segunda-feira, 14 de novembro de 2011

30 anos de “hacking” político


13/11/2011, Sabine Blanc e Ophelia Noor, OWNI
Entrevista com Andy Müller-Maguhn
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

O “Chaos Computer Club” [Coletivo Caos], afamado e influente coletivo alemão de hackers, completou 30 anos. Conversamos com Andy Müller-Maguhn, membro do coletivo e seu porta-voz há muito tempo, para discutir os desafios e os sucessos do coletivo, nas últimas três décadas.


Desde setembro de 1981, o “Chaos Computer Club” reúne hackers, dedicados ativistas dokacking, do re-posicionamento e do uso não ortodoxo da tecnologia da informação. O pequeno coletivo nasceu em Hamburgo e mudou-se para Berlim, antes de espalhar-se por toda a Alemanha e pela Europa. Foi o primeiro coletivo de hackers que se conheceu na Europa. Hoje, o grupo já exerce efetiva influência política, na luta por liberdades digitais e por preservação e proteção à privacidade na rede.

Andy Müller-Maguhn no Chaos Computer Club em Berlim, novembro 2011
Andy Müller-Maguhn é herói da velha guarda: uniu-se ao coletivo em 1985, com 14 anos; foi membro do grupo de coordenação e, por muito tempo, porta-voz do coletivo. Hoje, Andy é jornalista (do Buggedplanet), consultor (Tecnologias da Informação e Comunicação) e dirige sua empresa de encriptação para telefones. Falante, gentil, engraçado e surpreendentemente (sic) atilado, é fácil esquecer, conversando com ele, que se está diante de um dos mais respeitados cérebros da comunidade nerd.

A entrevista aconteceu na sede do Coletivo, em Berlim, frente a uma garrafa de Club-Mate, bebida com alto conteúdo de cafeína, muito prestigiada pelos hackers. É sala estranha, cheia de objetos recolhidos das ruas: velhos consoles de Arcade, um misterioso quadro eletrônico de chegadas e partidas de aviões, adesivos promocionais, sofás antidiluvianos e, claro, muitos quilômetros de fios e cabos. A sala é contraste perfeito para o elegante bairro de Mitte, onde está localizada.

O Coletivo Caos acaba de completar 30 anos. Quando começou, alguém imaginou que, 30 anos depois, seria o que é hoje?

Andy Müller-Maguhn: O Coletivo Caos foi criado informalmente em 1981, por profissionais das Tecnologias da Informação que se reuniam para discutir o impacto das novas ferramentas e como usá-las na sociedade. Tinham uma lista de questões que estavam começando a surgir. Como a defesa da privacidade na rede.
 
Em 1984, o Coletivo Caos foi reformatado, mais formalmente. Criaram uma revista, Die Datenschleuder (literalmente, “O Extrator de Dados”) e houve o Primeiro Acampamento-Congresso de Comunicações Caos. Uni-me ao grupo antes de ser oficializado, em 1996. Sou dos mais velhos, hoje! Queria discutir ideias sobre hacking e encontrar gente que mexesse com comunicação eletrônica. O Coletivo Caos reunia gente de todos os tipos, de classes sociais completamente diferentes, era grupo muito heterogêneo, de gente com interesses comuns. Era grupo tão raro, tão diferente de tudo que havia, naquele tempo, como até hoje.

O Coletivo Caos era pequeno, mas já começava a se tornar conhecido na Alemanha, sobretudo depois que invadimos o Bildschirmtext em 1984. Devolvemos o dinheiro, é claro. E explicamos ao público o que estávamos fazendo.

As pessoas começavam a mexer com tecnologias que, numa década, estariam dominando o mundo, como a Internet. O poder de usar a rede para fazer acontecer alguma coisa do outro lado do mundo, usando só os nossos pequenos computadores domésticos, era entusiasmante, para quem mexia com dados, como nós. Naquele momento, estavam querendo fazer um recenseamento nacional e havia forte movimento na Alemanha contra o governo intervir na vida privada dos cidadãos.

Quando cheguei, éramos 300 pessoas. Hoje, somos mais de 3.500, mas não podemos mais trabalhar juntos, por razões de saúde e de segurança. O Coletivo cresceu aos poucos, e os leitores da revista subiram, de 200, para mil leitores. A edição impressa trimestral foi mais importante nos anos 90s. Hoje, já lemos tudo, antes, na edição online.

