domingo, 27 de novembro de 2011

A praça sem chefes, ordens, capitães e hierarquias


Eduardo Febbro

27/11/2011, Eduardo Febbro, (do Cairo) Pagina/12, Buenos Aires
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

Os guerreiros da Praça Tahrir não portam armas. Óculos plásticos de natação, para proteger os olhos contra as balas de borracha da Polícia, lenços, camisetas ou qualquer tipo de pano para proteger boca e nariz contra os gases lacrimogêneos letais da Polícia, roupas e sapatos leves, para correr, e uma expressão que se vê em todos os rostos de uma geração de guerreiros democráticos que têm entre 20 e 30 anos e que já acumularam, até aqui a experiência de duas revoluções. São unidos por uma fraternidade a toda prova e coragem suficiente para desafiar qualquer soldado ou policial profissional. 

Abdel Gamal, Mohammed, Ali e Omar não têm as mesmas ideias políticas, não torcem pelo mesmo time de futebol, não vivem no mesmo bairro, não frequentam a mesma universidade, não se incluem no mesmo estrato social e sequer são todos igualmente crentes ou praticantes religiosos. Só os une a decisão de defender a Praça Tahrir, uma mistura combativa de jovens laicos do Movimento 6 de Abril, muitos jovens dos bairros mais pobres, de universidades caras, islâmicos, burgueses urbanos muito impregnados pelas ideologias do dia, e torcidas organizadas de futebol, das muitas “barras pesadas” que surgiram no Egito há dez anos.

Abdel Gamal explica: “Estamos unidos pela luta. Aqui não há chefes nem hierarquia, nem ordens, nem capitão, nada disso. Nosso inimigo comum é a Polícia, que é o governo. Desde a revolução de janeiro, até hoje, nos unimos em todos os momentos de perigo extremo”.

Os guerreiros da Praça Tahrir 

Tahrir nada teme. As potentes granadas de gases lacrimogêneos disparadas pela Polícia são carregadas com um tipo de gás letal que todas as ONGs internacionais já denunciaram, mas os guerreiros da Praça Tahrir correm entre a fumaça como se nada houvesse. “Já estamos acostumados com os cassetetes, as balas de borracha, a correria pelas ruas e a fumaça. Nada disso nos assusta – diz Ali. Os grupos que protegem a praça movem-se independentemente uns dos outros, mas todos com a mesma função: impedir que a Polícia os desaloje à força. “Esse é o espaço de nossa revolução. Enquanto ficarmos aqui, a revolução sobreviverá” – diz Abdel Gamal. Ali el Sharif forma, com outros rapazes, o núcleo mais aguerrido, que estava na linha de frente durante o brutal combate que aconteceu na rua Mohammed Mahmud. Essa rua desemboca no centro da Praça Tahrir e leva ao Ministério do Interior, prédio oficial mais odiado pelos revolucionários, porque representa o pior do antigo regime, que ainda luta para sobreviver. Naquela rua, Ali El Sharif e seu grupo combateram as batalhas mais sangrentas contra as unidades antitumultos da Amn al Merkazi, a Polícia da Segurança Central.

Ali el Sharif e Kamel Fatah não são membros da Fraternidade Muçulmana, nem do Movimento 6 de Abril: são “ultra”, quer dizer, são membros de torcidas organizadas do Clube Zamalek SC: detestam a Polícia, cuja brutalidade nada tem de novidade para eles; e detestam o sistema, cuja corrupção e desigualdade gerada pela corrupção também conhecem bem. Estão habituados a enfrentar a Polícia nas ruas, depois das partidas de futebol, e são especialistas na arte de pular muros, jogar pedras, resistir aos gases lacrimogêneos e caminhar diretamente contra unidades policiais altamente treinadas.

“Sem a experiência das torcidas, duvido que tivéssemos podido resistir por tanto tempo” – reconhece Abdel Gamal. Abdel estuda psicologia numa prestigiosa universidade do Cairo, mas, na praça, não há o que diferencie Ali e Kamel. “Lutamos contra o totalitarismo, o sistema corrupto, a polícia secreta, a violência, a falta de informação confiável e de liberdade. Isso é coisa que se pode ver em qualquer lugar, em qualquer parte da cidade, tanto nos estádios de futebol quanto nos bairros mais acomodados.” 

A repressão do regime de Mubarak deu às torcidas organizadas no Egito papel muito mais político do que se associa a elas na América Latina. A Polícia de Mubarak sempre os atacou com brutalidade, e eles se organizaram, até criar estruturas perfeitamente coordenadas, em cujo seio nutriu-se a ideia de resistir à Polícia e aos quadros do partido mubarakista, o PND, Partido Nacional Democrático. Tahrir uniu-os numa fraternidade superior a times de futebol e classes sociais. Kamel Fatah daria a vida pelo Clube Zamalek SC; Ashraf daria a sua pelo Al Ahly Sporting Club. Os dois têm 23 anos. São, de fato, mestres consumados nas táticas de guerrilha urbana. Acumulam experiência que só eles têm, quando se trata de unir-se para enfrentar a polícia, ou dividir-se em colunas para contornar os batalhões da repressão e golpeá-los pela retaguarda, incendiando veículos policiais. Os outros jovens, mais politizados, que floresceram com a luta social de apoio às greves de 6 de abril de 2008 – que dão nome ao atual Movimento 6 de Abril – respeitam-nos, como heróis.

