domingo, 30 de dezembro de 2012

Noam Chomsky sobre: “Trabalho, aprendizado e liberdade”


24/12/2012, Noam Chomsky, entrevistado por Michael Kasenbacher, New Left Project
Entrevista traduzida pelo pessoal da Vila Vudu

Noam Chomsky

“Gostaria de ter mais tempo para trabalhar. Mas não tenho tempo livre...”

Michael Kasenbacher: Gostaria de perguntar-lhe: o que é trabalho realmente desejado? Talvez possamos começar por sua experiência pessoal e sua carreira de duas faces, na linguística e no ativismo político? Você gosta de trabalhar assim?

Noam Chomsky: Se tivesse tido tempo, teria trabalhado muito mais sobre linguagem, filosofia, ciências da cognição, tópicos intelectualmente muito interessantes. Mas grande parte de minha vida é ocupada hoje noutro tipo de atividade política: ler, escrever, organizar eventos, ativismo em termos gerais. É trabalho necessário, vale a pena, mas não é atividade que realmente estimule o intelecto e obrigue a pensar forte. Em relação a assuntos humanos, das duas uma: ou não compreendemos coisa alguma, ou só compreendemos superficialmente. É trabalho duro pesquisar informações, reunir, sim; é duro, mas não é intelectualmente desafiador. Faço, porque é necessário.

O trabalho ao qual dedicar a parte principal da vida é o trabalho que você continuaria a querer fazer mesmo que deixasse de ser pago. É trabalho inventado por necessidade, interesse e preocupações interiores, subjetivas.

Michael Kasenbacher: O filósofo Frithjof Bergmann diz que a maioria das pessoas não sabem que tipo de atividades realmente desejam ter. Chama a isso “miséria do desejo”. Entendo e parece-me bem verdade, quando converso com vários dos meus amigos. Você sempre soube o que queria fazer?

Noam Chomsky:Aí está um problema que nunca me apareceu: sempre desejei fazer muitas coisas. Também duvido de que essa “miséria do desejo” seja problema muito generalizado. Um marceneiro, por exemplo... Pessoalmente, não sou bom com ferramentas. Mas considere alguém capaz de construir objetos, de consertar coisas; os que conheço desejam realmente fazer o que fazem. Adoram fazer o que fazem: ‘se há problema, eu conserto.’ Ou o esforço físico – também pode ser muito gratificante. Se o seu trabalho é mandar, sim, pode ser difícil, se você for muito tímido, não gostar de mandar, ou se tem de mandar fazer coisas contra o seu interesse. Mas se você é pago para mandar fazer coisas ditadas pelo seu próprio desejo ou seus interesses, mandar pode ser excitante, interessante, prazeroso.

O que quero dizer é que há muita gente que procura o que fazer – é trabalho, claro. Jardinagem, por exemplo. Se você teve uma semana difícil, as crianças correm pela casa, sim, você deitar e dormir; mas será mais prazeroso se for trabalhar no jardim, ou construir alguma coisa, ou fazer ‘alguma coisa’.

Essa percepção é muito antiga, e não é invenção minha. Wilhelm von Humboldt, que é autor de alguns dos trabalhos mais interessantes sobre isso, escreveu que, se um artesão produz um belo objeto por encomenda, nós até admiramos a beleza do objeto, mas desprezamos o artesão que trabalha como ferramenta nas mãos de quem lhe faz encomendas e paga. Mas se o mesmo artesão cria o mesmo objeto apenas porque quis criá-lo, admiramos, além do objeto, também o artista; e o artista, nesse caso, sente-se realizado, o que é prazeroso.

É mais ou menos como aprender na escola – creio que todos já tivemos essa experiência: se se estuda exclusivamente para uma prova, claro, é ótimo passar de ano, mas, duas semanas depois tudo aquilo que ‘aprendemos’ estará esquecido. Mas se você pesquisa e estuda alguma coisa porque deseja realmente entender, você mesmo concebe os testes, você erra e refaz tudo, procura no lugar errado, mas não desiste de encontrar; e, ainda que não consiga chegar aonde desejava, o que você fez e tentou, isso, você não esquece tão facilmente.

Michael Kasenbacher: Então, você está dizendo que as pessoas, basicamente, sabem o que querem fazer?

Noam Chomsky: Sim, sob circunstâncias favoráveis. As crianças são naturalmente curiosas – querem saber sobre tudo, querem explorar tudo; na maioria das vezes, dão com a cabeça no chão. Então são postas em estruturas de disciplina, as coisas são organizadas para que façam umas coisas, não outras, de modo a que você aprenda umas coisas, não outras. Por isso tantas escolas são entediantes. Não significa que não haja escolas excitantes.

Até mais ou menos 12 anos, frequentei uma escola Deweyiana. Era ótima. Eu tinha vontade de ir para a escola, queria ficar lá. Não havia classes, nem provas para ‘passar de ano’. Cada aluno era orientado de modo a conseguir fazer o que tivesse vontade de fazer. Havia, claro, estrutura, mas, basicamente, o aluno podia seguir seus próprios interesses e preocupações e, mesmo assim, trabalhava com outros.

