terça-feira, 24 de abril de 2012

O menino-passarinho


*Urariano Motta
Texto enviado pelo autor
Imagens da internet inseridas por redecastorphoto

 

No texto “Como ensinar literatura” eu mencionei o conto Daniel, que recupero a seguir. O título muda para "O menino-passarinho" em homenagem ao lirismo dos jovens que o escutaram tensos.

Em outra oportunidade, falarei sobre o amigo que originou o personagem. A ele, agora.

Da turma, Daniel era o mais gordo. Ainda que sob protestos, ele crescera pelos lados, elastecendo um círculo de carnes. Em seu rosto largo destacavam-se sobrancelhas peludas, que se uniam simetricamente num ponto de inflexão, ficando a sobrancelha esquerda e a sobrancelha direita ligadas como asas dum pássaro, movendo-se no espaço da fronte. Essa união desairosa o incomodava. Se ele tivesse ultrapassado aquele momento crítico em que rapazinhos e mocinhas se entreolham, pesquisam-se, em que as mudanças no corpo, na face, são mudanças de revelação, Daniel teria sobrevivido àqueles elos de siamesas. Mas as sobrancelhas para Daniel não eram propriamente uma revelação, porque há muito vinham sendo anunciadas. Se pudesse, naquela quadra da sua vida, teria feito uma cirurgia. Uma nova face, de quaisq uer outras sobrancelhas, finas, ralas, densas, espessas, não importava, desde que fossem gêmeas cada qual a seu canto. Ele se sentia, ou melhor, os meninos e meninas faziam-no sentir-se um rapaz anormal, em razão de se acompanhar do que achavam anormais enfeites sobre a testa. E enfeites muito salientes, cerrados, que se apresentavam à frente, antes que dissesse, “eu sou Daniel”. Enfeites incapazes de disfarce. A não ser que se colocasse permanentemente de perfil.

Em outra pessoa aquelas sobrancelhas viriam a ser um distintivo de elegância, mas em Daniel... Ele era gordo, carregava a fama de ser um quase idiota. Quem é tido como insignificante já traz em si a sua zombaria. O grupo de alunos se tornava coeso, punha-se mais camarada na eleição de Daniel para o divertimento. Que julgavam tão inocente:

-Daniel, tira essa máscara. Tira essa máscara, Daniel!

E num requinte de inocência, um do grupo virava-se para as mocinhas:

-Quem quer, quem quer um quilo das sobrancelhas de Daniel?

Ele não se escondia, não descia para um buraco, porque era impossível sumir por entre os sinais do seu rosto. A classe toda numa gargalhada geral estourava.

As meninas, a princípio tímidas, terminaram por aderir a esse tipo de malhação. Porque era malhado, Daniel transformara-se involuntariamente no contato entre moças e rapazes, que antes mal se relacionavam. A cada troça as mocinhas dobravam a risada. Ruborizavam-se. Os rapazes, sentindo a terra fértil, acercavam-se mais estreitamente. Um banquete.

Desse banquete Iara não participava. Entre a alegria ruidosa ela estendia olhos silenciosos para Daniel. Ele baixava a cabeça. Talvez ela fosse a única pessoa da turma que o olhava como um todo, inteiro. Ele furtava ainda mais o rosto. Isso deixava Iara indignada: por que em meio a toda aquela zombaria era ele o envergonhado?! Iara sentia uma indignação muda, apenas sentimento, de sentimento que fere somente a quem o possui, porque não encontra meios ou argumentos para se exteriorizar. Como, com que palavras, com que forças levantar-se e falar mais alto que a selvageria? Como dizer, “turma, isso não se faz”? Como argumentar, “não se acanham de zombar de um colega, a quem vocês mesmos transformaram num coitado? A vergonha que ele sente deveria ser nossa”, como dizê-lo? Para se expressar assim, era preciso que Iara tivesse mais que catorze anos, e também um cajado, forte, com poderes de bater e emitir raios de um profeta. Impossível. Ainda que tais meios tivesse, ainda assim seria derrubada. Pois não é próprio do grosseiro se comprazer na grosseria? A grosseria não suporta qualquer alteamento. Revolta-se, quando importunada.

