sexta-feira, 25 de maio de 2012

“A casa que Fox TV construiu: Anonymous, espetáculo e ciclos de amplificação” (2/3)


(a ser publicado no periódico peer-reviewed Television and New Media

11/5/2012, Whitney Phillips, Scholars Bank, University of Oregon - 2a. Parte

(to be published in peer-reviewed journal Television and New Media)
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

 Leia também ( e se possível antes) a 1ª Parte deste artigo

Como chegamos até aqui?

Christopher "moot" Poole
Como já dissemos, o 4chan foi criado em 2003 por moot, então com 15 anos. Começou como página que abrigava um fórum Something Awful, SA [Alguma Coisa esquisita], com um subfórum chamado “Anime Death Tentacle Rape Whorehouse, ADTRW” [Bordel do Estupro do Tentáculo da Morte do(s) Anime]. moot era contribuidor regular do subfórum ADTRW, e queria arquivar contribuições de outros usuários de SA (chamados “goons [1]) (FAQ 2010). O 4chan começou a atrair usuários de fora do pretendido subfórum, e rapidamente, logo depois de criado, passou a ser destino específico, com léxico próprio e normas específicas de comportamento.

Uma daquelas normas levou à apropriação da palavra “troll”. Embora muitos dos primeiros usuários do 4chan fossem ligados ao fórum SA, e em geral se autoidentificassem como goons, a palavra “troll” e seus derivados [trollar, trollagem e outros] passou a ser preferida no /b/ board do 4chan. Mais importante que isso, aqueles pioneiros abraçaram, em grupo, um tipo especial de atitude em relação aos seus alvos-objetos – o lulz, corruptela de “lol” (sigla para “laugh out loud”/rir alto, gargalhar).

Como Schadenfreude, o lulz também nasce da desgraça ou má-sorte dos outros. Mas, diferente de Schadenfreude, que implica gozo passivo de desgraças “medianas”, o agente do lulz sempre é ou a fonte direta da desgraça do seu objeto-alvo, ou, no mínimo, deu ou está dando “uma passada” na festa onde se reúne o grupo dos “culpados”.

Embora muitos dos trolls com os quais trabalhei insistam em que o lulz seria riso justo, a maior quantidade de lulz verifica-se sempre que o alvo é negro (sobretudo afro-americanos), mulher, gay e lésbica. Isso não implica dizer que grupos historicamente dominantes sejam à prova de lulz: católicos, Republicanos e brancos em geral sempre geraram muitas gargalhadas de trollagem. O trolls creem que nada deva ser levado a sério; por isso têm atitude de oposição agressiva e com forte marca de gênero sempre que cruzam com sentimentalismo ou com qualquer simples rigidez ideológica – ou com qualquer pressuposto rigidamente ideológico.  

Lulz
Com o lulz ativado como âncora e farol de comportamento, a cultura da trollagem começou a expandir-se. Em 2006, e como extensão da própria retórica de enxame com a qual já estavam familiarizados (“nenhum de nós é tão cruel como todos nós”), os trolls de /b/ adotaram a identidade de coletivo anônimo. Especificamente, passaram a chamar-se, em massa, “Anonymous”.

Infelizmente, não é possível saber em que momento o substantivo “anonymous” gerou a forma adjetiva “Anonymous”: Encyclopedia Dramatica, uma página Wiki devotada a tudo que se referisse à trollagem, com entradas geradas por usuários desde 2004, foi apagada pelo fundador Sharrod DeGrippo em 2011. Embora a página de abertura de cada entrada tenha sido salva, resultado da intervenção de emergência feita por Web Ecology, todos os postados de antes de 2011 foram perdidos.