Pessoalmente, nunca nem tive ideia de que era um ótimo aluno, até chegar à universidade. Fui para um ginásio pré-universitário no qual todos eram avaliados e classificados, e era indispensável passar à universidade, portanto, havia exames de seleção. Na escola primária, de fato, eu “pulei” um ano, mas ninguém deu qualquer importância. A única coisa que eu sempre soube é que eu era o menor da classe. Mas não era grave nem importante.

No pré-universitário, tudo mudou completamente: você tinha de ser o primeiro da classe. O segundo lugar não interessava. É ambiente muito destrutivo – que empurra as pessoas para a situação na qual você realmente não sabe o que deseja fazer. Aconteceu comigo; no pré-universitário perdi completamente o interesse por estudar. Se se olha a grade de estudos, sim, tudo parecia interessante, grandes cursos...  Mas acabei por descobrir que o curso pré-universitário era um ginásio, para alunos mais velhos. Depois de um ano, eu só pensava em parar de estudar, não queria nem me aproximar da universidade. Minha vida acadêmica é uma sequência de acasos.

Ainda estava no pré, quando um dos professores da faculdade sugeriu que eu assistisse às aulas dele. Depois desse curso, comecei a fazer outros cursos. Mas não completei, até hoje, nenhum curso que me habilite a dar aulas em universidade. Por isso dou aulas no MIT, que não exige qualquer qualificação acadêmica além da qualificação no próprio Instituto.

O que quero dizer é que educação, ou é assim ou é sempre extremamente alienante. Vejo pelos meus netos ou os círculos nos quais vivem. São crianças que absolutamente não sabem o que querem fazer, então fumam maconha, ou bebem, ou enchem o dia arquitetando meios para escapar da escola ou outras atividades antissociais. Porque são criaturas cheias de energia, deixadas sem nenhuma atividade que realmente mobilize suas emoções, seu desejo e sua energia. Nos EUA é assim, não sei como é na Áustria, mas nos EUA, até o conceito de brincar mudou. Vejo, onde moro. Minha mulher e eu nos mudamos para cá, porque era bom para as crianças – menos tráfego, muitas árvores, as crianças podiam brincar na calçada. As crianças passavam o dia todo na rua, nas bicicletas, o que fosse. Hoje, as crianças não saem de casa. Dentro de casa, não saem de frente da tela, dos videogames, ou coisas dessas, sempre em atividades organizadas para elas: esportes organizados por adultos, coisas assim. A ideia de brincadeiras espontâneas, que as crianças organizavam, parece ter sumido ou, pelo menos, diminuiu muito. Há estudos sobre isso. Vi alguns, dos EUA e Inglaterra, e não sei se é verdade também em outros locais, mas a brincadeira infantil proposta pelas crianças, isso, mudou muito, com outras mudanças sociais pelas quais passa o mundo. Acho ruim, porque sem inventar, os instintos criativos não florescem. O que se aprende num jogo de rua, com tacos feitos com cabo de vassoura, não se aprende em torneios organizados da Liga Infantil, todos uniformizados...

Às vezes, é surreal. Lembro quando meu neto, dez anos, jogava baseball, em vários times pela cidade: onde houvesse jogo, lá estava ele. Até que, um dia, ele voltou para casa desconsolado, porque fora proibido de jogar... As novas regras “da cidade” obrigavam os times a manter jogadores “estáveis”, jogadores de um time, não podiam jogar nas outras equipes... Não sei se você conhece baseball, mas a coisa é simples: três jogadores fazem todo o serviço; o resto da equipe só completa o número mínimo. Pois as regras proibiam que uma equipe emprestasse a outra um atleta que só teria de ficar sentado lá, fazendo número.

O absurdo é total, mas é exatamente o que acontece hoje. Vale nas escolas, claro. A grande inovação educacional do governo Obama foi “nenhuma criança deixada para trás”. Nas escolas, nada significa além de professores treinados para treinar crianças para serem aprovadas em testes, e professores avaliados pelo número de “aprovações” que os alunos obtêm nos exames de seleção. Converso com muitos professores. Todos contam histórias semelhantes. Uma criança que se interesse por algo não previsto no “programa”, logo ouve o “conselho”: não pode ser, porque, assim, você não passará nos exames de seleção. De fato, é uma antieducação, é o contrário de educar.

Os EUA tiveram o primeiro sistema de educação em massa do mundo (muito antes da Europa). Mas, se você analisa o sistema aqui implantado no final do século 19, foi planejado para converter pequenos agricultores independentes em operários de fábrica perfeitamente disciplinados. Até hoje, grande parte da educação mantém-se nessa linha. Às vezes, é objetivo declarado.

Se você não conhece, dê uma olhada num livro intitulado The Crisis of Democracy [1] – publicação de uma “comissão trilateral” – nada além de liberais internacionalistas da Europa, Japão e EUA, a direita da elite intelectual. [2] Daí saiu todo o governo de Jimmy Carter. O livro manifestava a preocupação da direita liberal com o que acontecera nos anos 1960s. E, ora! O que acontecera nos anos 1960s era democrático demais, muito ativismo, jovens nas ruas, experimentando, testando novas ideias; o livro chama esse período de “tempo de confusões”.

A “confusão”, de fato, é que, ali, os EUA estavam sendo civilizados: dali saíram leis de direitos civis, de igualdade para as mulheres, de atenção ao meio ambiente, os movimentos pacifistas, antiguerra, antiviolência.

