sexta-feira, 11 de maio de 2012

A canção do Rei contra a ditadura



Publicado em 10/05/2012 por *Urariano Motta

Recife (PE) - Há pouco, recebi um email que julgo melhor responder de modo público. Na mensagem, a pessoa, que pesquisei e desconfio ser real, pedia:

“Boa tarde, amigo!
Estou querendo fazer um projeto de pesquisa sobre a relação entre  Roberto Carlos e a Ditadura, mas as fontes estão difíceis.
Quero saber se pode me ajudar, me dizer quantas e quais as músicas do RC eram contra a DM. E outras fontes, como sites e livros”.

Antes, esclareço que o pedido acima vai mais ao tema que ao colunista. Quero dizer, o leitor não vê neste aqui autoridade nenhuma para falar sobre Roberto Carlos, no que é sensato e justo. Apenas, pelas ondas do Google, ele pescou o texto “Roberto Carlos e a ditadura”, e lançou o grito “me ajude, tema”. Imagino que deve estar em dificuldade para algum trabalho de curso, num inferno de prazos e carências, e não quero ser  grosseiro em não lhe responder como posso. Então vamos.

Primeiro, leitor amigo, perca as esperanças de sucesso na trilha pedida, que ou está perdida ou é roubada. Você pode pesquisar à vontade, mas creia: não existe uma só música de Roberto Carlos contra a ditadura. Isso, uma só não há. Os fãs do rei, que são muitos e fanáticos e sujeitos a algumas alucinações dizem que o rei possui uma, bela, terna, antológica, ecológica, pelo que cantam:

Debaixo dos caracóis dos seus cabelos. Aquela dos versinhos “um dia a areia branca / Seus pés irão tocar / E vai molhar seus cabelos / A água azul do mar...”.

Já veem, é música de causar uma revolução, no estômago. Os muitos e muito fãs gritam, brigam que o Rei (pois assim se referem a RC), os ardorosos exegetas ensinam que Sua Majestade compôs debaixo dos caracóis para Caetano Veloso, que se encontrava exilado em Londres. E com isso o Rei teria contrariado a censura, brigado contra a ditadura, afrontado o general Médici, porque, afinal, “debaixo dos caracóis dos seus cabelos/ uma história pra contar de um mundo tão distante” era puro engajamento. Entendam, ver nessa cançãozinha boba algo contra a ditadura é mais arriscado que traduzir “me dá um xêro” por give me a kiss

Com mais razão poderia ser dito que no mesmo disco dos caracóis Roberto Carlos teria gravado Detalhes para reivindicar a volta de Brizola ao Rio de Janeiro. Exagero? Não, ouçam a nova interpretação – com essa referência - para o velho exilado que, embora falecido, até hoje tira o sono da Rede Globo: “Não adianta nem tentar me esquecer / Durante muito, muito tempo em sua vida eu vou viver...”. Sentiram? Anistia pura.  

Mas se o leitor permite falar sério de outra maneira, lembramos que Roberto Carlos, quando explodiu, maneira de dizer, cantou em todos os rádios do Brasil, veio dentro de um projeto, de um programa que arrebentou em 65. “Em 1965, estreou ao lado de Erasmo e Wanderléa o programa Jovem Guarda, que daria nome ao movimento”, dizem as notas. O Jovem Guarda se opunha ao O Fino da Bossa, com Elis Regina. Enquanto O Fino da Bossa fazia uma ponte entre os compositores da velha guarda do samba e os compositores de esquerda, de convicções socialistas, o Jovem Guarda...

"Eu vou contar pra todos a história de um rapaz
que tinha há muito tempo a fama de ser mau
seu nome era temido sabia atirar bem
seu gênio violento jamais gostou de alguém...”

Na verdade, o namoro do Rei Roberto Carlos com o regime não foi um breve piscar de olhos, um flerte, um aceno à distância. O Rei Roberto não compôs só a música permitida naqueles anos de proibição. O Rei não foi só o “jovem” bem-comportado, que não pisava na grama, porque assim lhe ordenavam. Ele não foi apenas o homem livre que somente fazia o que o regime mandava. Não. Roberto Carlos foi capaz de compor pérolas, diamantes, que levantavam o mundo ordenado pelo regime. Enquanto jovens estudantes eram fuzilados e caçados, enquanto na televisão, nas telas dos cinemas, exibe-se a brilhante propaganda “Brasil, ame-o ou deixe-o”, o que faz o nosso Rei? O Rei irrompe com uma canção que é um hino, um gospel de corações vazios, um som sem fúria de negros norte-americanos. Ora, ora, o Rei ora:

“Jesus Cristo, Jesus Cristo, eu estou aqui
olho pro céu e vejo uma nuvem branca que vai passando
olho pra terra e vejo uma multidão que vai caminhando..”

Com essa composição o Rei erguia multidões de jovens, de todos os evangelhos nos estádios, com os braços levantados, a clamar por Jesus Cristo. Mas tudo, como diriam os velhos, velhíssimos fãs, tudo como uma forma de protesto. Protesto devoto, sagaz e permitido, enquanto o pau cantava fora da canção.

Enviado por Direto da Redação

*Urariano Motta é natural de Água Fria, subúrbio da zona norte do Recife. Escritor e jornalista, publicou contos em Movimento, Opinião, Escrita, Ficção e outros periódicos de oposição à ditadura. Atualmente, é colunista do Direto da Redação e colaborador do Observatório da Imprensa. As revistas Carta Capital, Fórum e Continente também já veicularam seus textos. Autor de Soledad no Recife (Boitempo, 2009) sobre a passagem da militante paraguaia Soledad Barret pelo Recife, em 1973, e Os corações futuristas (Recife, Bagaço, 1997).

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