domingo, 3 de julho de 2011

Iêmen: Comitês populares ou “gente diferenciada”?

Shata Al-Harazi

30/6/2011, Shatha Al-Harazi, Yemen Time
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu


Entreouvido na Vila Vudu:
Nada de sensacional -- é matéria jornalística, sem importância --, mas, pelo menos, há aí alguma “notícia”, que os jornais e blogs jornalísticos, no Brasil, não noticiam. Ajuda a ver, pelo menos, que o Iêmen não foi apagado do mapa, depois que os EUA e o Pentágono resolveram esquecê-lo, e a “grande  imprensa-empresa” obedeceu. 

SANAA, 29/6 — Depois que começou a guerra entre o governo de Saleh e as tribos aliadas à família Al-Almar, o medo espalhou-se pelos arredores do distrito de Hassaba, na capital do Iêmen. 

Moradores da região e bairros próximos decidiram proteger-se, as famílias e as propriedades, formando comitês populares. A ideia original era proteger os bairros contra a presença de “gangues” que poderiam tentar aproveitar-se da insegurança, enquanto o estado combatia contra as tribos. 

Mas espalharam-se boatos segundo os quais o Partido GPC [ing. General People's Congress (GPC), partido de Saleh] estaria conclamando o povo a formar comitês populares, dizendo que, naquelas circunstâncias, cada um passaria a ser responsável pela própria segurança. Houve quem dissesse que o partido de Saleh estaria pagando 2.000 YR [ing. Yemen Rials] por dia e dando uma arma aos que se unissem aos comitês populares. Outros boatos sugeriam que os partidos da oposição estariam estimulando também a formação de seus próprios comitês populares. 

Grupos jovens dos bairros reuniram-se e dividiram-se em pequenos grupos, e cada grupo ficou encarregado de proteger uma das entradas do bairro, à noite. Organizaram-se turnos, de modo a que todos participassem nos horários possíveis. 

Dia 3/6, uma explosão feriu o presidente Saleh e vários assessores, quando estavam reunidos para as orações, no momento em que os bombardeios contra o centro da cidade atingiam ponto de intensidade máxima até ali. A área do distrito de Hadda foi muito duramente atingida pelas bombas do exército aliado a Saleh. O combate entre a confederação de tribos Hashid e o exército ficou concentrado principalmente em Hadda e Hassaba. 

Hadda é considerado um dos bairros mais ricos de Sanaa, onde há grandes residências e restaurantes. Os residentes na região fugiram, naquele dia 3/6, mas em quase todas as casas ficou pelo menos um membro da família. Um homem que levou a mulher e os filhos para lugar seguro e voltou para proteger a casa, foi morto ao chegar. 

“Já falávamos de organizar comitês populares desde antes da 6ª-feira [3/6], porque todos aqui tememos as gangues. Três casas foram saqueadas” – diz Mohammad Abbas, morador de Hadda. Depois do 3/6, decidiram bloquear todas as entradas para o bairro, como medida para impedir que os combatentes das tribos usassem as casas como abrigo, no combate contra os soldados de Saleh. 

Os comitês populares, armados pelo estado, através de contato com os grupos locais organizados, ou não, estavam quase todos armados, com armas pessoais ou Kalashnikovs, alguns com facas e porretes. 

Durante mais de três meses, prosseguiu uma campanha de desarmamento, em todos os postos de controle à volta da cidade, com soldados que revistavam carros e caminhões, para localizar armas. Mas as forças de segurança não impediram que os comitês populares se armassem. 

“Aqui, todos estão armados. Recentemente, alguém atacou o posto de polícia do bairro. Foi quando a segurança passou a revistar os comitês populares por aqui” – disse Abbas. 

Abbas garante que, no bairro onde vive, os comitês populares não são políticos. Mas em outras partes da cidade, moradores dizem que participam de comitês populares políticos. 

“Onde eu moro, só os aliados do partido de Saleh participam dos comitês. A menos de 50m da minha casa há outro comitê só de membros do Partido Islah” – disse Ali Saeed, que mora na rua Taiz. 

Saeed contou que foi convidado a juntar-se ao comitê local, que lhe ofereceram pagamento de 2.000 YR e qat [1]. Disse que não aceitou, porque entende que o povo tem de se autoproteger e a segurança do estado já não pode ajudar ninguém. Que preferia viajar para o interior, para a aldeia onde vivem seus parentes, “onde todos se conhecem”. 

“Os comitês populares não são solução para coisa alguma e nos preocupam ainda mais, porque todas as noites se ouvem tiros próximos. Sabemos que os comitês são políticos. Há comitês de dois partidos diferentes, os mesmos que estão em guerra e, a qualquer momento, põem-se a atirar uns contra os outros” – disse Saeed. 

Na rua Haeel, os comitês apareceram, por pouco tempo, depois do atentado contra a vida do presidente. Nesse caso, em vez de sugerirem que cada um protegesse a própria casa, nos prédios de vários andares a polícia criou um ‘toque de recolher’: todos tinham de estar em casa num horário determinado e, fora desse horário, os portões permaneciam trancados. 

Às segundas-feiras, os postos de abastecimento de carros recebem combustível e a cidade assiste a engarrefamentos gigantes, todos querendo abastecer os carros. Ouvem-se brigas entre motoristas durante toda a noite, às vezes com tiros. Alguns comitês populares bloquearam as ruas que atravessam os bairros, para impedir que as filas avancem por ali e compliquem ainda mais a situação dos moradores. 

Muitos dos que se uniram aos comitês populares são vistos como bandidos, ou jovens que querem aproveitar-se do caos. Um morador, Yaseen Al-Makhlafi, que mora na rua Haeel, disse à nossa reportagem que alguns comitês cobram ‘pedágio’ (500 YR) dos que fazem filas nos postos de gasolina, o que também tem gerado brigas e tiroteios. 

“Por aqui, os comitês populares são formados de bandidos conhecidos” – disse Mahmood Saleh, que mora na região de Al-Sabeen. Mas Mahmood acha que as coisas podem ser diferentes, em outros bairros.



Nota dos tradutores
[1] Uma folha de arbusto (Catha edulis) que se masca e que tem efeitos estimulantes, de uso tradicional no Iêmen e em vários países da região e da África. Nos EUA é considerada droga ilegal. Sobre qat, ver: TED Caser Studies: QAT trade in Africa.


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