quinta-feira, 14 de julho de 2011

Contra o endividamento?! Pelo fim do capitalismo?!

David Harvey

11/7/2011, *David Harvey 
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu


Como o capitalismo reproduz-se ao longo do tempo? Essa questão intriga os especialistas em economia política desde o século 17. Inventaram-se vários modelos teóricos simples para responder essa pergunta complexa. Apesar de nenhum modelo ser completamente satisfatório, vale a pena estudá-los, porque deles se obtêm muitas intuições aproveitáveis. E, nesses tempos de problemas profundos e frustrantes, é importante estudá-los, pelo menos.

Um desses modelos pode ser extraído dos trabalhos de Karl Marx e, por mais horror que suas ideias políticas causem a muitos, ignorar as intuições de Marx sempre criará maiores riscos contra os que as ignorem. Aí vai então uma parábola marxiana, muito interessantemente relevante para o momento pelo qual os EUA passamos hoje.

Os capitalistas começam o dia com certa quantidade de dinheiro. Compram meios de produção e força de trabalho e põem ambos a trabalhar com algum tipo de tecnologia, para criar bens e produtos que os capitalistas vendem no mercado por preço igual ao que gastaram até ali mais um “extra” (chamado “lucro”), no final do dia.

Há vários pontos de ruptura possíveis nesse processo (podem faltar trabalhadores ou meios de produção; a tecnologia pode não ser a adequada etc.). Um dos enigmas até aí mais interessantes é: de onde nasce a demanda efetiva extra (desejo + dinheiro para comprar) no final do dia, de modo que o capitalista consiga realmente realizar seu lucro?

Nos tempos de Marx, havia muita demanda residual, restos das velhas classes feudais e, quando isso só não bastasse, o comércio internacional (ou a pilhagem) com países não capitalistas como a China e a América Latina levava ao mesmo resultado, servindo-se do mesmo truque (a China e a América Latina tinham muito ouro e prata). Marx chegou a brincar um pouco com isso, mas logo rejeitou a ideia de que produtores de ouro (hoje, é o Federal Reserve) conseguissem gerar demanda efetiva extra. Quando tirou da mesa também essa alternativa, o mistério aumentou.

Para, afinal, responder àquela pergunta, Marx construiu um modelo simples de sociedade capitalista, com só duas classes, capitalistas e trabalhadores. Obviamente, diz ele, os trabalhadores não têm dinheiro sobrando; assim sendo, a única via possível para iniciar o processo no começo do dia, é que os capitalistas ‘entrem’ com o dinheiro; mas para que o processo funcione, os capitalistas têm de garantir também que, no fim do dia, haja a necessária demanda (ou os capitalistas não realizarão o lucro). Não há dúvidas de que essa economia é p’rá lá de esquisita.

Há algumas variantes do mesmo argumento. Thomas Malthus, por exemplo, dividiu a burguesia em capitalistas-que-produzem e aristocratas latifundiários (como o próprio Malthus) de um lado; e, de outro, funcionários públicos corruptos (incluída aí toda a monarquia) cujo único e virtuoso serviço prestado à sociedade era consumir muito, produzindo zero. Keynes (admirador de Malthus) sugeriu mais tarde que os trabalhadores poderiam ajudar a consumir, desde que recebessem melhores salários. A direita reacionária distorceu essa ideia até converter todos os trabalhadores em sindicalistas ambiciosos e inescrupulosos que, além de promoverem a quadratura do círculo, também estragariam todo o processo, porque inventariam uma espiral de consumo que geraria inflação.

Mas fiquemos com a versão mais simples, diretamente de Marx: como é que os capitalistas, ao mesmo tempo, consomem e pagam pelo ‘a mais’ para cuja produção eles mesmos ofereceram os meios? Há dois modos de consumir o “a mais” – (1) aumentando o consumo pessoal dos próprios capitalistas ou (2) investindo em expansão – contratando mais trabalhadores e comprando mais meios de produção. (2) implica crescimento perpétuo e acumulação de capital ao longo do tempo. Implica também, convenientemente, que a demanda por expansão amanhã conseguirá absorver o excesso produzido ontem.

Mas há aí um grave problema de dessincronia: a expansão amanhã só realiza seu lucro, em dinheiro, no final do dia. Mas o dinheiro é necessário ontem, para comprar o excesso que foi produzido ontem. A única resposta, nesse caso é “crédito”, dinheiro que é emprestado sob a garantia de expansão futura do excesso de produção. Esse é o truque que produz a quadratura do círculo capitalista, desde que, é claro, a expansão futura realmente aconteça. Quando a expansão futura não acontece, há uma crise, na qual não há dinheiro para pagar as dívidas. O capitalismo, conclui Marx, é um sistema gigante de especulação financeira.

A perpétua acumulação de capital e riqueza, portanto, depende crucialmente da perpétua acumulação e expansão das dívidas. Essas duas variáveis – acumulação de capital e acumulação das dívidas – correm assim, lado a lado, ao longo de toda a história do capitalismo (basta consultar os arquivos), ambas alimentando-se e apoiando-se mutuamente. Ocasionalmente, saem de sincronia e criam uma crise como a que estamos vendo. O que nos é apresentado como uma crise da dívida soberana da Grécia é, de fato, crise do sistema financeiro. E há crise hoje, porque o sistema financeiro não conseguiu encontrar meios para, com reinvestimento, manter o excesso em crescimento!

Pode-se extrair disso uma espantosa conclusão: votar contra ampliar o endividamento é votar a favor do fim do capitalismo! Por sorte (ou azar, dependendo do ponto de vista), os Irmãos Koch e o Partido Republicano nos EUA (nem o senador Álvaro Dias, o Sardemberg e o William Waack, no Brasil [risos, risos]) sabem disso. 

Marx sempre esperou que os trabalhadores em revolta pusessem fim ao capitalismo. Até agora, ainda não conseguiram. Mas, quem sabe, os Irmãos Koch e o Partido Republicano nos EUA (ou o senador Álvaro Dias, o Sardemberg e o William Waack, no Brasil [risos, risos]) conseguirão fazer o que os trabalhadores ainda não conseguiram. Não seria completa surpresa para Marx. Como Marx percebeu, animadíssimo, os capitalistas individuais, operando exclusivamente para benefício só deles, muitas vezes fazem coisas que ameaçam coletivamente a continuidade de todo o processo capitalista.

É pouco provável, é claro, que os Republicanos nos EUA permaneçam por muito tempo fiéis à missão cruzadista “ética” em que estão empenhados hoje. Quando estiveram no poder, fizeram exatamente o contrário do que pregam hoje. Os governos Reagan e Bush Filho não fizeram outra coisa, além de aumentar o endividamento (“Reagan nos ensinou que déficit não é problema” – disse, inesquecível, o vice-presidente Cheney). 

Mas, no curto prazo, os cruzados “éticos” Republicanos (ou o senador Álvaro Dias, o Sardemberg e o William Waack, no Brasil [risos, risos]), podem causar grave dano ao sistema capitalista que tanto prezam. Outra intuição certeira de Marx: as contradições do capitalismo movem-se por misteriosos caminhos.

*David Harvey é Professor Especial no Centro de Pós-Graduação da City University of New York. Seu curso livre d’O Capital de Marx está disponível em DavidHarvey.org. Seu último livro é O Enigma do Capital e as crises do capitalismo, publicado pela Oxford University Press.

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