sexta-feira, 11 de março de 2011

O nascimento da modernidade islâmica

Pepe Escobar

12/3/2011, Pepe Escobar, Asia Times Online
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Ver também:
9/12/2010, Syed Saleem Shahzad, redecastorphoto [orig. Asia Times Online]
9/3/2011, Syed Saleem Shahzad, Asia Times Online

Há dez anos, na estrada no “AfPak”, antes e depois do 11/9, o livro que eu carregava na mochila era uma edição francesa de Jihad,, de Gilles Kepel (Jihad: Expansão e Declínio do Islamismo, Rio de Janeiro, Ed. Biblioteca do Exército, 2003). Noite após noite, em inúmeras casas de tijolos e sob número infindável de xícaras de chá verde, página a página fui-me deixando convencer pela tese central do livro: o Islã político estava, não crescendo, mas em completa decadência. 

Por um lado, havia os figurinos tipo al-Qaeda, autodesignadas vanguardas determinadas a despertar as massas muçulmanas do estupor em que vivem, para desencadear uma revolução islâmica global. Foram, de fato, versões muçulmanas das Brigate Rosse italianas e a Rote Armee Fraktion na Alemanha. 

Por outro lado, havia islâmicos como os do Partido Justiça e Desenvolvimento, da Turquia, disposto e interessado em mergulhar numa democracia parlamentar de tipo ocidental, apostando na soberania do povo, não na de Alá. 

No auge da “guerra ao terror” – com aqueles B-52s bombardeando Tora Bora sem saber que Osama bin Laden já escapara para o Paquistão –, a tendência no ocidente foi decretar que, se não todos, com certeza a maioria dos muçulmanos seriam jihadistas perfeitamente doidos. 

Concordo com Kepel, para quem aquele “choque de civilizações” não passou de conceito oco, mal pesquisado e mal construído, instrumentalizado pelos neoconservadores para legitimar sua “cruzada”. Mas ainda faltava que a história fornecesse fatos e a demonstração. 

Passados dez anos, pode-se afinal dizer que a análise de Kepel acertou a mosca do alvo. O Islamismo hard-core, à moda da al-Qaeda, é completo desastre. Em todas as variantes – no Iraque, no Maghreb, na Península Arábica – a al-Qaeda nada é além de seita desesperada, condenada ao lixo da história, exatamente equivalente a esses ditadores que o ocidente apoia, como os já depostos Zine el-Abidine Ben Ali, Tunísia, e Hosni Mubarak, Egito, sempre reverenciados no ocidente como se fossem pilares na luta contra o Islã radical. 

Kepel dirige hoje o programa de estudos de Mediterrâneo e Oriente Médio da legendária Escola de Ciências Políticas em Paris. Em artigo para o diário italiano La Repubblica (“As profecias equivocadas sobre o islamismo”, 5/3/2011, La Repubblica, tradução Moisés Sbardelotto), Kepel dá por decidida a vitória do islã como democracia, sobre o islã como vanguarda “revolucionária”. Diz o artigo:

“Hoje, os povos árabes emergiram desse dilema – espremidos entre Ben Ali ou Bin Laden. Fizeram novamente um ingresso em uma história universal que viu cair as ditaduras na América Latina, os regimes comunistas na Europa oriental e também os regimes militares nos países muçulmanos não árabes, como a Indonésia e a Turquia” (Loc.cit.).

O local encontra o universal

E esse é o ponto crucial: os povos árabes começam agora a construir sua própria, hesitante modernidade. Kepel indaga por que a primeira revolução teria acontecido na Tunísia e, na pesquisa, descobre que o principal slogan dos manifestantes tunisianos em 2011, dito em francês, “Ben Ali, degage” (“Ben Ali, saia daí!”), foi apaixonadamente adotado e abraçado – ipsis litteris pelos egípcios, em país onde pouquíssimas pessoas falam francês. O slogan chegou às ruas do Egito, porque as ruas ouviram a frase pela televisão, na rede al-Jazeera. Com isso, Kepel pode concluir que as revoluções em curso têm raízes igualmente bem assentadas tanto na cultura local quanto em aspirações universais. 