O Coletivo Caos ainda é fórum importante, onde se discutem todos os assuntos e qualquer tipo de assunto, onde nascem ideias, onde se encontram pessoas que, sem o Coletivo, jamais se encontrariam. Ao mesmo tempo, tenho de dizer que, às vezes, as coisas ficam caóticas. É encontro muito dinâmico. Às vezes, é dinâmico demais. Ninguém é pago para trabalhar no Coletivo, o que seria contrário aos princípios da ética hacker. Quem está aqui veio e ficou pela causa hacker. Não queremos ninguém aqui interessado só em salário, embora esse sistema imponha suas próprias limitações.

Atualmente, todos falam dos hackers, o hacking virou moda. Como se sentem, no Coletivo Caos?

As coisas mudaram muito. Hoje já um movimento político e cultural global, que nem sempre existiu. Nos anos 1980s, pouca gente entendia o que fazíamos. Era realmente uma subcultura. Enfrentamos muitos problemas com a lei, e precisávamos de muitos advogados, que dissessem o que se podia ou não podia copiar, onde podíamos e não podíamos entrar, e para nos ensinar o quê, do nosso trabalho, era legal e o quê aproximava-se mais, mesmo, da total ilegalidade.

O caso da França é bom exemplo. Na França, se você fosse hacker e fosse descoberto, só tinha duas saídas: ou ia para a cadeia, ou ia trabalhar para o governo. O governo francês monitorava bem de perto o pessoal que entendia de segurança de sistemas. Por isso, aliás, os saberes de hacking estagnaram, na França.

Em termos gerais, somos vistos também como um lobby que defende a proteção à privacidade e aos dados pessoais, mas também a transparência e as tecnologias de código aberto, até a autorregulação. Nos anos 2000s, apareceu a palavra nerd, que sempre me pareceu uma espécie de retaliação culturalmente construída por gente que defende o direito de não se interessar pela realidade nem pelo modo como os seres humanos se tratam, porque estaríamos já vivendo completamente dentro ‘da máquina’. Não concordo com nada disso. Sou da velha guarda, e essa cultura geek me parece meio esquisita. Penso o mesmo dos espaços para hackers.

Como é hoje o membro típico do Coletivo Caos? Você disse que, no começo, havia grande diversidade social. Ainda é assim?

Não acho que haja um tipo definido. Já estamos na 4ª ou 5ª geração. Parei de contar há muito tempo. O Coletivo Caos, hoje, é altamente descentralizado, há grupos por toda a Alemanha e em outros países. Os perfis variam muito.
 
E, no começo, éramos inspirados, de certo modo, pela cultura de esquerda. A cena do hacking mais hardcore – a segunda geração, minha geração – era ainda mais variada. Mais ainda havia gente que só queria ajuda na carreira profissional. Passavam pelo coletivo, mas também traziam muitas ideias e projetos. As coisas sempre funcionaram desse jeito.

Agora, a Internet trouxe grande quantidade de novos empregos. Muitos membros do Coletivo Caos trabalham nesse setor; têm empresas próprias, como ISPs (Internet service providers, provedores de acesso à Internet), ou gerenciam partes da infraestrutura da rede. Então, vêm mais para partilhar o que sabem , e também ajudam nas nossas necessidades de infraestrutura e partilham e ativam as ideias que constituem o Coletivo Caos. Até agora, mal chegamos aos 10% de mulheres. A maioria são homens.

Parece que, atualmente, os hackers conseguem ser mais ouvidos na política alemã. Você concorda? 

Acho que sim. Se se examina o ambiente político na Alemanha, o Coletivo Caos é hoje entidade aceita e reconhecida, porque nós trabalhamos para educar a opinião pública, sobre tecnologia, desde os anos 1980s. Sempre houve histórias esquisitas que chegavam até nós, de sumiço de dados, por exemplo. E pudemos ajudar a explicar o que acontecia, em muitos casos.

A mídia alemã sempre nos viu como gente que entende “de tecnologia”, dos benefícios e dos riscos, não como gente que vende serviços a empresas com interesses econômicos.

Quer dizer: nós conseguimos nos definir nós mesmos, e sempre usamos isso. Nos anos 90s éramos convidados, em audiências do governo, nas comissões técnicas, sobre leis e regulações das telecomunicações e questões de privacidade. Sempre tentamos organizar a participação do grande público, nessas discussões. Temos essa história já, há mais de 20 anos.

