sábado, 5 de novembro de 2011

Intervenção estrangeira na Síria: que ninguém se engane


Agência de Notícias Árabe Síria (SANA) mostra o Ministro das Relações Exteriores da Síria, Walid Muallem (C) e Yussef al-Ahmad, Embaixador da Síria para a Liga Árabe, no final de sua reunião com o Comitê Ministerial da Liga Árabe em Doha, Qatar em 30 de outubro de 2011. (Foto: AFP)



Ibrahim al-Amin

1/11/2011, Ibrahim al-Amin, al-Akhbar, Beirute
Traduzido pelo Coletivo da Vila Vudu
Ibrahim al-Amin é jornalista, editor-chefe de al-Akhbar.



Um amigo de Damasco envia a seguinte carta:

Estive com figuras da “oposição” de cujo patriotismo não se duvida. Alguns foram presos para “interrogatório”, que, como se viu depois, era um meio que o regime encontrou para falar com eles. Perguntei sobre como avaliam hoje a situação. Reclamaram muito e culparam o regime por ter começado o que hoje se vê.

Respondi: “A questão não é quem começou. Ponha a culpa em mim, ou culpe a Virgem Maria, ou Ebla [antiga cidade síria, próxima de Alepo, hoje, Tell Mardick]. O que interessa é que há um problema que tem de ser solucionado.”

Um deles disse “Quem está fugindo da solução é o regime, não somos nós.” 

Eu: “Querer resolver não é crime. E recusar-se a discutir com o regime não é prova de alto patriotismo nem de muita sabedoria. Não podemos tratar o que o regime faz para encontrar uma solução como se fosse mais um “crime da ditadura”.”

Ficaram em silêncio.

Eu: “Vocês veem como traição, algum diálogo com o regime?” 

Ficaram em silêncio.

Eu: “A impressão que se tem é que vocês querem que o regime entregue o país a vocês. Seria razoável, se vocês tivessem meios para tomar o palácio. Mas estão muito longe disso. Pessoal! O estado está em desintegração! Significa desastre para todos! O mais provável é que toda a região seja redividida.”

Eles: “Não é verdade. Não acreditamos em conspirações de fora! Grupos não governamentais europeus e figuras mundiais disseram que a Síria e a região podem ser redivididas, mas temos informação de fonte segura de que ninguém pensa nisso.” 

Eu: “Se Assad disse que não está disposto a negociar com Israel, como vocês pensam que os EUA reagirão?”

Eles: “Os EUA apóiam o regime e o presidente.” 

Eu: “Como? Impondo sanções, exigindo que o presidente renuncie, e sugerindo soluções que pedem a intervenção do Conselho de Segurança da ONU? Me expliquem! Quero ser convertido!” 

Eles: “O regime nada faz sobre a questão do Golan [ocupado por Israel]. 

Eu: “Certo. Mas e vocês? Vocês falaram a favor dos Palestinos e sobre o Golan, em alguma de suas declarações? Vocês querem que Israel se retire do [deserto de] Golan. Estão pregando resistência contra Israel? E o que pensam do modo como a Rússia resolve o problema dos chechenos, como a China resolve seus problemas com a minoria muçulmana, como a Índia resolve o caso da Caxemira, e como seus amigos turcos resolvem os problema da Turquia com árabes, curdos e alawitas que vivem lá?”

Ficaram em silêncio.

Eu: “Como vocês reagirão, se os EUA resolverem atacar o exército sírio sem autorização do Conselho de Segurança, exclusivamente para criar anarquia na Síria, exatamente como fizeram na Iugoslávia?”

Eles: “Nunca acontecerá. Os EUA querem que Assad e o regime sobrevivam.

Eu: “Por que acreditam nisso? Os EUA garantem ajuda militar ou econômica a Assad e ao regime? Os EUA protegem Assad de qualquer condenação e contra uma intervenção do Conselho de Segurança da ONU?”

Ficaram em silêncio.

Eu: “OK, voltemos ao problema básico. Vocês consideram a possibilidade de um diálogo e de chegarem a uma solução com o regime, mas sem qualquer envolvimento dos EUA, Turquia e dos estados árabes do Golfo?”

Eles: “Quem precisa de solução é o regime, não nós.” 