E, sim, apesar de os sintomas serem semelhantes – desemprego, miséria, corrupção, total carência de liberdade – as revoluções árabes são diferentes umas das outras, e estão sendo enfrentadas pelas potências, quaisquer, com estratégias diferentes. Algumas põem lenha na fogueira das diferenças confessionais ou tribais; outras, nas burras de dinheiro ou na imunização contra a interferência ocidental. 

O problema é que a diversidade de métodos que os tiranos empregam para esmagar essas revoluções está sendo mal interpretada pelos hagiógrafos do império – de modo a melhor legitimar a aura que reivindicam para eles mesmo como seletos agentes repressivos, mas “do bem”. Por isso tem-se um Robert D Kaplan ligado ao Pentágono tentando induzir a opinião pública a crer que haveria déspotas iluminados (como a dinastia al-Khalifa no Bahrain, ou os dois reis Abdullahs, um na Arábia Saudita outro na Jordânia) e déspotas “do mal”, ditadores amaldiçoados (Muammar Gaddafi). 

Como se a maioria xiita no Bahrain precisasse dos sunitas al-Khalifas para promover a formação de uma classe média, sem a qual nenhuma democracia é possível. E os al-Khalifas jamais deram qualquer mínima bola para a promoção de qualquer classe média, porque só uma pequena oligarquia sunita ganha naquele sistema autocrático “amigo dos negócios”. 

Se o raciocínio que permite defender tiranos ‘seletos’ é que em alguns países não há base institucional para uma transição para a democracia... então a Líbia tribal liderada pelo “demônio” Gaddafi, “o louco”, acaba embrulhada no mesmo pacote com os países do Golfo liderados por reis e emires “aceitáveis”. 

Take it to the bridge[1]

Assim como a modernidade ocidental está em crise, a crise da razão islâmica não implica que o mundo esteja vivendo alguma espécie de guerra religiosa. A ideia de que haveria abismo intransponível entre o islã e o ocidente é conversa dos pirados que falam pelo canal Fox News. O mundo assiste hoje a uma recristianização da Europa, tanto quanto a uma re-evangelização dos EUA. O que prova que modernidade e religião são compatíveis, no mínimo, que são tão compatíveis no ocidente quanto no Oriente Médio. 

Estão vindo de diferentes latitudes culturais – o ocidente vem do declínio da modernidade; o Oriente Médio vem do declínio do fundamentalismo religioso – e convergem para um mesmo lugar: uma ponte de diálogo entre oriente e ocidente. 

Assim, pois, o que Kepel tenta demonstrar é que a Europa e o mundo árabe não têm alternativa senão começar a tentar construir uma civilização híbrida – não só em termos de movimento de capital, bens e serviços, mas em termos de investimentos sólidos em educação e cultura – do Mar do Norte ao Golfo Persa, com o Mediterrâneo como centro de convergência-dispersão. Isso implica que a Fortaleza Europa terá de re-examinar seu lugar no mundo, e construir diálogo mediterrâneo que não seja comandando pela Organização do Tratado do Atlântico Norte, OTAN. 

A estrada é longa e traiçoeira – povoada de Gaddafis e al-Khalifas e Abdullahs que têm de ser caçados como ladrões de estrada. O mundo árabe viveu sob traumas por tempo demais – quase um século, desde que Grã-Bretanha e França, as potências coloniais, traíram a nação árabe e destruíram suas terras. 

De fato, só agora começa o verdadeiro teste crucial, decisivo, para o ocidente, na “missão civilizacional” que se autoatribuiu: acolher com bem vindo, ajudar, com empenho profundo e sincero, o mundo árabe, na sua luta para alcançar a modernidade. 



Notas de tradução

*Este artigo está traduzido e pode ser lido em: Líbia: teste para a AL-Qaede reformada
[1] É verso que aparece em várias canções, já incorporado a gírias urbanas, de difícil tradução. Por exemplo, que lembro já, é verso de James Brown, em Sex Machine. Traduzido literalmente significa “leve [alguma coisa] até a ponte”. Como metáfora, significa sempre alguma coisa como “leve [alguém] até a metade do caminho (o inimigo andará também até a metade e, no meio do caminho, eles poderão conversar e entender-se)”. Pode ser interpretada também como mais uma versão do brasileiríssimo “Jogo se joga no meio do campo”. Tudo são interpretações. Podem-se ler os versos de James Brown na internet, mais sexy-eróticos que outras interpretações (mas não se ouve nada, porque a gravação foi retirada da Internet pela gravadora)

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