sexta-feira, 6 de abril de 2012

EUA temem que a queda de Assad implique dificuldades ainda maiores para eles e para Israel


3/4/2012, Gilbert Achcar (entrevista a Aykut Kılıç) International Viewpoint, IV Online magazine, IV447, abril 2012 (Website da Sessão Turca da IVa. Internacional)
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu


Gilbert Achcar cresceu no Líbano e leciona ciência política na Escola de Estudos Orientais e Africanos [School of Oriental and African Studies (SOAS)] em Londres. É autor, dentre outros livros, de The Clash of Barbarisms (2ª ed. ampliada, 2006); um livro de diálogos com Noam Chomsky sobre o Oriente Médio, (2ª ed. 2008); e, mais recente, The Arabs and the Holocaust: The Arab-Israeli War of Narratives (2010).




International Viewpoint: Comecemos com as opiniões controversas sobre os traços políticos do Conselho Nacional Sírio. Qual sua opinião sobre a composição do CNS?

Gilbert Achcar: O Conselho Nacional Sírio é combinação heterogênea, que inclui da Fraternidade Muçulmana a gente de esquerda, principalmente do Partido Democrático do Povo, além de gente ligada a governos ocidentais, sobretudo EUA e França. É grupo heterogêneo. Isso ficou bem claro quando se viu que não conseguiram chegar a qualquer consenso sobre a substituição de Burhan Ghalioun; e também no modo como o próprio Burhan Ghalioun caiu em desgraça, depois de assinar o acordo do Cairo, com outra fração da oposição.

O Conselho Nacional Sírio é mantido unido pela pressão dos vários estados que estão atualmente intervindo na situação interna da Síria. Esses estados pressionam fortemente para que a coalizão seja a mais ampla possível, que inclua outros grupos, além dos que já se incorporaram ao Conselho Nacional Sírio. Esses países querem a todo custo criar qualquer espécie de coalizão que dê algum tipo de unidade à oposição, o que, afinal de contas, só conseguirá tornar o CNS ainda mais heterogêneo do que já é.

Isso posto, é importante ter em mente que o Conselho Nacional sírio não é um bando de gente de direita, como se tem dito em alguns círculos. Há ali gente que de modo algum se pode classificar como “de direita”; há vários nomes bastante progressistas.

International Viewpoint: Recentemente, até jornais da direita que apoiam o governo do partido AKP [turco] trouxeram notícias sobre as divisões cada dia mais profundas dentro do CNS e até uma possível escalada na oposição à Fraternidade Muçulmana na próxima reunião dos “Amigos da Síria”, que acontecerá no início de abril, em Istambul.

Gilbert Achcar: Essa reunião está sendo pensada pelas potências ocidentais e pelo governo turco como meio para pressionar na direção de unificar, seja como for, as fileiras da oposição síria; mas não vi qualquer sinal de disposição contra a Fraternidade Muçulmana. Não acho que essa questão seja importante, nas atuais circunstâncias. Por que o governo turco hostilizaria a Fraternidade Muçulmana, com quem colabora há muito tempo?

Basicamente, os chamados “Amigos da Síria” têm, contra eles, a imagem de divisão, que contrasta fortemente com o que se via na Líbia. Na Líbia, havia o Conselho Nacional de Transição, sem ninguém que se opusesse a ele, como representante de alguma oposição líbia. Na Síria, bem diferente disso, ouve-se uma cacofonia, com divisões entre os grupos e dentro dos grupos. Claro que essa situação favorece o regime sírio e enfraquece a oposição.

Por isso, a Turquia, as potências ocidentais e regimes do Golfo Árabe tanto se empenham em dar alguma unidade à oposição e em promover a imagem de que uma oposição unificada na Síria seria algum tipo de garantia para os próprios países ocidentais.

A verdade é que uma das principais razões pelas quais os países ocidentais continuam tão indecisos e inseguros em relação à Síria é que os EUA temem que a queda de Assad implique dificuldades ainda maiores que as atuais, para eles e para Israel.

International Viewpoint: Qual é a possibilidade de uma intervenção estrangeira?

Gilbert Achcar: “Intervenção” é palavra muito ampla. Já há uma intervenção em andamento, em várias formas. Se você fala de intervenção militar direta, acho que a possibilidade é muito remota, pelo menos nesse momento. Bem visivelmente, ninguém está considerando seriamente a possibilidade de enviar soldados de ocupação para combater em terra, par a Síria, nem a oposição síria algum dia pensou nisso – como a oposição líbia pensou, desde o primeiro momento. Além do mais, as potências ocidentais sabem que uma campanha aérea do tipo que se viu na Líbia, seria, no caso da Síria, muito custosa, não só em termos materiais, mas também em termos de vidas humanas, é clara.

