quarta-feira, 30 de março de 2011

Os perigos que ameaçam a Síria

29/3/2011, *Issa Khalaf, Palestine Chronicle
Enviado pelo Coletivo da Vila Vudu

Muito antes de começarem os protestos na Síria, eu já me preocupava com eles, numa mistura de medo e feliz esperança. A parte da esperança feliz é fácil de explicar: todos queremos o fim da tirania que pese sobre povos árabes, e todos reconhecemos que vivemos momento de virada definitiva na história desses povos que afirmam corajosamente a própria independência. O medo brota de a Síria ser contexto muito especial na Região, e contexto que, na minha opinião, exige máxima cautela, porque ali se combinam a extrema complexidade da realidade interna na Síria e os riscos mortais da ameaça externa que se ergue contra os povos no Oriente Médio. 

Já escrevi noutro lugar que o contexto líbio talvez, desgraçadamente, exija interferência externa, por mais que eu saiba que sempre haverá consequências fatais, nos casos em que os árabes percam o controle e o poder de autogerir seus levantes populares. Apesar disso, sempre entendi que, porque a Líbia é étnica e culturalmente homogênea – e seus jovens vivem em nação unificada, tão politicamente conscientes quanto outros árabes – seria razoável esperar que se nutram de suas próprias lutas anticoloniais e das próprias forças sociais, para livrar-se de seu ditador sui generis sob vários aspectos e respectiva família. 

Mas a Síria não pode ser vista como alvo carente de qualquer tipo de intervenção externa, venha sob o disfarce que vier, e é preciso que todos prestemos atenção à realidade da política e do regime locais. É muito importante que o país não seja artificialmente arrastado para qualquer tipo de quadro de instabilidade política.  

A Síria é, simultaneamente, terra natal do nacionalismo árabe e, também, nação e sociedade diversificadas de 22-23 milhões de habitantes. Estatisticamente, tudo parece homogêneo: pelo menos 94% da população é árabe; e 90% dos árabes são muçulmanos, na Síria. Os árabes cristãos, sobretudo da Igreja Ocidental Ortodoxa, são 10% da população total e têm espaço de destaque, sobretudo no campo intelectual, no renascimento histórico cultural árabe, nos movimentos nacionalistas, no governo e na sociedade. A pequena comunidade cristã armênia – o oriente árabe recebeu os armênios como refugiados do Império Otomano durante a 1ª Grande Guerra – está integrada e arabizada. Dentre os árabes muçulmanos, os sunitas são mais de 75%; os xiitas alawitas são 7%; e há 500 mil druzos (2%). Não há de fato nenhum outro grupo etnolinguístico de destaque além dos 1,2-1,4 milhão de curdos (muçulmanos sunitas), que são 5-6% da população da Síria. 

O estado colonial francês desgraçou a Síria, como desgraçou todo o norte árabe da África: jogou um grupo sectário contra outro, desde o século 19. Roubou grande porção de território sírio para ampliar o território libanês no início do século 20 e ‘inventou’ o atual estado libanês “confessional”, mas não conseguiu dividir a Síria – decididamente constitucional, nacionalista e republicana.

Desde que o partido Ba'ath ascendeu ao poder em 1963, o regime sírio tem conseguido, como viu-se no Iraque de Saddam, misturar partido, burocracia e militares na estrutura do Estado, sufocando a sociedade civil e a democracia. Esse regime tem base histórica nas minorias sectárias regionais e em grupos de ricos empresários (aos quais, com o tempo, juntaram-se outros interesses comerciais); os xiitas alawitas (a família Assad e os chefes do exército e dos serviços de segurança) mantém-se firmemente no controle do estado. O exército, para os alawitas, é, históricamente, importante via de mobilidade social.

O problema aí está. A Síria, como estado árabe que não está na órbita do controle dos EUA na Região, tem sido apresentada como “radical”, tem sido demonizada e atacada como ‘apoiadora’ de ‘terroristas’ (pelas importantes relações que a Síria mantém com o Hizballah e o Hamas), como aliada do Irã e, claro, como “inimiga de Israel”.

Todos conhecemos a insistência incansável com que os soldados do exército de ocupação ‘midiática’ que operam pela televisão, pelas rádios e pelos jornais ocidentais batem nessas teclas. Praticamente jamais se ouviu, na mídia ocidental, qualquer tipo de discussão objetiva, a partir de dados confiáveis, sobre a Síria. É como se a Síria não tivesse qualquer direito a qualquer tipo de soberania, não pudesse ter interesses nacionais nem pudesse defender esses direitos e interesses. Especialistas das mais diferentes correntes, grupos de interesses e universidades dizem praticamente qualquer tolice que lhes venha à cabeça, sem que ninguém lhes exija qualquer tipo de contextualização ou de melhor informação. 