Mas, graças aos conteúdos gerados por usuários em outras páginas, ainda é possível traçar, pelo menos nos grandes traços, um cronograma das transformações da subcultura de /b/. No caso dos Anonymous, e baseada em várias entradas do Urban Dictionary, onde há uma entrada para “Anonymouslinkada a /b/ e 4chan, sabe-se que a palavra “Anonymous”, como designativo coletivo, estava em circulação em 2006. As mesmas entradas mostram que, em 2007, os Anonymous já haviam gerado e distribuído o Anonymous Credo (também conhecido pela variante “O Código dos Anonymous” [The Code of Anonymous], o qual desde então passou por várias versões, mas que foi lançado sob um compromisso, irônico, em certo sentido: “We are Anonymous, and we do not forgive” [“Somos Anonymous e não perdoamos”] (UD 2007).

Naquele início, os Anonymous apareciam personificados pelo “greenman” [homem verde], um avatar bem vestido, cuja cabeça aparecia encoberta pela frase “no photo available” [não há foto disponível]. Em termos retóricos, nada disso acontecia por acaso: desde o início, entendia-se que “Anonymous” era um coletivo interligado por laços frouxos, animado por incontáveis agentes sem nome. Quando os anons referiam-se às experiências dos Anonymous, faziam referência tanto ao poder retórico do coletivo sem rosto como aos seus efeitos no comportamento.

De início, o greenman ficou confinado a interações dentro da página. Os trolls citavam os Anonymous (e anons individuais) no 4chan, e usavam o apelido, ao participar de fóruns para raids [ataques] fora da página (i.é, ao definir áreas para ataques anônimos organizados, mas raramente o usavam em círculos de não iniciados. Na medida em que a subcultura crescia, contudo, os anons começaram a citar os Anonymous em fóruns públicos, inclusive no Urban Dictionary e em YouTube. Mesmo assim, em meados de 2007, só os próprios anons davam sinais de interesse pelos Anonymous e falavam do coletivo.

Então, dia 27/7/2007, o canal Fox News levou ao ar o hoje infame “Report on Anonymous” [Relatório sobre os Anonymous]: “Eles se chamam “Anonymous” – diz o locutor-âncora John Beard. “São hackers turbinados, que tratam a rede como um videogame da vida real (...) assaltam e saqueiam websites, invadem contas de Myspace, atormentam pessoas inocentes (...). E, se você reagir, tome cuidado!” Adiante, na mesma emissão, o repórter Phil Shuman descreve os Anonymous como “gangue hacker” e “máquina de ódio da internet”, em “surto de destruição”. “Eu tinha sete senhas diferentes, e ele roubaram todas, até agora” – diz uma entrevistada. “Para mim, são terroristas domésticos”, insiste outra, opinião que aparece ilustrada por imagens da explosão de uma caminhonete.

Shuman apresenta os Anonymous como gangue clandestina e impiedosa. Uma mulher, mãe, enfrentou ataques repetidos por telefone e foi obrigada a comprar um cão de guarda; um adolescente, David, foi abandonado pela namorada, quando hackers postaram “fotos de sexo gay” em sua página em Myspace; vários estádios receberam ameaças de bombas – informação que adiante descobriu-se que era falsa. Na mesma matéria, um ex-membro dos Anonymous – de costas, de boné, com a voz distorcida, presumivelmente para protegê-lo de represálias – acusa a dita “gangue hacker” de ter ameaçado sequestrá-lo e matá-lo. Na cena seguinte, a mãe cuja família foi atacada, e cuja identidade não é revelada (voz off), aparece cerrando janelas e cortinas, enquanto diz: “Será que [o FBI] fará alguma coisa, depois de um de nós aparecer morto? É provável” (“FOX 11” 2007).

A matéria do canal Fox “Report on Anonymous” chegou no mesmo dia ao Youtube [2] ; até hoje, já recebeu cerca de dois milhões de visitas e recolheu mais de 20 mil comentários de internautas. Postado de DancingJesus94 captura o espírito dessas reações: “UAU” – escreve ele ou ela. “Fox deu a maior força aos trolls, e com o máximo de lulz possível. O ego dos Anon vai explodir de felicidade, agora que a televisão os apresentou como perigosos bandidos que, só de pensar nisso, já conseguem invadir computadores” (2010). Em outras palavras: para os Anonymous, foi a consagração.

