domingo, 13 de novembro de 2011

Português para adolescentes pobres


Por Urariano Mota* 


Duas vezes por semana tenho a sorte de ensinar Português a adolescentes de bairros populares. Diria melhor, de tentar ensinar o muito pouco que sei. Diria melhor, de me aventurar a ensinar, mui afoitamente, conhecimentos sobre os quais eu não tenho nenhuma certeza. 

Diria melhor, direi melhor: quem me lê não pense, por favor, que esta confissão de ignorância é uma exibição de puro farisaísmo. Ela é, antes, um pedido de desculpa aos professores que conhecem bem a língua portuguesa. E depois, um pedido de clemência aos que pensam que a conhecem, cheios de certezas. “Saibam”, digo aos sabedores convictos, “sou tão burro em português quanto os companheiros”. Mas vamos.


Os alunos, tenho notado, aqui e ali se mostram menos ignorantes que este mestre. São mais sábios, apesar da idade, dos 15 aos 17. Assim tenho notado porque, aqui e ali, em lugar das lições de minha ignorância em advérbios, substantivos, orações (e todas as vezes em que sobre isso lhes falo, ou em que insensatamente me arrisco, sinto os olhos virados para o teto, à procura de uma interjeição, ou à procura do voo substantivo da mosca, que sempre pousa no melhor gênero de adolescente, sobre a coxa da mocinha ao lado)… como eu dizia, não houvesse a interrupção dos parênteses, aqui e ali, em lugar das grandes lições da norma culta, que sempre repito como um papagaio, eles me pedem que lhes conte uma história. Como são sábios!, reconheço, aliviado. Uma história, sim, uma história boa, verdadeira, de preferência acontecida com o mestre, que não possui o talento precioso de contá-las, mas possui a vantagem de ser o seu personagem, o que vale dizer, o personagem do mestre é um sujeitinho ridículo que já vem pronto. Mas antes do começo, uma vez que são um desvio do programa, é preciso um gancho. Como nesta semana.
 
– Professor, pois assim me chamam, professor, eu não consigo entender poesia.

Quem assim me fala é um rapazinho de cabelos louros, descendente de índios. Não estranhem, é o caldeirão do Brasil. Então lhe respondo eu, descendente de negra com branco e de índio também, mas não se espantem, sou o português do Brasil, então respondo, para todos os adolescentes pobres da sala, iguaizinhos a um ser que fui um dia.

– Na idade de vocês, a gente sempre procura a poesia quando tem uma desilusão amorosa. Então a gente lê e entende tudo. Vocês já tiveram alguma? Não?! Nunca receberam um fora, nunca foram rejeitados por quem vocês amavam? Hem? (Silêncio em palavras, mas seus olhos tristes confirmam. E por isso desarmo a sua tristeza, insinuando-lhes a minha.) Pois eu já. Isso já me aconteceu. Mas é uma história, nosso tempo é pouco…. vamos ao programa.

– A história, a história, professor!, pedem-me, os rapazes porque desejam rir, as mocinhas porque desejam chorar e rir:

– A história, por favor…

E por isso começo. Foi assim.

A moça que me revelou a poesia era a filha de um professor. Ela me revelou a poesia de um modo indireto, ou muito direto, vocês vão ver. Ela era bonita a partir do nome, que não vou dizer. O seu nome era um daqueles que são o feminino de um nome de homem, que ficam belíssimos quando se traduzem para a mulher. (“Antonia, Amarilda”, os gaiatos me gritam). Não, estes não, não adianta, não vou dizer. Pois bem. Ela possuía um moreno hindu, uma pele morena de uma paquistanesa, que até hoje não esqueço. (Sinto que vou me perder). Pois bem. No começo, eu ia à casa do professor pelo professor. E aqui e ali, para pegar o almoço também, em dias de domingo.

O professor, como era um grande humanista, sabia que a melhor humanidade era alimentar um estudante com fome. No começo.

Depois, quando a vi, passei a ir, todos os fins de semana à casa do professor, pela filha também. Mas eu não podia amá-la ainda. Eu ali chegava em estado de necessidade, sem dinheiro, somente com a passagem de volta, às vezes nem isso. Acho que foi a partir daí que nasceram as minhas qualidades de andarilho. Pois bem. Naquele estágio eu não podia amá-la. Vocês sabem o que é isso: é não ter dinheiro para convidá-la para um cinema, é não ter com que comprar um chocolate, uma pastilha boa, daquelas que refrescam o hálito com um perfume e um frescor que se sentem à distância… Vocês entendem.

É muito difícil ter direito ao amor quando a gente não tem nada. Vocês me entendem. (Os olhos deles ficam mais tristes. Por isso, dou-lhes um tapa com um desvio rápido). Mas aí eu arrumei um emprego. Sim, comecei a trabalhar. Mas me faltava a coragem.

