quinta-feira, 31 de março de 2011

Trípoli, a nova Tróia

Pepe Escobar

1/4/2011, Pepe Escobar, Asia Times Online 
Traduzido pelo Coletivo da Vila Vudu

A “Alvorada da Odisséia” prossegue – sórdida “ação militar cinética” (como definida pela Casa Branca) digna do Homero que atualmente habita o Pentágono. A matança entre civis em terra pode durar semanas, talvez meses. Não é mais como remix da Ilíada– lembrem, a Guerra de Tróia se arrastava já por dez anos, sem qualquer resultado decisivo. Os EUA estão perplexos. Nova pesquisa da Associated Press-GfK revela que o país está dividido: 48% a favor da “ação militar cinética” na Líbia; 50%, contra. 

Gaddafi não é rei Príamo. E Saif al-Islam Gaddafi não é Páris (embora, à falta de Helena, ele tenha seduzido a London School of Economics). Khamis Gaddafi não é Aquiles – no máximo, um Ajax de segunda (coragem gigante, enormíssima, mas miolo mole). 

Príamo foi príncipe sábio – Gaddafi é espertalhão. Príamo fortaleceu o estado mediante governança prudente e sábia (Maquiavel teria aprovado) e alianças com os vizinhos; e Gaddafi governou jogando umas tribos contra outras. Nem sinal, nem sombra, à vista, de um Heitor – de caráter nobre. 

Pode-se conjecturar que deuses e deusas – além de Atena – interessam-se tanto por essa guerra quanto as próprias partes envolvidas diretamente. Aliadas crucialmente importantes de Tróia foram Pentesileia, rainha das Amazonas, e seu exército de mulheres guerreiras. No remix do Pentágono, Pentesileia mudou-se para a oposição: é a secretária de Estado Hillary Clinton, com as combatentes Susan Rice embaixadora ONU e Samantha Power no Conselho Nacional de Segurança. 

O presidente francês Nicolas Sarkozy libertador de árabes não é nenhum Menelau; sua Helena – Carla Bruni, que costumava festejar com o báquico Mick Jagger –, prefere as passarelas by Vogue e nada a arrastará para o desconforto de tendas no deserto. O primeiro-ministro britânico David Cameron longe está de ser Agamenon. E quanto a Silvio “Bunga Bunga” Berlusconi, presidente da Itália, é sátiro escapado de comédia de Aristófanes. 

À espera do raio iluminador

A operação Alvorada da Odisseia inclui conjunto de personagens das forças especiais infiltradas – de EUA, Grã-Bretanha, França, mais os inevitáveis agentes secretos da CIA sancionados por Barack Obama. Podem, talvez, ensinar uma ou outra coisinha aos “rebeldes” sobre guerra, mas com certeza não estão ensinando as táticas de guerrilha de Mao Tse Tung que nosso Príamo/Gaddafi está usando.
Seja como for, essas forças especiais serão chaves. Tróia resistiu a cerco de dez anos por exército regular – e só caiu depois que duas forças muito especiais intervieram em missão de inteligência e reconhecimento: Ulisses e Diomedes. Havia em Tróia uma celebrada estátua de Atenas chamada “Palladium” [aprox. “talismã”]. Disfarçados, encobertos por mágica operada por Atenas (a versão grega da OTAN), e ajudados por Helena – a mulher cuja estonteante beleza provocara toda a guerra, vale lembrar – Ulisses e Diomede esgueiraram para dentro das muralhas de Tróia e de lá roubaram a “Palladium”. 

A “Palladium”, enorme estátua de madeira, protegia Tróia. Atena a arrancara do Olimpo porque a “Palladium” havia bebido o sangue vaginal de Electra quando foi estuprada por Zeus. Pois Tróia não caiu, nem depois de roubada a sua “Palladium” protetora. A “coalizão de vontades” começava a desesperar – até que Ulisses apareceu com mais um agente das forças especiais: o Cavalo de Tróia. 

Dificilmente acontecerá de Gadaffi cair, enganado pelo Cavalo de Tróia EUA-franco-galês (a menos que inventem outra resolução da ONU). Os troianos tremeram quando viram o Cavalo. E Laocoonte, o sacerdote, pronunciou frase inesquecível: “Que loucura, cidadãos, é essa! Será que ainda não aprenderam sobre as fraudes dos gregos? Será que ainda se deixam enganar? Eu, de minha parte, desconfio dos gregos até quando trazem presentes!” 

Atenção! Todo o cuidado é pouco quando o ocidente traz presentes! – Lição que muitos líbios ainda terão de aprender, sobretudo se os presentes vêm de ex-potências coloniais, França e Grã-Bretanha, e de um condomínio de CIA/Pentágono/OTAN/AFRICOM. 

Por outro lado, nada deliciaria mais esses portadores de presentes que ver Gaddafi terminar seus dias como Príamo – que sobreviveu à queda de Tróia e foi assassinado na noite fatal em que os gregos tomaram a cidade. 

Em outras palavras, Trípoli não cairá enquanto sua “Palladium” – que é o próprio Gaddafi, imagem especular de seu próprio poder – permanecer na cidade. 

Por hora, Gaddafi está “vencendo”, como Tróia “venceu” ao longo de anos – emboscando os guerreiros recém-chegados nos arredores de sua Sirte natal, flanqueando-os pelo deserto, e replicando a tática em Ras Lanuf, com uns poucos foguetes Grad acrescentados, por via das dúvidas. 

Pouco restou para a “coalizão de vontades” além de curvar-se à resolução n. 1.973 da ONU – apesar de legiões de especialistas em leis internacionais não se cansarem de repetir que, segundo a única resolução a ONU que há até agora sobre a questão, a decisão de armar os “rebeldes” é ilegal. 

O consórcio EUA-França-Grã-Bretanha aprofunda-se na guerra – começou com  “proteger civis” com Tomahawks e ataques aéreos; passou a atacar forças de Gaddafi onde as encontrassem; agora, vai armar civis. 

Estão dizendo que tudo está autorizado – o parágrafo 4º da resolução n. 1.973 da ONU autoriza “todas as medidas necessárias” para proteger civis, “... considerado o parágrafo 9º da resolução n. 1.970”. Esse parágrafo 9º trata do embargo de armas. A expressão “considerado” [orig. withstanding”] dá base legal para armar os rebeldes, desde que se assuma que seja feito para proteger civis. Daí até uma outra resolução que permita invasão por terra, com tropas de ocupação é só um pequeno passo. 

É preciso suspender completamente a capacidade de criticar, para ver o ex-ministro do Interior de Gaddafi, Abdel Fatah Younis e o agente da CIA Khalifah Hifle – esse, o novo comandante militar dos “rebeldes” –, como Ulisses e Diomedes. E a estátua “Palladium” continua lá posta. O principal furo no roteiro da operação Alvorada da Odisseia é que não há nada nem parecido com Ulisses, à vista. 

Não surpreende que tantos peçam que os céus lhes mandem um raio iluminador (talvez um Tomahawk bento?), enviado por algum deus ex machina, por Zeus, primeiro e único, que até agora se mantém como supervisor geral dos procedimentos, em seu trono olímpico, em Washington.

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