Em consequência, as expressões “hackers turbinados”, “gangue de hackers e “Máquina de Ódio da Internet” [“hackers on steroids”, “hacker gangs” e “the internet hate machine”] foram imediatamente integradas ao léxico da trollagem, bem como a imagem da caminhonete explodindo – que recebeu o nome de “Caminhonete de Festas do 4chan” [4chan party van] e é exibida sempre que a polícia investiga ataques de trollagem (“getting v&” [pegar a van&] passou, desde então, a ser versão taquigrafada de “ser preso”).

O 4chan recebeu enorme divulgação e forte impulso de Relações Públicas, a partir do programa da Fox; mas, além disso, recebeu ali tratamento muito eficaz, do ponto de vista publicitário, de implantação e difusão de uma nova marca. Douglas Thomas descreveu fenômeno similar, em seu estudo sobre a cultura hacker, especialmente da “nova escola” de hackers do início dos anos 1990s. Como Thomas explica, “A imprensa, a mídia, como o público (...) aprenderam a esperar o pior, dos hackers; como resultado, os hackers passaram a oferecer-lhes imagem correspondente, mesmo que seus “ataques” não passem de brincadeiras inofensivas” (2002: 37).

Ao definir os Anonymous (e os seus trolls) como elementos socialmente desviantes, a rede Fox News ofereceu-lhes uma griffe comportamental – além de ter deixado no ar a promessa de que comportamentos semelhantes também receberiam generosa cobertura da emissora.

Embora Fox News não tenha criado os Anonymous, o Relatório “Fox 11” sobre eles deu aos Anonymous plataforma nacional, a partir da qual os trolls construíram estruturas cada vez maiores. O que antes fora uma página underground, conhecida só dos poucos participantes ativos, tornou-se “marca” e conceito genérico: os Anonymous só passaram a aparecer muito em matérias da mídia-empresa depois de o Relatório “Fox 11” ter ido ao ar pelo canal Fox (“Internet Justice” 2007).

O segundo grande catalisador dos Anonymous apareceu em janeiro de 2008, quando Nick Denton postou em Gawker um vídeo incômodo, em que se via Tom Cruise rindo de modo, talvez, “histérico”, e elogiando a Igreja da Cientologia. Intimado pela Igreja da Cientologia, Denton recusou-se a remover o vídeo; disse que era “notícia” (Denton 2008); em resposta à tentativa de a Igreja censurar o vídeo, alguém postou um comentário em /b/, sugerindo reação (“Plan” 2008). Assim começou o Projeto Chanology, o mais ambicioso projeto de ataque dos Anonymous até aquele momento. Embora os Anonymous de modo algum fossem o primeiro grupo a por os olhos na Igreja da Cientologia (Coleman 2010), foram os que tiveram mais sucesso. Uma semana depois de Denton ter publicado o vídeo das risadas de Cruise, os Anonymous divulgaram sua, hoje, já icônica Message to Anonymous (“Message” 2008); e dia 10/2/2008, centenas de manifestantes protestaram, em todo o país, à frente de centros locais da Igreja da Cientologia, em várias cidades. Para preservar o anonimato, os anons que participaram das manifestações usavam máscaras de plástico de Guy Fawkes, referência ao que então era conhecido no 4chan como “Epic Fail Guy”, figura aplicada num adesivo, que indicava fracasso e desapontamento – exatamente a mensagem que os anons desejavam transmitir sobre a doutrina da Cientologia. Imagens dos manifestantes, sobretudo dos que usavam máscaras de Guy Fawkes, foram vistas em todos os noticiários. Dois dias depois dos primeiros protestos, os Anonymous ganharam seu primeiro verbete na Wikipedia.