Uma campanha de tipo líbio, na Síria, levaria a situação de perigo extremo, no campo regional, dado que a Síria é aliada muito próxima do Irã e do Hezbollah no Líbano e conta também com o apoio dos russos.

E a Síria tem exército e defesas aéreas muito mais poderosos do que a Líbia tinha, e é território de densidade populacional muito maior. Considerando tudo isso, não acredito que haja possibilidade real de intervenção militar contra a Síria. Ali, o tipo de interferência militar mais exequível em apoio à oposição sempre tenderá a assumir a forma de armas contrabandeadas para a oposição, dentre outros motivos porque já há importante intervenção militar de russos e iranianos em apoio ao regime de Assad, que estão enviando armas para o exército sírio.

Quanto a enviar armas para a oposição síria, só pode ser feito através da Turquia: a Jordânia de modo algum aceitaria o risco de uma ação desse tipo, porque a monarquia jordaniana é frágil demais para esse tipo de ação; o Iraque não é opção, porque o regime iraniano é hoje muito próximo do regime sírio e do Irã. O Líbano tampouco é opção como canal oficial para armar a oposição síria, por causa do Hezbollah. Assim sendo, o único país suficientemente forte para poder servir como canal para armar a oposição síria é a Turquia. Mas até agora, o governo turco tem-se recusado a fazer esse papel. 

Por isso tudo, a oposição síria, o chamado Exército Sírio Livre, tem tido tantas dificuldades para fazer frente à ofensiva militar que o regime Assad lançou contra ela: a oposição síria não tem armas adequadas, nem tem armas suficientes. A Turquia está ante um dilema, na situação síria. De início, o governo turco tentou operar como mediador, no papel de indutor de algum tipo de solução negociada; mas o regime sírio não se interessou. Erdoğan frustrou-se e mudou de atitude em relação ao regime sírio.

O governo turco, em nenhum caso, faria qualquer coisa sem o claro aval dos EUA e de outros países ocidentais. A Turquia não abriu suas fronteiras para entregar armas à oposição síria, porque Obama opõe-se frontalmente a essa linha de ação.

Washington teme, basicamente, que um colapso da Síria, semelhante ao que se viu acontecer na Líbia, converteria a Síria – como se vê acontecer hoje na Líbia – em caos absoluto, com o estado ocupado por grupos independentes armados. Os EUA também temem uma iraqueização da Síria, que transforme o país em algo semelhante ao Iraque de depois da invasão dos EUA, com, principalmente, a al-Qaeda, presente e muito ativa ali. Israel alimenta medos semelhantes. E essa, afinal, é a principal razão pela qual nem EUA nem Israel têm mostrado grande entusiasmo em relação ao que está acontecendo na Síria e nem, simultaneamente, mostram qualquer simpatia em relação à oposição síria.

International Viewpoint: Depois da visita de Kofi Annan a Damasco, como você vê a situação na Síria? Você acha que o regime Assad conseguirá manter-se na Síria?

Gilbert Achcar: No longo prazo, não acho que o regime sírio consiga sobreviver, mas ninguém pode prever por quanto tempo conseguirá manter-se no poder. Assad acredita que poderá continuar a governar com o apoio de russos e iranianos, ao mesmo tempo em que impede uma invasão militar de apoio à oposição. É possível que esteja planejando algum gesto político, de abertura para membros selecionados da oposição, depois de esmagar a ação da oposição interna. Mas só o fará como concessão, de modo a não dar a impressão que a solução lhe foi imposta. Por isso está lançando essa recente ofensiva militar. Até agora, Assad tem sido bem sucedido, porque a oposição não tem meios para resistir ao seu exército.

Por outro lado, é difícil imaginar que o povo sírio, a oposição popular que também há, aceite qualquer resultado que não livre a Síria da ditadura de Assad, depois de tão longa luta e do preço altíssimo que a oposição pagou até agora e continua a pagar.

(...)

International Viewpoint: Na Turquia – inclusive entre os principais setores da esquerda socialista – há grande confusão sobre a composição política da oposição a Assad dentro da Síria. Como vc descreve a oposição síria dentro do país?