Apesar da natureza pragmática do regime e da prontidão com que aceitou a paz com Israel em troca da devolução das Colinas do Golan que Israel ocupara, a Síria jamais deixou de ser alvo dos ataques israelenses, com Israel sempre interessada em dividir a Síria, fazendo dela alguma espécie de Iraque ou de Líbano. 

Se o centro – que atualmente opera na Líbia como ponto de equilibração –, perder o controle, há alto risco de a Síria – com interferência estrangeira, mas, também, mesmo sem ela – voltar-se internamente contra ela mesma, movimento que pode ter repercussões terríveis na região e também para a Turquia, o Iraque, os palestinos – com a possibilidade de abrir caminho para obstrução violenta, pelo ocidente, das revoluções árabes.  

A Israel, sim, interessa muito criar mais um adversário neutralizado à força, desvitalizado, paroquial e geograficamente dividido e completamente dependente do ocidente. É de fato, o sonho dos isralenses os quais, com a Síria destruída, ficariam na posição de única potência regional – livre para ocupar o que decidisse ocupar, por muitos anos. Considerando-se a experiência histórica, não se pode subestimar a capacidade de Israel como fonte geradora de ações subversivas com o exclusivo objetivo de acirrar disputas sectárias e incitar à violência étnica. Israel sempre agiu desse modo, sem dar qualquer atenção a qualquer ‘política’ que os EUA declarem ter ou desejar implantar na região. E hoje, de fato, sequer se consegue ver claramente alguma política dos EUA para a região, que não seja política de invasão e ocupação.

Relatórios recentes sugerem que o governo Obama reconhece os riscos que se criariam se a Síria for ‘desconstituída’, se for convertida em “estado falhado”; há quem diga, também, que o governo Obama tem alertado os estados árabes sobre esse risco. Mas não tenho dúvida alguma de que, tendo chances, Washington não vacilará em tentar dividir a Síria; para isso, bastará que os EUA sejam tão rápidos em atacar a Síria quanto continuam lerdos em qualquer ação contra os ditadores-coroados-assassinos ‘aliados’ do Golfo. Nesse caso, deve-se temer, sim, que os EUA mobilizem o CSONU e de lá arranquem algum tipo de sanção – se não outra ‘licença para intervir’ ilegalmente em estado soberano –, nesse caso, contra a Síria. 

Com a Síria devidamente esterilizada e presa sob cabresto à órbita dos EUA, estará aberta a via para os EUA atacarem diretamente o Hizballah libanês – com o apoio entusiasmado de Israel. Gosto de pensar que isso não passe de mais um delírio dos neoconservadores.

Muitos especialistas têm argumentado que os EUA tem boas intenções e que visariam  exclusivamente a facilitar alguma paz entre Síria e Israel, e que o fracasso de Assad, que não implantou reformas políticas de democratização ao longo de onze anos de governo, fariam dele agente sem legitimidade ou sem competência para fazer qualquer paz. Dizem também que, dado que Asad representaria uma minoria [religiosa] que controla o Estado contra a maioria [religiosa] dos cidadãos, o governo Assad não conseguiria “abandonar o estado de guerra entre Síria e Israel”. Se se levam a sério esses argumentos, deve-se então temer sanções ainda mais rigorosas contra a Síria, inclusive com denúncias de violações de direitos humanos atribuídas a membros do regime, para forçar o governo sírio (com Assad ou sem) a “fazer a paz com Israel”. 

Segundo essa lógica tortuosa, pela qual a principal obsessão dos EUA não é qualquer democracia, mas é, sempre, Israel, a Síria não aceita fazer “a paz com Israel” ‘porque’ não respeita direitos humanos nem faz reformas democráticas. Isso, apesar de haver fatos e registro documentais de que a Síria pode e deseja e é capaz de negociar um acordo de paz razoável; e que Israel, não a Síria, sempre rejeitou qualquer negociação. Argumentar de outro modo no caso da Síria é exatamente inverter a realidade, argumentos e ‘negociações’ que os palestinos conhecem bem. Porém, se se combinam a argumentação viciosa do governo Obama e a sanha dos Republicanos que querem destruir a Síria custe o que custar, empurrados pela ação incansável do exército ‘midiático’ do lobby pró-Israel, teremos mistura letal.

Esse é o cenário de pesadelo que ameaça a vasta maioria dos sírios, muçulmanos e cristão, sunitas e xiitas. Notícias de que não têm havido manifestações populares, exceto manifestações de apoio a Bashar Assad em Damasco, Aleppo e Homs (onde, somados, há 4,3 milhões de habitantes), diferente do que se viu, por exemplo, em Cairo, Tunis e Benghazi são boas notícias. Sobretudo para os habitantes de Damasco, que, com justa razão, temem as consequências do caos que ameaça tão gravemente seu país. O medo de que os EUA e aliados façam contra a Síria o que foi feito contra o Iraque é medo presente e profundo, entre os sírios.