Eu: “Pobre Síria...”

A Síria aproxima-se hoje de uma nova encruzilhada. Desde que o presidente Barack Obama dos EUA anunciou que os EUA sairão do Iraque antes do Natal, é evidente que mudanças sísmicas aproximam-se da porta de casa, na Síria. As próximas semanas verão acontecimentos tão graves quanto não desejados. Esses medos não são resultado de leitura superficial da situação, mas baseiam-se em evidências que chegam a várias capitais regionais sobre o que os EUA, a Europa e seus vários estados árabes clientes decidiram fazer na Síria.

Todos esses países agem, é claro, em colaboração com vários grupos da oposição síria. O mais importante deles é o grupo que já está integrado nos planos ocidentais e tem maioria no Conselho Nacional Sírio [ing. Syrian National Council (SNC)]. É mais visível, a cada dia, que figuras dissidentes como Burhan Ghalioun, que comanda nominalmente o Conselho Nacional Sírio, já está transformado em simples fachada. Eles falam, mas as decisões são tomadas noutro lugar. Assim sendo, já não faz qualquer diferença se Rifaat Assad ou Abdel Halim Khaddam unem-se ou não ao Conselho Nacional de Transição. Com um ou outro, ou sem eles, as ideias deles e suas palavras de ordem serão convertidas em plano de ação , reproduzindo, na Síria, a experiência da Líbia – sem considerar, é claro, nem riscos nem consequências.

Claro que há os que, rápidos, argumentam que o ocidente não teria interesse em atacar a Síria, porque na Síria não há nem o petróleo nem o dinheiro que há na Líbia. Não passa de tentativa de jogar areia em olhos alheios pretender que os próprios estados árabes do petróleo não estejam profundamente envolvidos nesse esquema. Não só já se ofereceram para financiar essa guerra, mas também para financiar a reconstrução da Síria depois da guerra. 

Em qualquer caso, o Iraque já comprovou que é falsa a teoria segundo a qual só o petróleo interessaria ao ocidente. A guerra já custou aos EUA muito mais do que poderão algum dia recuperar com o petróleo do Iraque, e os planos do ocidente para o Iraque já foram destruídos pela resistência iraquiana. Em termos de política regional e também em outros aspectos, a Síria é um prêmio estratégico que a torna infinitamente mais valiosa que todo o petróleo que haja em reinos e emirados do petróleo.

*******

O rumo e o ritmo dos acontecimentos na Síria obrigam a reavaliar a situação e a reconsiderar posições. Alguns pontos devem ser relembrados, como contribuição para essa reconsideração:

  • – A experiência do Líbano é muito mais aplicável à Síria que as experiências do Egito ou Tunísia ou, mesmo, da Líbia e do Iêmen. Isso, por causa das divisões sectárias, alinhamentos políticos e papel regional da Síria, além da natureza dos interesses estrangeiros envolvidos na Síria.

  • – Qualquer intervenção, tenha o formato que tiver, pela aliança EUA-OTAN associada aos estados do Golfo e à Turquia, tem de ser fortemente condenada e rejeitada. Qualquer equívoco sobre qualquer tipo de intervenção estrangeira na Síria implica aceitar tacitamente a intervenção. É preciso opor-se decididamente a todas as modalidades que hoje se veem, de sabotagem patrocinada pelo ocidente na Síria (armas, dinheiro, incitamento, etc.).

  • – Alguns atores árabes trabalham ativamente hoje na preparação de uma intervenção militar na Síria a serviço do ocidente. Esse papel, o mais mal guardado segredo diplomático na região não pode continuar a sem encoberto ou disfarçado. Todos temos de nos opor firmemente ao sítio que a Síria sofre hoje, inclusive às sanções econômicas e políticas. Temos também de nos preocupar com produzir melhores análises e com não nos deixar desencaminhar. Isso se aplica às histórias sobre militarização hoje repetidas por vários grupos da oposição e pela imprensa-empresa árabe anti-Síria. Praticamente todos os bandidos armados são hoje apresentados como desertores do exército sírio, presumivelmente para dar a impressão de que o exército sírio estaria dividido e, assim, induzir deserções e inventar uma divisão que, hoje, não existe no exército da Síria. Do mesmo modo, enquanto já se sabe que cerca de metade dos mortos eram soldados do exército e das forças de segurança regulares da Síria, as manchetes de jornal e televisão insistem em ‘noticiar’ que “morreram 20 nas manifestações populares na Síria” – induzindo a opinião pública a crer que o regime estaria matando cidadãos, na Síria.