Gilbert Achcar: A oposição síria dentro do país começa, como se sabe, com os Comitês de Coordenação Local (CCL). São autênticos e representam o levante inicial, no sentido de que organizaram as primeiras manifestações de protesto. Há redes por toda a região, e isso explica o levante inicial. São redes populares, muitos são jovens, que coordenaram as primeiras manifestações, em muitos casos usando a internet.

A formação de coalizões de oposição, como o Conselho Nacional Sírio, é outro estágio do mesmo processo, que atraiu para lá, depois dos movimentos populares iniciais, grupos de oposição que vivem fora do país, além de outros, internos, que se reuniram mais ativamente depois do levante inicial. Hoje, parte significativa do movimento dentro do país aceitou o CNS, porque, sem eles, ficariam sem voz para falar, sobretudo, nos fronts internacionais. Os CCL e a coordenação central dos Comitês, não constituem liderança política. No caso de o regime entrar em colapso no curto ou médio prazo, ninguém sabe que forças políticas dominarão, na Síria.

Tudo isso é muito difícil de avaliar, porque não há eleições na Síria há várias décadas. Mas não há dúvidas de que as forças políticas organizadas são minoria insignificante, se se consideram as massas não organizadas em partidos, que querem o fim do governo Assad.

International Viewpoint: Sabe-se que a Síria tem longa tradição de políticos de esquerda. Qual a influência desses grupos e ativistas de esquerda, no movimento?

Gilbert Achcar: Sim, diferente da Líbia, há uma importante corrente de opinião e de inteligência de esquerda na Síria. Não havia nada semelhante a isso na Líbia, mesmo antes de Gaddafi, e Gaddafi governou durante 40 anos, suprimindo qualquer tipo de vida política, exceto a que ele mesmo inspirava e comandava. Por isso, é impossível dizer que haja algo que se possa chamar de “esquerda” na Líbia, exceto um grupo muito pequeno. 

Na Síria esse quadro é completamente diferente. Na Síria há comunistas, marxistas de várias nuances, nacionalistas e outros. Há grande população de palestinos que vivem na Síria e a esquerda palestina também está bem representada na Síria. A Síria talvez seja, de todos os países árabes da região, onde o ideário marxista, de esquerda, tem maior representatividade. Essa é boa razão para manter o otimismo.

Mas quanto mais tempo demorar para Assad deixar o governo, mais se acumularão condições para que o quadro assuma tonalidades sectárias ; o risco, assim, é que o levante inicial degenere para uma oposição sectária. Essa é a principal preocupação hoje, para todos que se interessam pelo futuro do levante popular na Síria.

(...)

International Viewpoint: Qual o impacto da revolta síria sobre a política no Líbano? E como os desenvolvimentos na Síria podem afetar a luta dos palestinos, depois que o Hamás deixou, recentemente, Damasco?

Gilbert Achcar: O que está acontecendo na Síria tornou mais agudas as tensões entre os dois principais grupos, no Líbano. A animosidade sectária entre xiitas e sunitas aumentou muito desde o início da crise síria. De fato, os confrontos na Síria são vistos como confronto entre xiitas e sunitas – o que aqueles confrontos não são. Os alawitas não são xiitas, em termos precisos, mas o fato de o Irã apoiar a Síria acentua esse tipo de “interpretação” distorcida.

O eixo Irã-Hezbollah passa pelo Iraque e pela Síria. Isso implica que, se o conflito na Síria degenerar em conflito sectário, pode, sim, afetar o Líbano, e a guerra pode chegar até lá. Por hora, os dois lados, no Líbano, mantêm-se distantes e atentos ao desenrolar do conflito na Síria.

Quanto aos palestinos, pouco têm a perder na Síria, aconteça o que acontecer. O Hamás deixou Damasco, mas não rompeu com o regime sírio, nem Assad rompeu com o Hamás. 

De fato, o Hamás sabe que em todos os casos, para sobreviver, o governo de Assad terá de continuar a jogar com a “carta palestina”.

E, se o regime Assad for derrubado e for substituído por governo no qual a Fraternidade Muçulmana Síria tenha influência, será ótimo para o Hamás, que nasceu na mesma família ideológica e política da FM, como se sabe. 

A verdade é que o regime sírio apoiou o Hamás e alguns outros grupos da OLP, mas sempre à moda de regimes mukhabarat, quer dizer, todos os “hóspedes” do regime viviam sob estrito controle das forças de segurança do governo Assad. A possibilidade de trabalhar na Síria, sem esse tipo de controle estrito certamente interessa ao Hamás.

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