Em verdade, nessa indignação muda, Iara possuía, ela mesma, um quê de resguardo à troça.     

Seu pai era um louco, um desequilibrado, que vivia a falar sozinho, a pregar um evangelho raivoso nas ruas, na praça, a todos e a ninguém. A causa imediata de sua pregação era sempre uma pequena contrariedade, real ou imaginária, mas de qualquer forma desenvolvida até as raias da explosão. Que explodia, deixando um dilema para as vítimas: ou concordavam com as suas palavras, e nesse caso atingiam a salvação, ou caso contrário emborcariam de cabeça, atingindo as profundas, sem remédio ou absolvição.

Ele não tinha nome, era o Pastor do bairro. E tinha a mania insuportável de ficar no portão do Ginásio, à espera angustiada da filha. Calvo, de bigodes bastos, metido sempre num casaco de frio, ainda que o sol infernizasse a tarde. Vez por outra ia até a porta da sala. Mergulhava a cabeça de olhos grados, e perguntava somente a ela, por cima de toda a turma: “já acabou?”. E voltava ao portão, em passos miúdos, rápidos. Ah, que não lhe levassem a filha, sabia da fama do Ginásio, e daqueles meninos: taras, tarados, demônios. Fincava os pés na vigilância do pátio, dos muros, das janelas.

Não fosse a suave altivez de Iara, há muito ela teria caído nas graças da zombaria. Tivesse ao menos um ar resignado e ter-lhe-iam caído em cima, até arrancar-lhe a pele. Ao aparecimento do pai ela erguia o semblante para o quadro-negro, surda, parecendo a Daniel com a mesma expressão severa de Joana D’Arc nos quadros. Risinhos abafados corriam, mas não prosperavam.

Ela era bela, suavemente bela. Pequenina, morena, de olhos amendoados. A mulher que seria já estava aos catorze anos organizada. Essa certeza vinha menos do corpo que da expressão madura do rosto. Que banhava, essa expressão madura, todo o seu corpo. Ela era aquela menina que se namorava, que se abraçava fortemente, degustável, sem pressa, até o fim dos dias.

Daniel comia-a, com os olhos. Desastrado que era, ao invés de soprar, quebrava o prato pelas beiras.

Como um acréscimo a seu natural, Daniel perdia, definitivamente, o senso da realidade ao sentir pelo faro, pelos ouvidos, pelo perfume, a presença de Iara. Inchava o peito, girava nos calcanhares de modo a ficar de perfil, como um Napoleão de hospício, para demonstrar que não a via. Mas aquele moreno hindu o atordoava. Quando em casa idealizava seus próximos atos, prometia-se que ela receberia a demonstração do seu afeto. Num repente virava-se, lá, aqui estava ela, à margem de toda agitação, quieta. Como um raio lembrava-se da própria testa, mas era necessário demonstrar-lhe o próprio afeto: cuspia-lhe um cumprimento, rápido, como uma bala, arremessada por um aceno bruto de queixo: “Ôi !”. E tornava à posição napoleÃ?nica, ouvindo, discutindo não sabia o quê, porque nada ouvia, nada falava do que lhe vinha à mente, que era a presença morena, loucamente morena, daquela pele que um dia sonhava distantemente, perdidamente tocar com as mãos.

-Daniel, você está me ouvindo?

O colega, irritado, chegava-se ao pé do seu ouvido, para baixá-lo do além:

-Você já viu mulher nua? Bem cabeluda, você já viu uma?

-Sim, claro... a ruiva não é como a morena.

Estremecia. Ia sentar-se a um canto, isolado. Era necessário agir. Mas o que era o agir? As pernas suavam. Uma algidez progressiva ia-lhe tomando os membros. Os planos de ação rápida, arquitetados lá dentro do cérebro, naquele lugar íntimo, no pontinho escuro onde o voo é livre para todas as coisas ridículas, risíveis, burras, vaidosas, de superstição, de crime, de vingança, roubo e vontade, enfim, naquela célula privatíssima onde o sonho não se envergonha de sonhar, naquele pontinho que imagina, tudo que ele gerasse era incompatível com a sua pessoa. Ele, Daniel, sonhava para outro Daniel. O Daniel sonhado não era para o Daniel materializado. Por que não fazia a corte como os outros? Nem como os outros, qualquer corte que fosse algo mais que recolher a cara envergonhada quando Iara descia até ele os humaníssimo s olhos? Haveria alguma estrada, alguma ponte invisível, que ninguém visse, somente eles dois, que o levasse até ela?