Com os Anonymous e sua nave-mãe, /b/ board, ganhando cada dia mais destaque cultural, a mídia-empresa aplicou-se ainda mais na cobertura. Movimento que, por sua vez, criou muito ampla ocasião para muito lulz, o que atraiu cada vez mais cobertura da mídia, a qual engendrou mais conteúdo original e... mais cobertura nas televisões e jornais. O canal Fox News assumiu a vanguarda do sensacionalismo, com Bill O’Reilly liderando a matilha. Depois que um anon invadiu a conta de Sarah Palin em Yahoo, O’Reilly denunciou o 4chan como “uma das páginas mais imundas, nojentas e desprezíveis da internet” (Popkin 2008) e exigiu que o FBI tomasse medidas drásticas (“Palin”2008; “Hackers” 2008).

Os Anonymous colheram a oportunidade para declarar guerra aberta contra o canal Fox News, particularmente contra O’Reilly. Depois da invasão à página de Palin, trolls invadiram a página de O’Reilly e divulgaram informações sobre frequentadores e os endereços pessoais e profissionais de O’Reilly (Danchev 2008). A mesma tática foi usada também em resposta a um segmento do programa Talking Points/Confronting Evil, no qual O’Reilly dizia que:

“A página da extrema-esquerda radical conhecida como “4chan” está distribuindo pornografia infantil para pedófilos da internet” (O’Reilly 2009).

Um ano depois, os Anonymous iniciaram a “Operation Bill Haz Cheezburgers” [aprox. “Operação Bill ‘tá côs xizburguers”], mais uma tentativa para derrubar a página. Mas, diferente de outras vezes, aquela operação foi planejada para matar com gentileza. Um anon escreveu:

“Tentem não mandar material obsceno para ele. Sem material obsceno, quando ele pirar no programa, ninguém se solidarizará com ele e todos o verão como doido varrido, que diz aquelas coisas horríveis daqueles gatinhos tão bonitinhos”.

Durante algumas horas, na sequência, Anonymous enviaram para O’Reilly centenas de mensagens com elogios os mais incoerentes e sem sentido, e montanhas de imagens de coelhinhos, patinhos e gatinhos, muitas das quais exibiam, como título, a frase “The Internet Love Machine” [Internet, Máquina de Amor]. Em dado momento durante o raid, alguém lembrou de redistribuir o endereço da casa de O’Reilly. Imediatamente começaram a chegar pizzas de pepperoni enviadas para aquele endereço, e um Anon distribuiu foto alterada do rosto de O’Reilly, com a frase: “O quê?! Não encomendei pizza alguma. E nem gosto de abacaxi” [“What? I didn’t order any pizza. I don’t even like pineapples” (“Operation Bill Can Haz Cheezburgers” 2009).

Em resumo, as várias respostas de Fox contra os Anonymous, o 4chan e os trolls em geral, ajudaram a ampliar e reforçar os contornos do que, naquele momento, era ainda fenômeno localizado, mas que, em pouco tempo, emergiu como sólida subcultura. Essas histórias ampliaram não só o léxico da trollagem; também forneceram aos trolls farto material memético e ajudaram a legitimar o desenvolvimento de uma “identidade troll” bem marcada, deliberada e altamente identificável e reconhecível. O canal Fox News, ao comandar a carga contra eles, deu aos trolls as principais coordenadas para traçarem sua face pública. Os trolls gostaram, ocuparam o espaço, armaram suas barracas e, graças a uma mídia-empresa-imprensa cada vez mais autorreferente e repetitiva, encontraram fonte praticamente infinita de alimento. Os Anonymous fortaleceram-se, e a mídia-empresa-imprensa perdeu o rumo, dividida entre nutrir e punir aquela sua prole amaldiçoada.

[Continua]



Notas dos tradutores

[1] Na origem, são personagens das histórias de Popeye: “Os Goons são estranhos habitantes da Ilha dos Goons, que já mantiveram o pai do Popeye preso. Mas quando Popeye foi à ilha resgatá-lo, pai e filho conseguiram acabar com os Goons, e sair da ilha”.

[2] Anonymous on FOX11 pode ser visto a seguir:

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