quinta-feira, 14 de abril de 2011

Líbia: cessar-fogo ou fuzilaria

Pepe Escobar

14/4/2011, Pepe Escobar, Asia Times Online 
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

O chamado “grupo de contato da Líbia” – esse eufemismo que designa a ínfima “coalizão de vontades” do ocidente plus emirados do Golfo – reúne-se em Doha, Qatar, antes dos encontros de ministros da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) em Berlin, em clima de a mais completa farsa. 

O ex-ministro líbio das relações exteriores e atual desertor Moussa Koussa é um dos pilares da reunião no Qatar, tentando convencer os “rebeldes” do Conselho Nacional Provisório [ing. Interim National Council (INC)] de que a única solução possível no momento implica o coronel Muammar Gaddafi permanecer no poder. 

É exatamente, aliás, o que a Turquia, mediadora, também diz. Não surpreende que os “rebeldes” e seus patrocinadores – o audaz e varonil libertador de árabes, presidente Nicolas Sarkozy, e o primeiro-ministro David Cameron – estejam soltando fogo pelas ventas, e sem entender nada. 

O chefe da missão da União Africana à Líbia, presidente Jacob Zuma da África do Sul – cujo país é o único do grupo BRICS que apoiou a Resolução n. 1.973 do Conselho de Segurança da ONU (Brasil, Rússia, Índia e China abstiveram-se de votar) – estava convencido de que Gaddafi aceitara o mapa do caminho proposto pela União Africana, que começava por um cessar-fogo. Mas até agora, ninguém cessou-fogo. O muro de desconfiança que separa Gaddafi e o grupo “rebeldes”/OTAN já alcançou proporções de Himalaia. O secretário-geral da OTAN, general Anders Fogh Rasmussen só faz repetir que Gaddafi “não cumpre o que promete”. Gaddafi não é suficientemente doido, para cessar-fogo enquanto a OTAN não parar de bombardeá-lo. 

Quanto aos EUA, a secretária de Estado Hillary Clinton – a qual, com suas guerreiras amazonas, a enviada à ONU Susan Rice e a assessora do Conselho de Segurança Nacional Samantha Power, impingiu essa lamentável aventura a uma Casa Branca relutante – agora só fala do cessar-fogo (mas que sempre carrega, embutida, a “mudança de regime”). 

É útil comparar a abordagem da União Africana – construída pela África do Sul, Uganda, Mali, Mauritânia e Congo-Brazzaville – e a abordagem da OTAN. Desde que se obtenha um cessar-fogo que os dois lados respeitem, será possível criar corredores de ajuda humanitária; será possível proteger civis, locais e estrangeiros (sobretudo os trabalhadores africanos migrantes); e será possível iniciar um diálogo nacional, que “atenda as legítimas aspirações do povo líbio, por democracia”. 

Os “rebeldes” do governo provisório não estão em posição de impor condições a Gaddafi. Há risco de que algum cessar-fogo que se alcance depois do impasse atual leve à balkanização da Líbia – dividida em duas, leste e oeste. Mas praticamente nenhum líbio quer correr esse risco. A União Africana está sendo pragmática. A Líbia – com Argélia, Egito, Nigéria e África do Sul – financia 75% do orçamento da União Africana. 

Gaddafi mantém boas relações com a maioria dos 53 membros da União Africana; Mauritânia, Mali e Congo-Brazzaville, por exemplo, recebem imensos investimentos da Líbia (de fato, nada menos que 31 países africanos recebem investimentos líbios). 

Além do mais, os mediadores são africanos – não são europeus neocolonialistas. Zuma, da África do Sul, seria o primeiro a repudiar visceralmente a ideia de uma Líbia dominada por franceses e britânicos. Houve muita desconfiança sobre os motivos que teriam levado Zuma a empurrar a África do Sul na direção de aprovar a Resolução n. 1973 do CSONU. Seja como for, o fato é que Zuma diz agora o que os outros quatro BRICS mais a Alemanha já diziam antes de votar: a Resolução redigida por franceses e ingleses é aberta demais. E abre as portas para que o ocidente ponha-se, doravante, a derrubar qualquer líder africano que queiram, quando queiram. 

O presidente de Uganda, Yoweri Museveni, também tem trabalhado nessa mediação. Entende que Gaddafi seja nacionalista autêntico – opinião partilhada por seus pares africanos, para não falar de todo o Oriente Médio e dos membros do Movimento dos Não Alinhados no mundo em desenvolvimento, todos sempre a favor de líderes nacionalistas que se oponham a fantoches à moda dos “rebeldes” do Governo Provisório em Benghazi. 

Valores comunitários 

A mediação da União Africana, afinal, destrói o mito da “comunidade internacional” em combate contra a sempre mesma figura de “ditador do mal” demonizado, hoje encarnada em Gaddafi. A menos que alguém entenda que “comunidade internacional” sejam sete, dos 28 membros da OTAN (só França, Grã-Bretanha, Bélgica, Dinamarca, Noruega, Canadá e os EUA), plus aqueles dois exemplos de superior democracia que há no Golfo Persa – o Qatar e os Emirados Árabes Unidos. 

A “mudança de regime” (que não existe na Resolução do CSONU) não tem qualquer apoio. Todos os apoiadores da “mudança de regime” vivem em Washington, Londres, Paris e Benghazi. 

Comparem agora o realismo da posição da União Africana – semelhante ao da Turquia – e esse patético discursismo de franceses, britânicos e OTAN. Londres e Paris querem que a OTAN continue e amplie o mais frenético bombardeio – como se as bombas da OTAN pudessem ser programadas para só matar líbios pró-Gaddafi. 

A ideia nem surpreende, vinda de duas insignificâncias políticas como os ministros das Relações Exteriores de França e Reino Unido, respectivamente William Hague e Alain Juppé. Por sua vez, o brigadeiro-general da OTAN Mark van Uhm esforça-se para fazer-ver, em Bruxelas, com muita razão, que as forças de Gaddafi adaptaram-se aos ataques aéreos e adotaram “táticas de agilidade, atacar e sair, com colunas motorizadas de caminhões, que visam mais a desgastar as forças adversárias do que a ganhar terreno”. 

Com o que, afinal, se pode concluir que a OTAN já sabe que não conseguirá “apavorar e chocar” o inimigo, sem cometer um genocídio. Os africanos fazem bela figura nesse quadro – e, sim, trouxeram proposta viável para por fim ao impasse na Líbia. Só Paris, Roma e Doha reconheceram o governo provisório de Benghazi. Impossível não lembrar que só Arábia Saudita, Paquistão e os Emirados Árabes reconheceram o governo dos Talibã. 

Chama a atenção que Washington, pelo menos, tem sido mais realista. Resta esperar que os “rebeldes” – pessoal da CIA, oportunistas de vários matizes e muita gente marginalmente ligada à al-Qaeda – e seus patrocinadores anglo-franceses acordem e sintam o perfume do café Arabica.

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