Não precisamos necessariamente estar integrados formalmente na formulação de políticas, mas fazemos nosso papel, cá do lado de fora. Hoje, eles já ganham mais se não nos desqualificarem ou nos ignorarem completamente. Os políticos precisam do nosso saber especializado, e aprendemos a conhecer também as leis. Podemos mostrar onde as leis erram, mais que os políticos. Nossa vantagem é que alguns dos nossos, no Coletivo Caos, gostam de estudar mais as questões políticas; outros preferem as questões técnicas. Temos os dois lados.

Você acha que a cena hacker na Alemanha é mais influente por causa da história da Alemanha? Há quem diga que os alemães percebem, mais que outros povos, a necessidade de oposição forte.

Questões como a privacidade na rede são mais sensíveis, sobretudo por causa da Alemanha Oriental. Os alemães sabemos o quanto o abuso estrutural pode tornar-se perigoso, porque, por aqui, fizemos de tudo. Até pôr estrelas amarelas nas pessoas, antes de executá-las.

Por tudo isso, há alguma consciência, um pouco mais clara. Mas o sistema educacional alemão também tem a ver com tudo isso. Na escola, aprendemos a história do nazismo. Os alemães somos hoje antiautoritários e antididaticismos. É difícil, hoje, dar ordens na Alemanha.
 
Na Alemanha, temos esses dois aspectos conflitivos, no nosso código genético cultural. Somos maníacos por alta eficiência e excelente organização em tudo que fazemos. Mas também conservamos uma compreensão profunda do mal que estruturas muito hierarquizadas podem causar à comunicação, e sempre que as pessoas são tratadas como objetos. O Coletivo Caos, pelo modo como é construído, tenta ter o melhor desses dois mundos: saber que o pior sempre pode acontecer, sem, por isso, desistir de tentar fazer as coisas com eficiência.

Você acha que os alemães da Alemanha Oriental são culturalmente mais abertos às novas tecnologias por terem sido obrigados por tanto tempo a improvisar, para sobreviver no dia a dia?

O Coletivo Caos de Berlim nasceu da fusão de dois clubes de computação, um de Hamburgo, outro de Berlim Oriental. Eu vim do clube de Hamburgo, em 1989, quando o governo da Alemanha Oriental começava a desmoronar. Tivemos contato com as pessoas mais talentosas em Berlim Oriental. Improvisavam, sim, muito. Era um modo diferente de lidar com as coisas. Trouxeram também aquele senso de humor e a experiência de já terem derrubado um governo. Isso é muito importante. Não se deve jamais subestimar o modo como viam o governo na Alemanha Oriental. Para eles, foi como uma etapa intermediária. Como se sempre tivessem sabido que, mais dia menos dia, teriam de derrubar o governo. Era questão de tempo. As diferenças estruturais entre o que existia no Leste e há hoje no Oeste nunca foram muito grandes. Em Berlim, temos uma piada que diz que no socialismo ou no comunismo, há gente explorando gente; e no capitalismo é o contrário.

Eles também tinham um lado antiautoritário, de resistência à violência. Afinal, tinham tido contato muito próximo com os serviços secretos. Em Berlin, a experiência dos que chegavam de lá, do contato que haviam tido com a Stasi (polícia secreta da Alemanha Oriental) enriqueceu muito o Coletivo Caos. A Stasi é hoje a polícia secreta cujos serviços são os mais bem documentados do mundo, em todos os tempos.
Temos todos os manuais de treinamento daqueles agentes, e conhecemos as técnicas usadas por eles para desestabilizar grupos e semear desconfianças e cisões. A contribuição da Stasi foi essencial, para que compreendêssemos como funciona o mundo moderno, e a mistura, que aconteceu em Berlim, entre leste e oeste, as misturas das influências dos russos e dos norte-americanos.

Quais os seus maiores sucessos e maiores arrependimentos? 

Nossos acampamentos-congressos sempre foram o barômetro do que estava acontecendo. Com o tempo, tornaram-se eventos internacionais, atraindo gente de todo o planeta. Sabemos que, hoje, há um movimento global. Esse é um grande sucesso. O Coletivo Caos é hoje constituído de grupos por toda a Alemanha e pelo mundo, todos conectados. Cada um mantém sua específica forma de organização. Considero essa diversidade um dos mais valiosos patrimônios que o Coletivo acumulou nesses anos.

