quinta-feira, 21 de julho de 2011

O som das flautas

Não é possível resolver um problema usando o mesmo raciocínio que criou o problema.
Albert Einstein

Não se pode esperar que entendam o problema aqueles que são pagos para não entendê-lo.
Tony Judt

E aquilo que nesse momento se revelará aos povos surpreenderá a todos não por ser exótico, mas pelo fato de poder ter sempre estado oculto quando terá sido o óbvio.
Caetano Veloso
O Índio”

O som das flautas
da “terra hoje chamada Brasil

Homero Mattos Jr.
Publicado por Homero Mattos Jr. em: Passalidades Atuais

Há já alguns anos, durante uma entrevista no antigo programa Roda Viva da TV Cultura, após comentar sobre a sabedoria dos povos indígenas o jornalista Washington Novaes ouviu do maior plantador de soja do Brasil a seguinte pergunta: O senhor está propondo que voltemos a ser índios? Novaes respondeu: Não, pois, infelizmente, nós não temos mais condições de voltar a ser índios.

Não, não temos mais condições de viver como nossos ancestrais. É um fato.
Mas, podemos resgatar, deles, a sabedoria, a visão da delicadeza que a tudo permeia.
É uma possibilidade.

Em algum momento da Europa ocidental do século XVI a consciência humana deu-se conta da autonomia do pensar e declarou que existia. Então, deslumbrada com a percepção do próprio alcance, começou a tornar-se acentuadamente individualista e, é claro, arrogante. Em seguida, fortalecida ao longo do século XVII por uma razão a julgar a si mesma iluminada em meados do século XVIII, atravessou o século XIX convencida de sua superioridade frente à quaisquer outras consciências e, desse modo, começou a desenvolver os processos através dos quais camponeses pobres, porém até então integrados, haveriam de tornar-se dissociados miseráveis, condenados à marginalidade nos guetos operários dos centros industriais e financeiros do efervescente (febril?)século XX, tão hábil (tanto à direita quanto à esquerda) em tirar proveito dos desequilíbrios naturais e a exaurir, da Terra, as pessoas e os recursos. Eis um sumaríssimo resumo do desenvolvimento da consciência ocidental, a chegar no início do século XXI ainda incapaz de solucionar as (sempre as mesmas) mazelas e vicissitudes denunciadas por Victor Hugo em Os Miseráveis (1862) ou por Charles Chaplin em O Garoto (1921) ou em Biutful (2010), filme dirigido por Alejandro Iñárritu.

Porém, talvez seja assim mesmo, penosamente progressivo,  o modo de transformação da consciência: um continuum de tentativas de erro e acerto ou, em termos mais coloquiais, de constantes ‘aqui tá fundo, aqui tá raso’ a pressupor uma sucessão de quebras e reconstruções de todas as delicadezas perdidas. E, neste sentido, parece, todas as culturas, todos os povos e sociedades tem uma contribuição a oferecer para o aprimoramento de uma consciência estruturada, até agora, parcialmente, segundo a visão de mundo incorporada por antiguíssimos egípcios; antigos persas, gregos, romanos e semitas; medievais normandos e proto-italianos; modernos iberos e -nos últimos 350 anos- por modernos e contemporâneos(?) francos e anglo-saxões. Muita e respeitável coisa. Sem dúvida. Mas, felizmente, ainda incompleta ante a totalidade das contribuições possíveis.
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Observe-se que o pensamento ocidental recebeu grande influência de filosofias caracterizadas, entre outras coisas, por uma acentuada unilateralidade de consciência  a posicionar-se, quase sempre, discriminatoriamente a favor disso ou daquilo e somente a duras penas capaz de realizar a integração das diferenças.

Após uma leitura cuidadosa de A Terra dos Mil Povos- História indígena do Brasil contada por um índio, livro escrito em 1998 [1] por Kaká Werá Jecupé é difícil para um brasileiro não emocionar-se e não sentir-se orgulhoso desta parcela do legado multi-cultural do qual, natural ou adquirida, é portadora sua nacionalidade. 
  
A verdade final, se existe tal coisa, exige o concerto de muitas vozes já disse Jung.
O espírito é uma música, uma fala sagrada que se expressa no corpo; e este, por sua vez, é a flauta, o veículo por onde flui o canto que expressa o ser-luz-som-música, que tem sua morada no coração. diz a voz da sabedoria indígena brasileira resgatada por Kaká Werá em A Terra dos Mil Povos. Sabedoria cuja impressionante harmonia com vozes vedantas e taoístas inspira reflexões mais profundas sobre o real sentido (i.e direção) de uma globalização cujo significado (i.e espaço) parece transcender o âmbito mesquinho do business as usual.
No momento em que humanidade tenta recordar o abracadabra capaz de interromper o movimento frenético da enlouquecida vassoura fáustica, talvez seja oportuno olhar para modos de pensar que mais do que mandamentos ou proibições possuem uma visão do ser humano e da ação, que é estranha à nossa (ocidental) concepção.[3] 
Sob esse aspecto, aliás, é interessante observar, por exemplo, os modos substancialmente distintos sugeridos pelas duplas Lennon/Mc Cartney e Tom/Vinicius para resolver-se um problema relativo à afinação musical.
Em With a Little Help from My Friends a solução, repare-se, é mecânica, a lá Blade Runner :

O que você vai fazer se eu desafinar? Vai embora e me deixar só? Empreste-me seu ouvido e eu tentarei não sair do tom [2].

Em Desafinado, a solução é amorosa, a lá ... digamosWalden (!):
Se você achar qu’eu desafino, amor, saiba que isso em mim provoca imensa dor... pois no peito dos desafinados também bate um coração .
Squidum digundum, squidum dum...

enviado pelo autor 


Notas de rodapé

[1] Editora Fundação Petrópolis, 3a. Edição São Paulo, SP - trechos disponíveis em: Homero Mattos Jr.  
[2]What would you do if I sang out of tune,
         Would you stand up and walk out on me?
         Lend me your ears and I'll sing you a song
         And I'll try not to sing out of key.
[3] Luigi Zoja A História da Arrogância p. 6 Axi Mundi Editora, São Paulo,SP 2000

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