoliberalismo da maioria do Congresso de 1/6/2003, quando 80% dos delegados aprovaram essa Agenda 2010. Dia 15/6/2003, o Congresso dos Verdes adotou, com maioria de quase 90% dos delegados, um programa que prevê, também os ‘verdes’, a aposentadoria por capitalização, a privatização dos serviços públicos, etc.

[11] Ideia difundida durante a mobilização contra a reforma das aposentadorias em 2010 Retraite: aos 95 anos, perderei o adicional trimestral; pode-se ler também Les grèves de l’automne 2010. Réémergence et perspectives de recomposition d’un antagonisme de classe

[12] A Europa encaminha-se, em marcha forçada, na direção do modelo norte-americano de livre demissão. O governo espanhol aprovou, dia 10/2/2012, leis que seguem a mesma lógica: facilitação das demissões, redução das indenizações/desemprego e redução de salários. As indenizações/desemprego (45 a 33 dias, por ano trabalhado) passam a um máximo de 42 a 24 meses. As demissões por causa econômica (em que as indenizações chegavam a 20 dias por ano trabalhado) foram facilitadas, limitadas a um máximo de 12 mensalidades: basta que a empresa tenha vendas em queda por três meses consecutivos, mesmo que continue a ter lucro. As empresas podem impor reduções unilaterais de salário, depois de três meses de vendas em queda. Rejeitar salários reduzidos nesses casos é justa causa para demissão.



[15] Ver De la production de subjectivité, de Félix Guattari.

[16] Ver O Capital, Livro I, Desenvolvimento da Produção Capitalista, Seção III: a produção da mais-valia absoluta, K. Marx.
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Notas dos tradutores 

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Em italiano, em: La svolta autoritaria del neoliberismo. Debito e austerità: il modello tedesco del pieno impiego precário”-
Introdução de LAZZARATO, Maurizio, La fabrique de l’homme endetté, essai sur la condition néolibérale, Paris: Amsterdam, 2011. O livro pode ser baixado, em francês, clicando no título.

** Pode ser lido, em português, em: As Lutas de Classes em França de 1848 a 1850.

[A] Foi conselheiro do ex-chanceler alemão, Gerhard Schröder (1998-2005), do Partido Social-Democrata, o “PSDB” alemão.

[B] 20/3/2012, “Sobre a reforma do mercado de trabalho, La Stampa, Itália.

[C] No Brasil dos anos do tucanato, em movimento daquele governo do PSDB neoliberal – em anos que felizmente são passados!Vade retro! – mas movimento em tudo IDÊNTICO ao de Mario Draghi na Itália, hoje, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, do PSDB-SP chamou de “vagabundos”, os aposentados que considerava “jovens” em: FHC chama aposentados jovens de vagabundos”.  

[D] Essa culpabilização do empregado pobre está, TOTAL E VISIVELMENTE presente no “vagabundos” do ex-FHC (vide nota C).

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