Os EUA se tornaram país mais civilizado, mas o processo preocupou muita gente, porque as pessoas estavam conseguindo escapar ao controle. Tudo fora feito para os norte-americanos sermos gente passiva e apática, que faz o que é mandada fazer, que aceita ordens dos homens e mulheres sérios que mandam no país. É a ideologia das elites, em todo o espectro político: as pessoas são estúpidas demais, ignorantes demais; então, para protegê-las delas mesmas... nós temos de controlá-las. Essa ideologia, precisamente, estava ruindo nos anos 60s.

Aquela “comissão trilateral”, então, publicou o tal livro, para tentar induzir o que foi chamado de “democracia moderada” – empurrar as pessoas outra vez para a obediência e a passividade, para que não criassem dificuldades para o poder do estado, etc. e tal.

O que mais preocupava a tal comissão eram os mais jovens – as instituições responsáveis pela doutrinação dos mais jovens (é a expressão que se usa no relatório); falavam, claro, de escolas, universidades, igrejas... Que não estavam trabalhando corretamente; por isso, os jovens não estavam sendo adequadamente doutrinados. E estavam sentindo-se livres para ter ideias, tomar iniciativas, cuidar do que mais lhes interessasse. Não podia ser. Era necessário reassumir o controle.

Se se analisa o que aconteceu depois de 1975, várias medidas foram implantadas para impor disciplina. Um exemplo simples: o aumento nas taxas universitárias – vale mais para os EUA do que noutros países, mas, nos EUA, essas taxas já chegam à estratosfera. Os preços, em parte, restringem a uma só classe o acesso à universidade, mas, mais que isso, impõem aos jovens o peso de uma dívida gigantesca, impagável, sem estrita disciplina, que empurre o jovem para uma “carreira”. Se você sai da universidade endividado até o pescoço, você não é livre para fazer o que queira fazer. Você talvez sonhasse em trabalhar como advogado de uma organização popular... Mas você será obrigado a trabalhar para uma grande empresa de advocacia privada. É grave. E há muitas outras coisas assemelhadas.

A guerra às drogas foi inventada, principalmente, pela mesma razão: a guerra às drogas também é um sistema de disciplinamento, um modo de assegurar que as pessoas sejam mantidas sob controle. Não tenho dúvidas de que tenha sido conscientemente concebida para essa finalidade... Por isso é como é.

A ideia da liberdade é muito assustadora para os que gozem de qualquer grau de privilégio e poder. Acho que se vê isso também no sistema educacional. E nos locais de trabalho. Há um estudo muito interessante, de um pesquisador que, infelizmente, não pôde continuar seu trabalho, porque não foi recontratado, que examinou muito atentamente o desenvolvimento de máquinas controladas por computador – que começaram a ser desenvolvidas nos anos 1950s, em projeto para os militares, os quais, de fato, desenvolveram protótipos de tudo que temos hoje...

Michael Kasenbacher: Como se chama esse pesquisador?

Noam Chomsky: David Noble. Escreveu alguns livros muito bons. Um deles é Forces of Production.

O que Noble descobriu é que, quando esses métodos e sistemas foram concebidos, havia uma “bifurcação”, uma escolha estratégica decisiva, a ser feita: se os novos métodos e sistemas seriam desenhados (i) para serem operados por maquinistas-operadores treinados e competentes, ou se, muito diferente disso, (ii) os novos métodos e sistemas seriam desenhados para serem controlados no plano da administração, da gestão.

Escolheram a segunda via, apesar de não ser a mais lucrativa. Fizeram-se estudos que demonstraram que essa segunda via não geraria maiores lucros; mas, mais importante que o lucro, nesse caso, era manter os trabalhadores sob controle. Ninguém absolutamente tinha qualquer interesse em treinar operadores para administrar o processo industrial. Uma das razões, óbvia, é que, com operadores insubstituíveis, rapidamente surgiria a ideia – que nada tem de nova – de descartar os proprietários... que nada fazem e só atrapalham. Essa ideia assustadora levou, em boa parte, ao New Deal.

As medidas do New Deal, nos EUA, surgiram, em boa parte, da evidência de que as greves já estavam assumindo feições de manifestações de cidadãos; os trabalhadores cruzavam os braços, ou famílias inteiras de trabalhadores desempregados sentavam-se na rua, à entrada das fábricas (ing. sit-ins e sit-downs) e, assim, ajudavam os grevistas. Grevistas de braços cruzados estão sempre a um passo de alguém dizer: “Por que estamos aqui fora, de braços cruzados? Vamos entrar lá e controlar essa fábrica”.

Desde o século 19 há muita literatura operária, hoje, também, vasta literatura operária sobre essas ideias. A revolução industrial nos EUA começou bem perto daqui. Os operários opuseram-se muito fortemente ao sistema industrial; diziam que o sistema industrial lhes roubaria a liberdade, a independência, todos os seus direitos como membros de uma república livre, que a revolução industrial estava destruindo a cultura operária. Diziam que o melhor a fazer era os próprios operários ocuparem as fábricas, os moinhos, e comandá-los eles mesmos.