Pessoalmente, como indivíduos, nós também passamos por muita merda, o que muito nos ensinou. Sabemos o que não fazer. Aprendemos as lições do caminho. Hoje, podemos operar até em condições muitos difíceis – quando há investigação policial em andamento, quando há crimes, inclusive crimes de morte, todos os tipos de discussões difíceis, quando se confrontam opiniões muito fortemente opostas. Temos hoje uma poderosa cultura de debates, que ainda confunde muita gente. Ninguém sai da sala, antes de haver algum coisa que todos aceitem, mesmo que a discussão avance madrugada a dentro, até 2, 3h da madrugada. 
 
Hoje, esse processo de discussão e formulação de ideias novas é mais difícil, porque somos muita gente. Se você me perguntar o que é o núcleo de nossa organização, não saberei dizer. Num congresso com 3.000 pessoas, há expectativas no ar que não se pode deixar sem resposta. Ao mesmo tempo, não é um show. Num certo momento, todos têm de se envolver. Mas... Como discutir temas com 500 pessoas na sala?

E como vocês se organizam? O Partido Pirata Alemão[1] usa uma ferramenta que eles chamam de Realimentação Líquida, por exemplo.
Sim, mas eles são partido político. Eles têm que chegar a algum acordo em vários tópicos. A Democracia Líquida[2] envolve entregar alguns tópicos a uma determinada pessoa que tenha mais conhecimento e pode agir em nome do melhor interesse de todos. Mas, para a comunicação, usamos ferramentas, como as salas de bate-papo ou Jabber. Mas, pessoalmente, sou conservador sobre ferramentas como o Twitter. Desculpe, mas sou alemão. Sempre que vejo a palavra “follower” [“seguidor”, no Twitter], penso logo na Alemanha Nazista. Não consigo usar aquilo.

E quanto aos arrependimentos? Daniel Domscheit-Berg[3] é um deles?

Por que me arrependeria? O problema é que essa entrevista está sendo gravada, e temos um acordo, para todos os porta-vozes do Coletivo Caos, de não comentar esse caso. Há controvérsia demais. As pessoas continuam muito divididas sobre esse episódio. Para alguns, ele sempre foi bom sujeito. Para outros, sempre foi espião norte-americano. Disse tudo isso no meu depoimento, que me parece perfeitamente acurado sobre esse assunto.

Como foi tomada a decisão de expulsá-lo do Coletivo Caos?

A coordenação do Coletivo decidiu. De fato, já havia uma história de gente, do Coletivo, que não gostava do que ele andava fazendo. E não quisemos ter de escolher lados. Gostamos da ideia de vazar documentos e de garantir apoio logístico a pessoas em posição vulnerável frente a um ou outro governo, porque somos a favor da liberdade de informação. Esse sempre foi um dos objetivos do Coletivo. 
 
Sobre problemas pessoais entre duas pessoas – não vimos e não escolhemos um lado ou o outro. Só decidimos sobre o que vimos acontecer: Daniel usou regularmente a sala do Coletivo Caos para entrevistas à imprensa ou à televisão. Ficou, para muitos, a impressão de que o Coletivo Caos teria alguma conexão direta com o projeto de Open Leaks. Todos os membros do Coletivo têm projetos pessoais ou outros dos quais participam. De fato, ninguém aqui conhecia Daniel, antes de ele aparecer como porta-voz de WikiLeaks. Ele não era membro, antes disso, do Coletivo Caos. Nunca pedia autorização para usar a sala de Coletivo e várias vezes foi alertado para não usá-la para entrevistas. Até que, como gota d’água, aconteceu de ele usar o Coletivo para testar seu projeto. Nem para isso pediu autorização do Coletivo. Nunca estive contra o projeto dele, nem contra ele, pessoalmente. Mas, por exemplo, na fala de apresentação do projeto, já percebi que não falara de softwares de código aberto. A estrutura do projeto não era transparente. Nada era aberto, em OpenLeaks. Tudo, naquele projeto estava em clara oposição aos valores e princípios do Coletivo Caos.

Já em várias ocasiões manifestei meu desconforto com aquela situação. Disse, em entrevista à revista Der Spiegel, que era “inaceitável”. Ao mesmo tempo, a reação das pessoas surpreendeu-me. Não foi ideia minha expulsá-lo do coletivo. Foi decisão coletiva, unânime.

Havia gente que queria dar-lhe mais uma chance ou, pelo menos, esperar o fim do evento. Não me entenda mal. Compreendo a importância de cultivar relações harmoniosas na vida. Mas, para que nossos processos e ideias políticas tenham coerência, é indispensável que as discussões sejam francas. O melhor meio é sempre chamar as coisas pelo nome que tenham. 