Vejam vocês. A sala de estar da casa do professor era uma biblioteca. Sentem o que é isso? Em nossas casas a sala de visitas é onde se exibe o nível financeiro do dono – bons móveis, boa televisão, excelente som, sofás… um bando de quinquilharias.

Na casa do professor, não, e agora digo o nome dele, o dele deve ser dito: Arlindo Albuquerque, humanista professor de francês e português do Colégio Alfredo Freyre, em Água Fria. Na casa dele, não: os livros se ostentavam em toda a sala de entrada da casa. Pois bem. Ca… quase eu digo o nome dela, a minha namorada, a minha enamorada… enquanto o professor não vinha, me recebia com um shortinho, com as suas pernas morenas de enlouquecer, a estudar livros de medicina. (Os olhos dos adolescentes brilham.)

– Medicina? Ela era mais velha que o senhor?

– Sim, acho que um ano, mas nessa fase em que eu trabalhava, eu já estava com 20 anos… Mas eu não tinha coragem. Quanto mais a queria, mais me fechava. É claro que ela percebia isto. A mulher, ainda na adolescência, percebe quando alguém está interessado nela. Não sei aonde vai buscar essa ciência, sem que ninguém lhe diga…. (As adolescentes concordam, os meninos protestam.) É uma coisa animal! (E perco o apoio feminino, que por sobejas razões não se quer nivelar à fêmea das selvas.)

Pois bem. Acontece que nessa ocasião um amigo nosso arruma o seu primeiro emprego. E por essa felicidade todos deveríamos comemorar, e comemorar era beber, beber, e cantar. O que fizemos. O certo é que na volta, os que vinham em cima da caminhonete, eu e outros, numa curva maldita fomos arremessados ao chão. No que recuperamos de imediato a lucidez. Ficamos bons, do susto. Pois bem. Esse incidente, com absoluta impropriedade, foi contado a ela, ou melhor, com absoluta propriedade, porque ocupava o lugar do que não se podia dizer: que eu era e estava louco por ela. (E nesta altura eu não lhes conto o quanto havia de loucura, em razão da existência de castas numa sociedade de mestiços, o quanto era impossível esse amor.) Pois bem, foi contar o incidente e ela rir, sorrir, gargalhar, gargalhar como as vilãs de novela de televisão, aquelas vilãs bonitas que desprezam os mocinhos virtuosos, que não têm no cu o que periquito roa.

Drummond - auto caricatura
– Conhecem a expressão “não ter no cu o que periquito roa”? Essa expressão (sinto o ar de desalento para qualquer exegese)… Pois bem. O seu riso me chocou, e por isso tentei um poema em prosa. Dizia… “Uma mulher distante, de moreno hindu, com os olhos amendoados passeia sobre a minha vida. Januária distante, Januária sem janela, ela sorri e zomba de pretendentes que caem bêbados de caminhonetes… Que não sorria tanto, que não posso ficar assim, indefinidamente à espera dessa mulher que me tomou a vida”. Então que fiz eu? Saibam, a insensatez é uma marca da sua idade. Que fiz? Numa bela tarde, vou à sua casa, e na saída, ao portão, entrego-lhe esse escrito, e corro, e saio correndo, acreditam?, corri para bem longe dela, sumi, fui. E assim se passaram três meses, três vezes longos 30 dias suportei, até uma certa manhã em que volto. E entre nós se passa este breve diálogo:

– Você leu?

– O quê?

– A poesia … (“a inocência é uma arte!”, eu me digo.)

– Ah, aquilo?

– Sim, engulo, “aquilo”.

– Ah, eu não sei ler poesia.

Então ela me ensinou ali o que era e o que não era poesia, então ela me disse ali que a poesia não atravessa a pele de quem é imune ao sofrimento de outros. Vocês não imaginam o quanto me atirei à leitura dos poetas. Vocês percebem?

Eles percebem, entendem, ficam sérios, sorriem. Não sei se isso é pedagógico, não sei se isso vem a ser uma boa aula de português, nem mesmo sei se isso é longinquamente educativo. Não sei. Mas estas minhas histórias para adolescentes pobres têm tido um grande sucesso.

Eles sempre me pedem outra.

Urariano Motta* é natural de Água Fria, subúrbio da zona norte do Recife. Escritor e jornalista, publicou contos em Movimento, Opinião, Escrita, Ficção e outros periódicos de oposição à ditadura. Atualmente, é colunista do Direto da Redação e colaborador do Observatório da Imprensa. As revistas Carta Capital, Fórum e Continente também já veicularam seus textos. Autor de Soledad no Recife (Boitempo, 2009) sobre a passagem da militante paraguaia Soledad Barret pelo Recife, em 1973, e Os corações futuristas (Recife, Bagaço, 1997).

enviado por Tafáci

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Registre seus comentários com seu nome ou apelido. Não utilize o anonimato. Não serão permitidos comentários com "links" ou que contenham o símbolo @.