Aqui mesmo nos EUA, no século 19, sem qualquer influência do marxismo ou de qualquer corrente de ideias europeias, já se sabia que o trabalho assalariado é uma escravidão – a única diferença, é que é escravidão temporária. Essa frase era tão conhecida e repetida, que foi um dos slogans do Partido Republicano. E foi a bandeira sob a qual os trabalhadores nortistas lutaram a Guerra Civil: que a escravidão assalariada era tão nefanda quanto a escravidão sem salário. Em resumo: tornou-se absolutamente necessário arrancar essas ideias da cabeça das pessoas.

Acho que essas ideias não estão enterradas muito fundo. Acho que podem voltar à tona a qualquer momento. Podem volta a tona, de fato, amanhã ou depois: Obama é praticamente proprietário da indústria automobilística, está fechando fábricas por todo o país, ao mesmo tempo em que seu governo não pára de assinar contratos com Espanha e França para construir trens de alta tecnologia, setor no qual os EUA estão muito atrasados – e usando dinheiro de incentivos federais para pagar as novas fábricas. Mais dia menos dia, os trabalhadores de Detroit dar-se-ão conta de que... “nós sabemos construir essas coisas. Vamos assumir o controle da fábrica, e fabricamos, nós mesmos”. Pode acontecer um renascimento operário-industrial aqui mesmo. Nada assusta mais os bancos e os gerentes administrativos, do que essa possibilidade.

Michael Kasenbacher: Como é sua rotina de trabalho? Como consegue trabalhar tanto?

Noam Chomsky: Minha mulher morreu há alguns anos e, desde então, só trabalho. Vejo meus filhos, vez ou outra, mas é só. Sempre trabalhei muito, mas, antes, ainda tinha alguma vida pessoal fora de casa. Agora, não mais. Só trabalho.

Michael Kasenbacher: Quantas horas você dorme por noite?

Noam Chomsky: Tento dormir, quando consigo, seis, sete horas por noite. Minha vida é completamente louca: muitas entrevistas, muitas conferências, muitas reuniões. Gostaria de ter mais tempo para trabalhar. Mas não tenho tempo livre... Nunca vou ao cinema, não como fora de casa. Não é vida saudável. Não recomendo a ninguém.



Notas dos tradutores

[1]  CROZIER, Michel; HUNTINGTON, Samuel P.; WATANUKI, Joji. The Crisis of Democracy: Report on the Governability of Democracies to the Trilateral Commission

[2]  Sobre o relatório:

Em 1975, a Comissão Trilateral publicou o seu relatório sobre a crise da democracia, da autoria de Crozier, Huntington e Watanuki. Segundo estes, a democracia estava, de fato, em crise. Não, porém, por haver democracia a menos, mas, pelo contrário, por haver democracia a mais.

As democracias estavam em crise porque se encontravam sobrecarregadas com direitos e reivindicações e porque o contrato social, em vez de excluir, era demasiado inclusivo, devido precisamente às pressões sobre ele exercidas pelos atores sociais históricos atacados pelos estudantes (os partidos operários e os sindicatos). Com esta análise e o poder social por detrás dela, a crise do governo baseado no consenso (crise de legitimidade) transformou-se numa crise do governo “tout court”, e, com isto, a crise de legitimidade transformou-se em crise de governabilidade.

A natureza da contestação política viu-se, desta forma, profundamente alterada. O foco, antes centrado na incapacidade do Estado para fazer justiça aos novos movimentos sociais e às suas exigências, passou a centrar-se na necessidade de conter e controlar as reivindicações da sociedade relativamente ao Estado. Em breve, o diagnóstico da crise enquanto crise de governabilidade passou a ser dominante, o mesmo se verificando com a terapia política proposta pela Comissão Trilateral: do Estado central para a devolução/descentralização; do político para o técnico; da participação popular para sistemas de peritos; do público para o privado; do Estado para o mercado (Crozier et al., 1975).

(Boaventura de Sousa Santos, A crítica da governação neoliberal: o Fórum Social Mundial como política e legalidade  cosmopolita subalterna, Revista Crítica de Ciências Sociais n. 72, out. 2005, p. 7-44)


Outra vez a Comuna de Paris


13/11/2012, Juliet Jacques, NewStateman (com intervenções)
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

Barricadas frente à Madeleine, na Comuna de Paris. Imagem via WikiCommon
Epígrafe acrescentada pelo pessoal da Vila Vudu:
Tese 8: “Os teóricos que reconstituem a história deste movimento, colocando-se do ponto de vista omnisciente de Deus que caracterizava o romance clássico, mostram sem dificuldade que a Comuna estaria objetivamente condenada, que não teria superação possível. Mas para os que viveram o acontecimento, a superação estava ali”.
Tese 13: “A guerra social de que a Comuna constitui um momento continua sempre (por muito que tenham mudado algumas condições superficiais). Sobre o trabalho de “tornar conscientes as tendências inconscientes da Comuna” (Engels) ainda não foi dita a última palavra”.
Guy Debord em:14 Teses sobre a Comuna de Paris”, Internationale Situationiste, n. 7, Abril de 1962


Émile Zola
Apesar do curto período de existência, de março a maio de 1871, a Comuna de Paris inspirou um romance de Émile Zola (La Débâcle, 1892), filmes de Grigori Kozintsev e Peter Watkins, e várias análises propostas por pensadores socialistas, a começar por A Guerra Civil na França, de Karl Marx, sobre o que o curto sucesso e o estrondoso fracasso da Comuna têm a ensinar aos muitos, sobre como reorganizar a sociedade.