Hackers ligados ao Coletivo Caos tiveram, no passado, contatos com serviços de inteligência. Algumas dessas histórias, como de Karl Koch e Tron, acabaram mal. Sabemos que há serviços de inteligência recrutando hackers, em alguns casos, contra a vontade deles. Como lidam com essas questões?

Quando visitei a primeira conferência de hackers nos EUA, surpreendeu-me ver que serviços do governo andavam por ali, abertamente recrutando gente, como se trabalhar para o governo fosse coisa normal. Se seu sistema de valores é baseado só na habilidade técnica, não importa para quem você trabalhe. Mas se você considera importante, dentre outras coisas, a liberdade de informação, os serviços de inteligência são exatamente o contrário de tudo que você considera importante. Serviços de inteligência existem para ocultar informações.

Fui convidado para dar uma palestra em Washington intitulada “Open Source Intelligence” [inteligência com sistemas abertos] e lá encontrei gente da embaixada alemã que trabalhou no serviço secreto alemão. Perguntei a eles o que significava toda aquela cultura do sigilo, do segredo. Responderam claramente: “Temos de tornar os processos mais lentos, para poder controlá-los.” 

Os hackers, como o Coletivo Caos os define, querem que todos tenham capacidade técnica para saber o que está realmente acontecendo, porque é preciso conhecer os fatos para tomar decisões políticas bem informadas. Portanto, do nosso ponto de vista, não é aceitável que membros do nosso Coletivo trabalhem para esses serviços cujo objetivo é o segredo, o sigilo.
 
Já passamos por situações difíceis, com Karl Koch, mas não só com ele. Outros também trabalharam para a KGB. Nos anos 1980s, estávamos ainda na Guerra Fria, momento difícil, com investigações policiais, prisões, casas e escritórios revistados. Era difícil também para nós: em quem confiar? Hoje, todos se preocupam mais com dinheiro e com fazer carreira. Claro. Ainda há espiões e informantes, mas é fácil identificá-los e sabemos como lidar com eles. Para mim, o mais complicado são as pessoas realmente talentosas, do ponto de vista técnico, que não se incomodam com quem compra seus serviços, e que trabalham na infraestrutura da Internet ou na interceptação de dados. O dinheiro sempre foi como papel caça-moscas, e não só para capturar os mais jovens. Claro. Se sua situação não é financeiramente estável, mais fácil você deixar-se cooptar. Mas é indispensável criar uma espécie de imunidade contra essas coisas.

Como você criou essa imunidade?

Karl Koch e Tron são dois casos de figuras bem conhecidas que morreram por problemas dessa natureza e são hoje exemplos históricos para os mais jovens. Esse é o conhecimento que tentamos passar adiante. Muita gente nos procura, dizendo que estão sendo assediados para trabalhar para serviços secretos. A primeira abordagem é sempre feita por empresas privadas que fazem contato e oferecem emprego. Aos poucos, o empregado começa a ver que o trabalho que lhe pedem pode não ser, digamos, perfeitamente inocente.

Se você aparecer aqui e convidar alguém para trabalhar para o governo como hacker, é fácil: é dizer não, e o caso está resolvido. Mas se a tentação aparece sob a forma de um grande desafio técnico que interessa ao que o governo esteja fazendo, e a tentação técnica vem acompanhada de algum dinheiro, a resposta já não é tão fácil. E eles sabem fazer isso muito bem. É a tal história: se você quiser jantar um sapo e, para cozinhá-lo, você jogá-lo diretamente na água fervente, o sapo pula fora da panela e você perde o jantar. Mas se você jogá-lo numa panela de água fria, em fogo baixo, o sapo só perceberá que está sendo cozido quando já for tarde demais.

Economia, ciência, telecomunicações, etc. O programa do mais recente Acampamento-congresso do Coletivo Caos foi um verdadeiro programa político. Os hackers já estão trabalhando para dar alguma resposta à crise? Você acredita que tenham competência e habilidade para oferecer soluções?

Do ponto de vista prático, nossos acampamentos-congressos são usados como treinamento de sobrevivência. Durante alguns dias somos capazes de oferecer, a todos, energia, conexão de Internet, Club-Mate, essas coisas. No primeiro acampamento-congresso, perdemos muito dinheiro. Não pensamos em itens essenciais de infraestrutura, como água quente nos chuveiros e privadas que funcionassem.

