segunda-feira, 16 de abril de 2012

Tunísia: “A verdadeira ameaça é o neoliberalismo, não os islâmicos”


31/3/2012, Matt Kennard, The Guardian, UK
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

Matt Kennard
Encontrei-me com Mustafa e Kamal na Avenida Bourguiba, onde participavam de um protesto, em janeiro de 2011, para livrar-se do ditador que governou a Tunísia com mão de ferro por 23 anos. Desde então, a Tunísia mudou muito – e semana passada comemorou 56 anos como nação independente. Mas os dois disseram que continuarão nas ruas, até consolidar os ganhos da revolução. “Antes, não se podia dizer isso”, diz Mustafa, 25 anos, natural de Tabarka, no norte da Tunísia. “Antes, a única coisa que poderíamos dizer a você era que Ben Ali era grande, que era um grande homem.” 

Mas o quanto a Tunísia conseguiu tornar-se realmente independente, livre do mando do ex-senhor colonial e seus aliados? Uma manifestação de rua, semana passada, coordenada por grupos fundamentalistas que exigiam a implantação da lei da Xaria, lançou em torvelinho outra vez os tunisianos seculares, e também preocupou os franceses, que se opõem ao partido Ennahda (“Partido do Renascimento” [1]). Político da oposição disse-me que há até rumores de um golpe apoiado pelos franceses. É evidente que o próximo estágio da conivência do ocidente na subjugação do povo da Tunísia é o medo que a mídia e alguns grupos políticos sentem do crescimento do partido Ennahda, democraticamente eleito, e partido islâmico.

Túnis : "Manifestação do Partido Ennahda"
Mas, apesar do que diz a mídia ocidental, o partido Ennahda informou, na 2ª-feira, que não tem qualquer projeto para implantar a Xaria – a lei islâmica – como principal fonte de leis e do direito, com vistas à nova Constituição. Não seria melhor julgar o partido pelo que faz, em vez de inventar conspirações sobre suas intenções?

“Sabemos que temos uma responsabilidade histórica de encaminhar corretamente as coisas. Somos partido genuinamente inclusivo” – disse Said Ferjani, membro do politburo do partido Ennahda.

O esquema de armar ativamente um ditador cleptocrata, que empurre o povo da Tunísia na direção de apoiar “valores ocidentais”, não é novidade para ninguém. Como Frantz Fanon escreveu em “Os Condenados da Terra[2]: “Logo que o nativo começa a promover seus próprios interesses e a causar ansiedade ao colonizador, o nativo é entregue a boas almas que (...) lhe ensinam a riqueza e a especificidade dos valores ocidentais”.

Inicialmente, quando civis começaram a ser mortos por atiradores mercenários nas ruas de Túnis, Hillary Clinton disse que os EUA “não querem assumir lados” e preocupou-se só com “a agitação e a instabilidade”. O governo de Sarkozy até ofereceu-se para enviar conselheiros políticos para assessorar Ben Ali, na luta contra os levantes populares. No final, foram mais de 200 mortos. Desde que a revolução foi sufocada, Clinton e Sarkozy puseram-se a elogiar “o progresso” no país, ao mesmo tempo em que mostravam grave preocupação com a possibilidade de o partido Ennahda impor ao país uma ditadura de tipo iraniano (nem EUA nem França preocuparam-se muito com a ditadura de tipo Pinochet, no Chile).

Mas o medo que o partido Ennahda inspira está fora de lugar e é inspirado pelos desejos ocidentais de não perder o firme controle sobre a Tunísia. Há várias claras diferenças entre a Tunísia e o Irã de 1979, quando a revolução iraniana derrubou outro tirano torturador apoiado pelo ocidente, o Xá. 

Em primeiro lugar, para constituir o novo governo, o partido Ennahda reuniu uma coalizão que inclui socialistas seculares e sociais democratas. O presidente Moncef Marzouki é ativista pró-direitos humanos, de formação secular, que, durante décadas, combateu contra as atrocidades apoiadas pelos EUA e cometidas contra dissidentes tunisianos.

O segundo ponto é que a sociedade civil tunisiana está envolvida no processo, envolvimento que não para de crescer. Um dos padrões retrógrados que se veem num Oriente Médio onde sobrevivem ditaduras apoiadas pelos EUA, é que o islamismo é, não raras vezes, a única avenida que resta aberta para que se manifeste o desagrado com o estado de coisas. O espaço que houvesse para movimentos secularistas de esquerda foi completamente fechado, desde que o panarabismo de Nasser no Egito assustou os EUA, a ponto de a esquerda ter sido praticamente extinta em toda a região. Claramente, o que mais assusta o ocidente, mais do que qualquer islamismo, portanto, é a possibilidade de que prospere ali uma esquerda secular revolucionária que se oponha à ordem neoliberal que lá foi implantada pelo ocidente, ao longo dos últimos 40 anos. Isso, sim, seria o totalmente inadmissível.

Com inúmeros grupos islâmicos que veem com olhos de extrema simpatia o modelo das instituições de Bretton Woods e a ordem neoliberal, e que hoje tentam impor-se na Tunísia, será quase impossível para os partidos governantes tentarem qualquer coisa diferente (ainda que desejem fazê-lo). O partido Ennahda, no momento, não apresentou qualquer programa econômico claro, e, em conversas comigo, seus representantes falaram muito sobre atrair investimentos estrangeiros, muito mais do que sobre iniciativas  para cuidar dos serviços públicos de que o país realmente necessita. Até agora, a Tunísia está seguindo a cartilha dos EUA e de Bretton Woods, privatizando muitas empresas públicas e desmontando instituições e subsídios públicos que havia, e que barateavam os preços do combustível e da comida. Atualmente, muitos comparam o partido Ennahda ao partido Justiça e Desenvolvimento (AKP) na Turquia, e não é segredo para ninguém que o AKP é o partido dos sonhos do capital e da finança internacionais.

No governo, o partido AKP privatizou inúmeras empresas públicas, entre as quais a Tekel, empresa estatal de tabaco e álcool, que o regime do AKP vendeu, como parte dos “ajustes estruturais” associados a um acordo de empréstimo de $16 bilhões, que o país recebeu do FMI. Antes de Recep Tayyip Erdogan, o primeiro-ministro já agia como um novo sultão, e a mídia-empresa dizia maravilhas sobre o AKP. 

Eis porque tanto me preocupo com a Tunísia – não por causa dos islamistas, mas por causa dos neoliberais. Passado o período da ditadura, a economia volta a ser questão importante na Tunísia – e a alta taxa de desemprego é preocupação de todos, se se fala sobre trabalho. A receita de Bretton Woods já é desastre comprovado em todo o mundo, como modelo de desenvolvimento. Se quiser sobreviver na Tunísia, o partido Ennahda deve olhar noutra direção.


Notas dos tradutores
[1] O “Partido do Renascimento”, foi fundado por intelectuais tunisianos em 1981, inspirado na Fraternidade Muçulmana do Egito; apresenta-se como partido islâmico moderado e obteve a maioria dos votos nas eleições na Tunísia, em outubro de 2011.
[2]FANON, Frantz [Les Damnés de la Terre, 1961, Paris: Maspero, pref. Jean-Paul Sartre]. Os Condenados da Terra. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979. Prefácio de “Os condenados da terra”, por Jean Paul Sartre (em português).

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