De fato, a única correção que Marx e Engels fizeram ao Manifesto Comunista brotou de lição da Comuna, a qual, escreveram eles, demostrara que “a classe trabalhadora não pode apenas ocupar a máquina já existente do Estado para usá-la para seus próprios objetivos”.

Prosper-Olivier Lissagaray
A narrativa da Comuna tornou-se profundamente ideologizada, depois que as tropas da 3ª República francesa a esmagaram, ainda furiosas pela derrota da França na guerra franco-prussiana e pelo acordo punitivo de janeiro de 1871.

Agora, já praticamente em 2013, a editora Verso volta a editar a seminal História da Comuna de Paris (em português)  do communard Prosper-Olivier Lissagaray (1838-1901), publicada em francês pela primeira vez em 1876, com Lissagaray ainda exilado na Bélgica, e traduzida ao inglês por sua mulher, Eleonora Marx [filha de Marx].

Com essa história detalhadíssima, Lissagaray visava a combater “as mentiras e calúnias burguesas” que se seguiram à supressão da Comuna, para extrair lições e demarcar os fatos para historiadores futuros.

Eleonora Marx
O que os leitores contemporâneos aprendem da história de Lissagaray?

A palavra “comuna” sugere “comunismo”, mas já era usada para designar o conselho da cidade, como autoridade local autônoma. A denominação tem raízes na Revolução Francesa, e já houvera uma comuna de Paris entre 1789 e 1795, a qual, sob controle dos jacobinos, recusara-se a obedecer ordens do governo central depois de 1792. A Comuna de 1871 aconteceu depois de Paris ter sido sitiada pelos prussianos, cerco que começou em setembro de 1870, depois do colapso do Segundo Império de Napoleão III Preparando para o ataque iminente, a Guarda Nacional Francesa foi aberta para a classe trabalhadora parisiense, que elegeu seus próprios líderes do Comitê Central da Guarda. Muitos desses líderes eram radicais, republicanos ou socialistas jacobinos, sobretudo no norte, os mesmos que, adiante, tornaram-se líderes da Comuna.

Essa guarda parisiense destinava-se a defender a cidade contra a invasão prussiana e pela restauração da monarquia, sobretudo depois que, nas eleições para a Assembleia Nacional, em fevereiro de 1871, os monarquistas perderam a maioria. Cada dia mais radical, a Guarda Nacional parisiense acumulou armamento pesado; até que, no dia 18/3/1871, Adolphe Thiers, eleito recentemente “Autoridade Executiva” do novo governo, e temeroso das consequências de a municipalidade em Paris estar tão pesadamente armada, ordenou que os soldados confiscassem toda a munição que havia em Montmartre. Os parisienses revoltaram-se; dois generais foram assassinados; Thiers recolheu-se, com todo o gabinete administrativo, para o Palácio de Versailles, deixando um vácuo de poder, que foi rapidamente preenchido pelo Comitê Central da Guarda Nacional parisiense.

A Comuna nasceu sitiada, o que tornou absolutamente urgente e necessário distribuir comida, dinheiro e armas entre os communards; nasceu também constituída de trabalhadores; e a constituição operária do Comitê Central da Comuna de Paris tornou-o excepcionalmente interessante para Marx e seus seguidores. Embora separasse estado e igreja; tenha cancelado aluguéis a pagar durante o sítio; tenha abolido o trabalho noturno nas padarias e todos os tipos de juros sobre dívidas; e admitisse que os operários ocupassem lojas e fábricas abandonadas, a Comuna nunca foi formalmente socialista – as ideias de Marx ainda não haviam penetrado na esquerda francesa; e, em 1871, os teóricos utopistas, como Charles Fourier, já haviam saído de moda.

Louis-Auguste Blanqui
Louis-Auguste Blanqui – que tentara assumir o poder em outubro de 1870; que viu seu projeto sobreviver apenas 12 horas; e que foi preso um dia antes de as tropas chegarem a Montmartre para desarmar a guarnição local – era, então, ainda, o pensador mais influente. Por isso os Communards fizeram várias tentativas para libertá-lo, tentando uma troca de prisioneiros: Blanqui, em troca de padres que os Communards tomavam como reféns. Thiers rejeitou todas as propostas.

Mas eram poucos, entre os Communards, os que partilhavam o desejo blanquista de implantar uma ditadura do proletariado; a maioria tendia a eleger membros para o Comitê e o novo Conselho Executivo. Para Lissagaray, o principal problema parecia ser a falta de ideologia e de organização. As eleições elegeram radicais, moderados e conservadores, e não havia qualquer linha partidária por trás da atividade da Comuna; os líderes consumiam tempo precioso em infindáveis discussões, quando o mais urgente seria agir contra a mobilização dos soldados de Thiers em Versailles.

Lissagaray aponta, logo à primeira página, para a divisão insuperável entre a esquerda radical e a esquerda parlamentar (a esquerda parlamentar já aliada, de fato, a Thiers). A desunião tornar-se-ia afinal pública, entre o Comitê Central e o Conselho Executivo da Comuna; separação provocada, pelo menos em parte, por o Comitê não se decidir a assumir o controle sobre Banco da França.