Os sírios são pensadores e estrategistas sofisticados, sutis, pragmáticos e cuidadosos. Bashar al-Asad é governante popular, popularidade que inclui sua vida pessoal e a família e não tem a disposição autoritária do pai, que governou com mão de ferro. Até agora, nenhuma manifestação popular exigiu sua deposição: os manifestantes pedem reformas. E, sim, as reformas não são fáceis, por causa da própria natureza do regime, resultado de complexa negociação política e articulações de acomodações, que geraram sistema muito complexo, nada favorável à geração de pensamento, de partidos e de líderes pró reformas.

Apesar das divisões regionais e comunais que acompanham toda a história síria, ninguém está autorizado a criar caricaturas do que seja a estrutura social síria, ou assumir um secatarismo sem cura. Os levantes populares no mundo árabe são manifestação de uma nova geração, cuja identidade já pouco tem de paroquial ou sectária, e que tem visão de mundo mais cívica e democrática, com aspirações de inclusão e igualdade social, e de melhor condições para as práticas democráticas, com atenção ao consenso na sociedade e respeito à soberania nacional. O atraso, no mundo árabe, não está nas populações nem nas sociedades árabes: está nos regimes, que vivem a anos-luz de distância das mudanças que já operam, há muito tempo, dentro das sociedades orientais.  

Assad Bashar é caso diferente, também entre os regimes árabes, porque tem concepção vigorosamente secular e moderna da vida sociopolítica na Síria. Não gozaria da popularidade de que se orgulha, com razão, se permitisse que os velhos ressentimentos dos sunitas contra os alawitas dominassem o estado, ou se fossem muito profundas ou disseminadas no corpo social. Tampouco a influência da Fraternidade Muçulmana Síria é tão deletéria quanto dizem alguns, e “os irmãos” da FM também se juntaram às manifestações que pedem reformas, justiça, respeito aos direitos humanos e democracia. Todos esses são bons sinais quanto à capacidade de a Síria construir suas próprias vias de reformas.

Bashar não se opõe e parece ser elemento chave para conduzir as reformas. É jovem, foi educado no ocidente, é popular, é capaz de dar início a um processo democráticos de reformas. Os sírios sabem perfeitamente bem que governos árabes – jamais as sociedades árabes – no passado, sempre foram responsáveis por, de fato, praticamente convidar os poderes imperiais para que reinassem sobre, também, os próprios reis, monarcas, presidentes e ditadores árabes em geral, fosse por delírios, alucinações e fantasias dos próprios governantes, como no caso de Saddam Hussein, fosse porque a sobrevivência de governos e governantes dependesse diretamente da intervenção estrangeira. Hoje, os sírios esperam que o partido e os militares comportem-se de outro modo, sabem que não são governados por outro rei-ditador-doido, como em tantos casos no Oriente Médio, e contam com que o partido e os militares não impeçam as mudanças desejadas por Assad e pelo povo. O fato de que, até aqui, o governo síria tenha dado ouvidos ao que lhe diz a rua, e não tenha reagido com violência contra as manifestações é bom sinal. Mas não basta para tranquilizar ninguém, se se observa além da Síria, também os inimigos da Síria.

Recente estudo do International Crisis Group (“Conflict Risk Alert: Syria”, 25/3/2011) recomendava que Bashar venha a público, peça perdão ao povo sírio pela violência contra manifestantes, apresente condolências às famílias das vítimas e que aja rapidamente, amplamente e decisivamente para instituir amplas reformas políticas e econômicas.

Dificilmente poderia concordar mais com esse conselho, ao mesmo tempo em que temo que as coisas não venham a acontecer assim e que não será possível fugir do pesadelo de uma intervenção militar que o povo sírio tanto teme.

Os sírios desejam governo democrático e tem pleno direito a melhor democracia. Mas tudo tem de ser feito em paz, de modo a preservar a unidade e a integridade nacional. É preciso derrotar o autoritarismo, a corrupção, as elites enriquecidas à custa da miséria do povo, e uma polícia secreta historicamente violenta e brutal – e são indispensáveis algumas reformas econômicas. Mas a Síria tem de fazer tudo isso por seus próprios meios. É indispensável manter olhos muito atentos, no mundo árabe, e também entre os militantes democráticos no ocidente, sobre o específico contexto sírio.

*Issa Khalaf é Ph.D. em Ciência Política e especialista em Oriente Médio na Universidade de Oxford. Contribuiu com este artigo para o Palestine Chronicle.com

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