Se ele fosse magro, se não mangassem dele, se tivesse dinheiro no bolso, se tivesse futuro, isto seria uma ponte. Se ao menos tivesse sobrancelhas de gente. Suas calças não guardavam vinco. A camisa não lhe descia, verticalmente, por entre as calças. Ela apenas era puxada, repuxada, naquela barriga. Se ao menos fosse como Gilvan, como Aciole – eles eram olhados, eles podiam ter as meninas que quiserem, num assobio. Elas abanavam o rabo, como cadelas. Eles têm um rosto bonito, de galã de cinema. Como seria feliz se tivesse o corpo deles ... eles têm músculos, são atletas, pulam obstáculos, mostram-se num porte ... Eles têm peito de homem. Onde está a mulher que não consigam? Por que a miséria não gosta da miséria? Isso fere. Por que a miséria detesta e pisa a miséria?

Num belo dia, Daniel entrou no Ginásio de sobrancelhas raspadas. Ou melhor, ele amputou o corpo, o ponto onde se uniam as duas asas do pássaro. Ou melhor, pensando em amputar o corpo, inabilmente foi mais longe, amputou também pedaços à esquerda e à direita das asas, fez sumir os pedaços que a natureza fazia cair rumo a um encontro. Melhor, no que sobrou, diminuiu o volume, a espessura dos pelos, ou das plumas. Melhor, finalmente, tirou plumas abaixo e acima das articulações, reduzindo-as a finas linhas.

A cirurgia deu nascimento a dois pontos de interrogação deitados, quase a dois acentos circunflexos incompletos, sem acomodação.

O turno da tarde, o Ginásio inteiro se levantou. Daniel não conseguia sentar-se em uma cadeira. Ficava rodando, com sua cara gorda de palhaço, por entre a turba excitada. “Mulherzinha, mulherzinha”, vinha em gritos agudos, vaias, risadas, de início uma passarada de praga, depois uma massa compacta, “Mulherzinha !”. Estrondavam. Num gesto reflexo, Daniel punha as mãos sobre o rosto, protegia a cabeça como um ser em queda, como um suicida em arrependimento tardio que se lançou do alto de um arranha-céu.

Não se pode dizer que pensava, mas seu arrependimento tardio parecia tão-somente dizer, “em que deu, Daniel, em que deu o teu sonho impossível de te fazer aceito”. Ao que outra voz respondia, na mesma escuridão, por entre seu corpo aos soluços, “agora o teu sonho se vai, Daniel. Antes houvesses feito do que era impossível uma hemorragia”.

Com solenidade, os professores arrastaram-no para a secretaria. Uma procissão de meninos seguiu-os.

Na secretaria, diante daquele ser cabisbaixo, dona Augusta mandou que ele erguesse o rosto. A medo obedeceu: tinha o rosto úmido, inchado, com as inscrições esborrachadas na testa. A diretora então, em seu natural prosaico, achou por bem ajeitar-lhe as interrogações deitadas sobre os olhos, enfeixando-as numa única interrogação:

-Por que você nunca usou um boné, Daniel?

E assinou a sua expulsão.  

*Urariano Motta é natural de Água Fria, subúrbio da zona norte do Recife. Escritor e jornalista, publicou contos em Movimento, Opinião, Escrita, Ficção e outros periódicos de oposição à ditadura. Atualmente, é colunista do Direto da Redação e colaborador do Observatório da Imprensa. As revistas Carta Capital, Fórum e Continente também já veicularam seus textos. Autor de Soledad no Recife (Boitempo, 2009) sobre a passagem da militante paraguaia Soledad Barret pelo Recife, em 1973, e Os corações futuristas (Recife, Bagaço, 1997).

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