“Naqueles cofres (...) há 4,6 milhões de francos” – Lissagaray lamenta – “mas as chaves estão em Versailles; e, dada a tendência do movimento para conciliar-se com os prefeitos [delegados Varlin e Jourde, do Comitê Central da Comuna], ninguém se atreve a arrombar os ferrolhos e fechaduras”.

Essa decisão tornou-se a mais amplamente criticada em todas as histórias que se escreveram depois. Foi bem claramente a decisão, considerada isoladamente, que Lissagaray mais profundamente lamenta. Escreveu que o governo da Comuna optou por “submeter-se ao Banco da França”, opção que potencializou o fracasso mais amplo de só fazer aprovar “legislação insignificante (...), sem plano militar, sem programa (...), deixando-se arrastar em discussões em que nada se decide e a partir das quais nada se faz”.

O caos assim gerado – que se percebe no tom de absoluta urgência que há no texto de Lissagaray e, até, na dificuldade que o leitor encontrará, ainda hoje, para compreender e acompanhar as rápidas modificações na estrutura da Comuna – levou à ditadura.

Em pouco tempo, um novo Comitê de Segurança Pública sobrepujou o Conselho, que cometeu o erro de não admitir que o povo participasse de suas reuniões, o que gerou a imagem de que seria paranoico e antidemocrático; e assumiu a responsabilidade pela defesa de Paris.

Daí em diante, a Comuna ficou à mercê dos líderes militares, cuja negligência e insuficiente competência tática – sobretudo ao instalar barricadas, já tornadas inúteis depois que o Barão Haussmann reformara Paris nos anos 1860s – a condenaram à derrota.

A retaliação foi violenta: 3.000 parisienses mortos ou feridos nas batalhas de maio de 1871; e Lissagaray estima que cerca de 20 mil morreram até meados de junho – três mil a mais do que admitidos pela justiça militar do governo. Muitos mais foram presos, na França e nas colônias; só foram anistiados em julho de 1880.

Guy Debord
Os Situacionistas Guy Debord, Attila Kotányi e Raoul Vaneigem, em suas Teses sobre a Comuna de Paris  publicadas em março de 1962, procuraram separar a experiência da Comuna, de tentativas anteriores, para inferir dela uma teoria de como poderia funcionar uma ditadura do proletariado.

Escreveram que “A Comuna de Paris foi vencida menos pela força das armas que pela força do hábito. O exemplo prático mais escandaloso foi a recusa em recorrer ao canhão para tomar o Banco de França, quando o dinheiro fazia tanta falta. Enquanto durou o poder da Comuna, a banca permaneceu como um enclave em Paris, defendida por algumas espingardas e pelo mito da propriedade e do roubo. Os restantes hábitos ideológicos foram desastrosos sob todos os pontos de vista (a ressurreição do jacobinismo, a estratégia derrotista das barricadas em memória de 48, etc.)” (Tese n. 8).

Escreveram que “Há que retomar o estudo do movimento operário clássico de uma forma desenfeudada e em primeiro lugar desenfeudada das diversas classes de herdeiros políticos ou pseudo-teóricos, pois não possuem mais que a herança do seu fracasso. Os êxitos aparentes deste movimento são os seus fracassos fundamentais (o reformismo ou a instalação no poder de uma burocracia estatal) e os seus fracassos (a Comuna ou a revolta das Astúrias) são até agora os seus êxitos abertos, para nós e para o futuro”. (Tese 1).

Talvez cada geração, posta ante diferentes crises do capitalismo, que as gerações anteriores não conheceram, identifique diferentes lições na Comuna (...) 

Slavoj Žižek: “Nunca precisamos tanto, como hoje, de teoria inútil”


29/12/2012, Slavoj Žižek, Salon [entrevista a Katie Engelhart] (excertos)
Traduzida pelo pessoal da Vila Vudu

Recadinho da Vila Vudu: Excluímos, nessa tradução, além das opiniões da jornalista entrevistadora que a ninguém aqui interessaram, também outros parágrafos, em que a jornalista entrevistadora dedica-se empenhadamente em tentar fazer seu entrevistado – muitíssimo maior e mais interessante que a jornalista entrevistadora – caber, a qualquer custo, nos limites estreitíssimos das perguntas. Nós aqui DESTESTAMOS jornalistas. Há algo de obscenamente pervertido no jornalismo empresarial-comercial. É a perversão obscena que há no jornalismo empresarial-comercial, que o faz ser, ao mesmo tempo, tão furiosamente defendido pelos liberais perversos e tão furiosamente detestado pelos comunistas. Antes de construirmos o mundo dos muitos, teremos de dar cabo de todo o jornalismo empresarial-comercial: da imprensa-empresa e dos jornalistas formados pela e para a imprensa-empresa.

Slavoj Žižek

(...) Salon entrevistou Žižek pelo Skype. (...)

Salon: Recentemente a revista Foreign Policy incluiu seu nome entre os Pensadores Globais Top 100 de 2012.

Žižek: Sim, mas me puseram no fundo do topo! [1]

Salon: Você é o número 92. Acha que merece estar naquela lista?

Žižek: Ah, não, você não me pega nessa, nem que me torture! Sei que é mais polido dizer que não. Mas... a primeira da lista não é aquela senhora de Myanmar? Sempre esqueço o nome dela. Como é mesmo?

Salon: Aung San Suu Kyi?