  • – Os inimigos da Síria apresentam furiosamente as sanções econômicas e financeiras como se fossem demanda popular dos sírios; ao mesmo tempo, tentam convencer a opinião pública de que essas sanções só ferem o regime, as instituições e os líderes políticos. Basta olhar em volta para saber que sanções atingem, em cheio, sempre, a população, sobretudo os comerciantes, para conseguir que se voltem contra o regime. Todos sabem que a própria estrutura do regime – e o apoio com que a Síria sempre contou, do Irã, Iraque e outros – conseguirão contornar os efeitos da sanção sobre o regime. As sanções, que todos os dias são ‘ampliadas’, não visam a forçar o regime a fazer concessões. As sanções visam, exclusivamente, a destruir o estado e a aumentar o ressentimento dos cidadãos contra o regime e o governo, de tal modo que, com o tempo, até os grupos de apoio ou neutros passam à oposição contra o regime, o governo e o estado. Nenhuma sanção visa a pressionar algum regime para que promova reformas ou mudanças. Sanções econômicas e políticas visam, sempre, a derrubar governos e regimes. Ponto final.

  • – A Turquia e os estados do Golfo buscam claramente estabelecer bases de poder dentro da Síria (exatamente como fizeram na Líbia), para que possam ter voz ativa nos rumos futuros do país e minar a influência regional da Síria. Não é acaso nem coincidência que EUA, Europa e seus estados árabes clientes queiram que Israel mantenha-se discreta e afastada de qualquer envolvimento direto na atual questão síria: com isso, visam a evitar que o golpe em andamento desacredite os golpistas inimigos do regime sírio, aos olhos da população. Viu-se exatamente a mesma encenação no Líbano, depois do assassinato do ex-primeiro-ministro Rafiq Hariri. O ocidente e seus estados árabes clientes ordenaram que Israel não se manifestasse: “Estamos fazendo o que Israel quer que se faça.” Mas pode acontecer também na Síria o que aconteceu no Líbano. Se falhar a combinação de oposição interna com  pressões militares, econômicas e dos serviços secretos, e se o governo não for derrubado, Israel será reconvocada, para que reassuma seu papel preferido e faça guerra. Porque a Síria, em termos bem claros, é pilar central de sustentação da resistência contra Israel.

  • – Nada disso nos pode afastar de denunciar os crimes de morte de manifestantes nem a prisão de milhares de cidadãos. É imperativo político e moral denunciar esses crimes, não só ‘para constar’, mas para efetivamente condenar o que são crimes do regime, do exército ou de suas forças de segurança. O regime terá de entender que ninguém perdoará ou esquecerá esses crimes. Por isso, um dos primeiros passos para tornar efetivas as reformas em preparação, tem de ser o julgamento formal dos acusados pelas mortes e prisões arbitrárias, por mais graduado que seja.

  • – Qualquer processo de reformas exige que os interlocutores participem da discussão da qual brotará a formulação das reformas. A questão principal tem de ser: “que regime os sírios desejam?”, não “que reformas o regime quer fazer?” (nem, tampouco, “que regime as potências estrangeiras desejam ver na Síria?”. A ação do regime tem de ser aberta ao escrutínio dos cidadãos, e a oposição tem de poder falar livremente. Isso, em resumo, exige imprensa transparente, o que, por sua vez, exige o fim imediato de qualquer tipo de censura ou controle, que impedem a informação equilibrada e distorcem as conclusões, desde o início da discussão.

Não se requer grande esforço para ver que a Síria enfrenta a luta mais difícil de sua história, em muitos anos. O que acontecer agora terá consequências para todos os países vizinhos. Talvez haja, na Síria, quem desconfie tão profundamente do governo que, para livrar-se dele, já esteja disposto a fazer um pacto com o diabo. 

Não se pode aceitar esse pacto, porque conhecemos bem o diabo e sabemos o que significam os pactos que se fazem nesses termos.

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