A experiência pode ser muito útil em vários outros sentidos. Aprender, por exemplo, como montar uma rede de Internet onde não haja qualquer infraestrutura. A cena hacker traz consigo essa compreensão dos princípios e das características físicas da tecnologia, um tipo de abordagem que obriga a encarar todas as questões técnicas e políticas, a partir das mais simples até as mais complexas, e sempre de modo a que você esteja preparado para fazer qualquer coisa com seus próprios meios e sozinho. Os que já tenham feito coisas podem partilhar o que aprenderam e todos contribuem, participando nesse sistema aberto. Não sei se o que fazemos é super sério, mas com certeza, pelo menos é uma abordagem claramente proposta. E também é um estado de espírito.

O que pensam do Partido Pirata Alemão? Quatro, dos quinze membros eleitos para o Parlamento em Berlin são membros do Coletivo Caos. É boa notícia?

Ponhamos a coisa nos seguintes termos: partidos políticos são formatos organizacionais complexos. Ao participar desse processo por pelo menos 50 anos, aprende-se a aceitar o que a maioria tenha decidido, mesmo que você tenha outras ideias ou conhecimento diferente sobre as mesmas questões. Por isso sempre se criam micro grupos dentro dos grandes partidos. A democracia parece ser outra coisa, diferente disso. O Partido Pirata pode ser um uma oportunidade para sair desse processo. Gosto muito da ideia. É ótima. 

O mais interessante é ver o quanto os outros partidos e todos os políticos temem essa nova organização. Tentam envolver-se em questões sobre a Internet, contratam empresas de marketing e relações públicas, leem tudo que o Coletivo Caos publica e tentam falar uma nova linguagem, tentando aproximar-se das novas gerações. Fato é que a política tradicional não pode mais ignorar os mais jovens, o que fizeram, sim, durante muito tempo. Mas não podem continuar a fazê-lo. Não é possível que os políticos só se lembrem da internet quando se trata de censurar pornografia e pedofilia pela internet.

Então, hoje, tentam a “estratégia do tapinha nas costas”: “vocês são nossos amigos”. Já várias vezes nos convidaram para encontros, mas temos preferido manter o Coletivo Caos afastado desses contatos, inclusive afastado, também, do Partido Pirata. Não há oposição nem animosidade. O Partido Pirata é ótimo. Falamos com todos. Mas é preciso dar tempo ao tempo e ver como operam lá, no mundo político. É interessante ver que são muito cuidadosos com não se deixar prender nos mecanismos do funcionamento tradicional.



Notas dos tradutores

[1] Partido Pirata Alemão [al. Piratenpartei Deutschland; acr. PIRATEN, “Piratas”) é partido político alemão, criado sobre o modelo do Partido Pirata Sueco. Foi fundado na Alemanha em 10/9/2006. O Partido Pirata tem, por plataforma, a defesa dos direitos civis na telefonia e na Internet; especificamente opõe-se às políticas de sigilo para dados governamentais e à nova lei em discussão na Alemanha de nova censura na Internet. Também se opõe aos monopólios e a várias medidas de vigilância sobre cidadãos. O Partido Pirata prega que o direito à privacidade no campo da informação é direito civil básico. Prega também reformas nas leis de copyright, educação e patentes genéticas. Promove, sobretudo, ampla transparências dos governos, com implementação de uma governança de código aberto, e que os governos eletrônicos sejam submetidos a inspeção e monitoramento por órgãos da sociedade. Leia mais sobre o Partido Pirata Alemão , em inglês.
[2] Leia mais sobre “Liquid Democracy”.
[3] Daniel Domscheit-Berg, mais conhecido pelo pseudônimo Daniel Schmitt (nascido em 1978), é ativista alemão no campo das TICs. Ficou conhecido por ter sido, até setembro de 2010, porta-voz de WikiLeaks. É autor do livro Inside WikiLeaks: My Time with Julian Assange at the World's Most Dangerous Website (2011). Depois de deixar a organização Wikileaks, anunciou planos, em janeiro de 2011, de abrir outro website para vazamento anônimo de material secreto, OpenLeaks. O anúncio foi feito num evento do Coletivo Caos, em agosto de 2011, quando falou do lançamento da página, ainda em fase de testes, e convidou os hackers daquele Coletivo alemão a testar a segurança do sistema OpenLeaks. O Coletivo Caos criticou-o publicamente e o expulsou. Em setembro de 2011, vários jornais e organizações de mídia citaram a cisão entre Julian Assange e Domscheit-Berg como um dos eventos de uma cadeia que levaram à divulgação, naquele mês de todos os 251.287 telegramas diplomáticos dos EUA  
Créditos das fotos: Ophelia Noor

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