Žižek: É, essa! Nada contra ela, mas... explique-me, por favor: em que sentido aquela senhora seria filósofa ou intelectual?

Salon: Bom... É uma lista de “pensadores”, não de “filósofos”.

Žižek: Sim, sim, mas... em que sentido ela seria pensadora? Quer democracia no Myanmar. OK, é ótimo, muito bom. Mas não se pode simplesmente aceitar que um ideal nunca passe de um ideal. Oh, a democracia! Todos têm orgasmos com a democracia. Então, ok, democracia, algum dia, para todo mundo.

Isso não é pensar. O pensamento começa quando você propõe questões realmente difíceis. Por exemplo: o processo democrático decide, realmente, o quê? (...)

Sabe... Na minha vida privada sou sujeito extremamente deprimido. Olhe onde estou agora. Olhe em volta. Estou em Paris.

[Žižek levanta o laptop para mostrar o quarto de hotel, poucos móveis, uma cama simples e uma janela pequena.]

Está vendo? Estou num quarto pequeno. Fugi da minha casa por uma semana, porque precisava sair de lá. Aqui, só saio do quarto uma, às vezes duas vezes por dia, só para comer. Exceto você, agora, e um amigo com quem falo pelo Skype, não troco uma palavra com nenhum ser vivo há quase uma semana. E gosto tanto disso!

Esse, por falar nisso, é o motivo pelo qual acho tão incrivelmente chatos os reality shows; porque as pessoas não são aquilo. Estão mostrando uma imagem delas mesmas, o que é tão insuportavelmente chato, tedioso, estúpido. Não entendo por que tanta gente assiste àquilo. Acho que deve ser proibido. Acho também que Facebook e Twitter também devem ser proibidos. Você não acha? (...)

As únicas fotos que tenho de mim mesmo são as fotos dos documentos, no meu passaporte. Mas, calma! Não significa que eu me despreze completamente. Não. Gosto do meu trabalho publicado. Vivo para aquele trabalho – de fato, vivo para a teoria. Não me envergonho de viver para a teoria. Detesto essa atitude esquerdista humanitária: As pessoas estão com fome! Criancinhas na África! Num mundo desses, quem precisa de teoria? Nada disso! Digo que hoje precisamos muito de teoria inútil, mais do jamais antes na história do mundo.

(...) Quem me conhece sabe que sou pessoa bem organizada. Sou extremamente organizado. Tudo é planejado, até os minutos. Por isso, consigo produzir muito. Digo: em quantidade; não falei de qualidade.

Sou muito bem treinado. Trabalho em qualquer lugar. Aprendi no exército.

Pareço meio atirado, desleixado, eu sei. Porque acho escandaloso comprar calças, camisas, jaquetas, paletós para mim. Minhas camisetas são presentes que ganho de colóquios ou manifestações de que participo. Minhas meias são as que distribuem em voos internacionais. Aqui, então, praticamente esqueço do que visto.

Mas meu apartamento tem de estar limpo; sou maníaco por organização e controle. Por isso, precisamente, fiquei tão desapontado quando prestei serviço militar. Não que eu fosse filósofo trapalhão, incapaz de viver vida disciplinada. O choque foi ver que o velho exército iugoslavo era, sob a aparência de ordem e disciplina, uma sociedade caótica na qual nada dava certo e nada funcionava. Fiquei profundamente, muito profundamente decepcionado com o exército, quando descobri que era tão caótico.

Meu ideal seria viver num monastério.

Salon: (...)  Você disse ao Guardian, ano passado [2]: “Sou filósofo, não profeta”. Mesmo assim, seus seguidores são crentes fiéis. Muitos o cultuam como profeta. Por quê?

Žižek: Não sei. Sou ambíguo, quanto a isso. Por um lado, volto a um marxismo mais clássico, do tipo “Isso não pode durar! A loucura é geral! A hora do acerto de contas vai chegar, e blá blá blá”.

Mas também odeio toda essa conversa do politicamente correto, essa merda de estudos culturais e tal e tal. Se alguém me fala de “pós-colonialismo”, respondo “Foda-se o pós-colonialismo!” Pós-colonialismo é invenção de uns riquinhos, na Índia, que perceberam que poderiam fazer carreira nas universidades top do ocidente, jogando com a culpa dos liberais brancos.

Salon: Você então oferece um respiro ao pessoal de 20 e poucos anos, que quer fugir dos frutos do pós-modernismo: o politicamente-correto, estudos de gênero, etc.?

Žižek: Isso, isso! Muito bom! Gostei!

Mas... também há algo de megalomania em mim. Quase me concebo, eu mesmo, como uma figura de Cristo. OK! Me matem! Estou pronto para o sacrifício. Morro, mas a causa permanece! Mais ou menos isso...

Mas, paradoxalmente, detesto aparições públicas. Por isso, precisamente, deixei quase completamente de dar aulas. Para mim, nada pode ser pior que o contato com estudantes. Gosto de universidades sem alunos. E odeio, muito especialmente, os alunos norte-americanos. Eles acham que você lhes deve alguma coisa. Cercam você... Só trabalho no horário obrigatório!

Sim, sim, nisso sou completamente europeu – especificamente: sou pela tradição autoritária alemã. A Inglaterra já está corrompida. Na Inglaterra, os alunos pensam que podem parar você na rua e perguntar qualquer coisa. Acho isso repulsivo.