“Eles foram atores determinantes da revolução de janeiro. Dia 25 de janeiro, sem que ninguém os convocasse e sem que houvesse ação combinada antes, começaram a vir para a Praça Tahrir. E daqui não saíram” – relembra Tamer, advogado recém formado. O Egito e o mundo, através da televisão, descobriram esses jovens especialistas na luta direta e na complexa logística indispensável para ocupar e defender a ocupação de espaços urbanos. A capacidade de mobilização das torcidas organizadas no Egito impressiona pela agilidade e pela quantidade. A três principais torcidas organizadas egípcias são os Ahlawy, os “Cavaleiros Brancos” e os “Dragões Azuis”; são dezenas de milhares de pessoas. O poder que tentou infiltrar-se entre eles para manipulá-los e convertê-los em lacaios fez deles o seu inimigo mais dedicado.

Nos momentos de tranquilidade, os guerreiros de Tahrir são como crianças: fazem jogos de rua, partidas de futebol, conversam, trocam projetos e sonhos, cantam seus cantos dos campos de futebol, gritam palavras de ordem contra o regime e a polícia, ou versos da já célebre “Sout al Horeya” [A Voz da Liberdade (com legendas em inglês)]. Assista:


A canção foi gravada em Tahrir [os autores dizem, no vídeo: “Fizemos a música ali, na Praça. No dia seguinte gravamos, no estúdio do meu primo e levamos outra vez para a praça, e logo a canção estava em todos os computadores e celulares. O toque de recolher atrapalhou um pouco, mas conseguimos. Somos da paz. Depois, ficamos famosos, mas quando fizemos a canção, nunca pensamos nisso. Pensamos em distribuir para os amigos. De repente, o mundo inteiro estava cantando. Nunca pensamos nisso. Que todos, em todo o mundo, se inspirem: fizemos a canção em casa, num quarto. Todos podem fazer o que quiserem. Façam canções melhores. Façam o que quiserem fazer.” Há versão de melhor qualidade, sem tanta intervenção do narrador.


Clique em “pular a introdução” (propaganda de Tylenol, NTs). É um canto à revolução, à paz para todos, ao sacrifício pela liberdade:

“Rompemos os muros/
Nossa arma foi nosso sonho/
Em cada rua dessa terra/
A voz da liberdade nos chama/
De cabeça erguida olhando o céu/
O mais importante são nossos direitos/
Se preciso, escreveremos nossa história com sangue.”

Não há quem, na Praça Tahrir não conheça essa canção e a cante. Todos estão dispostos a escrever essa história comum com sangue, se for preciso: as torcidas organizadas, os universitários, os islâmicos, os burgueses e os operários.

A praça é regida por uma ordem fraternal espontânea: “Estamos criando um mundo é isso é mais que a própria revolução” – diz Fadi, com olheiras e metade do queixo coberto com um curativo. Há quatro dias, a polícia encurralou-o numa rua transversal e o espancou; à noite estava de volta à Praça Tahrir, primeiro no grupo que bloqueou a entrada da sede do governo, onde os manifestantes fizeram barricadas para impedir que o novo primeiro ministro entre no prédio; depois, voltou para o centro da praça. Fadi é engenheiro e está atualmente desempregado. Semanas antes da revolução de 25 de janeiro, recebeu uma proposta de uma empresa alemã, para trabalhar num porto no Alemanha. Já aceitara. Mas decidiu não partir, quando eclodiu a revolta na Praça Tahrir, que mudou seu destino. “Isso não é uma praça: é uma república de pleno direito, um espaço desses com os quais se sonha e que, de repente, pelas combinações da vida, tornam-se realidade.” Essa, precisamente, é a ideia que mantém ativos e fraternos os guerreiros da Praça Tahrir: “Com raríssimas exceções, nenhum político tem direito à palavra aqui” – diz Abdel. É o que se lê escrito com letras vermelhas sobre as lonas distribuídas em círculo no centro da praça: “É proibido fazer campanha eleitoral. Entrada proibida a partidos políticos”. Hoje haverá nova manifestação, cujo tema e palavra de ordem é mais uma lição à qual os políticos profissionais, os partidos políticos da ordem e os movimentos de luta social bem fariam se prestassem atenção: “legitimidade revolucionária”.

Para os guerreiros de Tahrir, a expressão tem significado profundo: “Significa que um movimento popular, nas ruas de muitas cidades, é expressão de soberania e legitimidade muito mais válida e transparente que os arreglos que se fazem pelas costas do povo, entre os militares, os políticos e os empresários do velho sistema”. 

Tahrir se prepara já para mais uma noite de vigília revolucionária. Os grupos acompanham atentamente os movimentos da Polícia. Movem-se pela multidão ou pelas ruas como felinos pacíficos, guerreiros autênticos que defendem a própria legitimidade e o território que conquistaram, apesar dos ferimentos, da violência, das diferenças entre eles, da ameaça sempre presente de mais barbárie policial. Ao seu modo, jovem e comprometido, os guerreiros sem armas da Praça Tahrir são os guardiães de um sonho universal, sempre distorcido, sempre inconcluso, sempre adiado. Aqui, nesse espaço já banhado pela luz da lua, disputa-se um jogo que excede em muito as “quatro linhas do gramado” e de todas as praças. 

Midan-Tahrir é o centro para o qual confluem linhas do metrô, avenidas importantes e a imagem do Egito eterno, com o Museu Egípcio que guarda as preciosidades mais deslumbrantes da civilização dos faraós. Do outro lado da praça, está o passado que envergonha o mundo, no prédio onde ficava a sede do partido de Hosni Mubarak, incendiado em janeiro, logo nos primeiros dias do levante que derrubou o ditador. No centro da praça está o presente e um futuro ainda incerto, em disputa: democracia ou mais ditadura.

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