Friedrich Hegel
Mas em outros aspectos... admiro muito os EUA e o Canadá. Hoje, em vários sentidos, são melhores que a Europa. A França e a Alemanha, por exemplo, estão hoje em situação muito baixa, intelectualmente – a Alemanha, sobretudo. Absolutamente nada acontece de interessante, na Alemanha. Os EUA e o Canadá, surpreendentemente, estão intelectualmente vivos. Dou-lhe um exemplo: estudos hegelianos. Europeu que queira entender Hegel, tem de ir para Toronto, Chicago ou Pittsburgh.

Salon: O que Hegel diria da popularidade do filósofo Žižek?

Žižek: Não seria problema, para ele. Hegel até escreveu – acho que no fim da Fenomenologia – que se, como filósofo, você realmente articula o espírito do tempo, o resultado é popularidade ... mesmo que as pessoas não entendam tudo o que você diz. As pessoas de algum modo sentem que o espírito do tempo foi articulado... Essa é uma bela questão dialética: como é que as pessoas sentem isso?

Salon: Quando você escreve os livros de popularização, dos quais diz que não gosta [3] quem você imagina que seja seu leitor?

Žižek: Não, não! Pergunta proibida! Jamais me pergunto tal coisa. Pouco me importa! Outra proibição absoluta é que jamais me autoanaliso. A ideia de me autopsicanalisar é repugnante. Nisso, sou uma espécie de pessimista católico conservador. Acho que, se olhamos muito fundo dentro de nós mesmo, descobrimos montes de merda. Melhor não saber. (...)

Laura Kipnis
Odeio jornalistas e documentaristas, gente que faz filmes da minha vida. Acho que há alguma coisa de obsceno nos filmes que fizeram sobre mim. Claro, claro... Aí, você me pegou: se eu fosse realmente indiferente àqueles filmes, porque mentiria como sempre minto, quando filmam a minha vida? É. Aí há um problema.... (...)

Falando de amor e sobre a vida das pessoas, há um livro que eu realmente detesto: Against Love [Contra o Amor], de Laura Kipnis. [4] A ideia dela é que a última defesa da ordem burguesa é “Nada de sexo fora do amor”. É aquela conversa de Judith Butler: reconstrução, identidade e blá, blá, blá...

Digo que é exatamente o contrário disso. Hoje, os envolvimentos de amor são considerados quase patológicos! Acho que há algo subversivo em declarar: esse é o homem ou a mulher no qual aposto tudo. Por isso, nunca fui capaz de transas de uma noite. Sempre preciso de uma perspectiva de eternidade.

Judith Butler 
Salon: Você parece usar a filósofa feminista Judith Butler como uma espécie de antítese. Já a mencionou várias vezes. É como um espantalho, para você?

Žižek: É. Mas pessoalmente somos grandes amigos. Judith, uma vez, me disse “Slavoj, você deve me achar bem mesquinha.” Respondi: “De jeito nenhum! Alguém que goste tanto de Hegel, como você, não pode ser completamente idiota”.

Salon: Com que figuras históricas você se identifica?

Žižek: Robespierre. Um pouco, talvez, com Lênin.

Salon: Lênin? Trotsky não?

Žižek: Em 1918-19, Trotsky era mais duro que Stálin. E gosto dessa dureza, nele. Mas jamais o perdoarei por ter fodido tudo em meados dos anos 20s. Foi estúpido, arrogante. Sabe o que ele fazia? Chegava às reuniões do Partido com clássicos franceses debaixo do braço, Flaubert, Stendhal... Como se dissesse aos outros: “Fodam-se! Eu sou civilizado”.

Salon: Você escreve que temos de pensar mais e agir menos. Mas, no fim, identifica-se com Lênin, conhecido homem de ação.

Žižek: Não, não é bem assim! Calma. Lênin é sempre o cara certo. Quando tudo deu errado em 1914, o que fez Lênin? Mudou-se para a Suíça e começou a estudar Hegel.



Notas dos tradutores

[1]  A lista está em: 2012's Global Marketplace of Ideas and the Thinkers Who Make Them. A seleção dos “pensadores” é ridícula: Paul Ryan, que jamais pensou coisa alguma, aparece em 8º lugar; o governo de Israel lá aparece, nos postos 12º a 15º (ministro da Defesa, primeiro-ministro, ex-diretores do serviço secreto); Mario Draghi, Christine Lagarde, também são “pensadores” listados; Dick Cheney (aliás, dois ‘'pensadores'’ da mesma família, marido & mulher); 88º é Habermas.

[2]  15/7/2012, The Guardian, Stuart Jeffries em: A life in writing: Slavoj Žižek

[3] ZIZEK, Slavoj, 2011. “O ano em que sonhamos perigosamente”. São Paulo: Boitempo Editorial, 2012.

[4]  A revista (não)VEJA, ao que parece, adorou o livro. Deu-lhe ampla cobertura ainda no pré-lançamento da edição brasileira, em maio de 2004. Está em: Entrevista: Laura Kipnis - Contra o amor

_______________________

Leia mais de/sobre Slavoj Žižek:
e leia muito mais inserindo a palavra Slavoj na barra de pesquisa do blog redecastorphoto