segunda-feira, 7 de março de 2011

A Líbia traz a China para o centro do palco


MK Bhadrakumar

7/3/2011, *M K Bhadrakumar, Asia Times Online
Traduzido pelo Coletivo da Vila Vudu

Launcelot Gobbo disse ao seu velho pai, em momento pungente de “O Mercador de Veneza” de William Shakespeare, que “A verdade virá à luz; não se esconde por muito tempo um assassinato” [1]. Mas a tragédia está em que, como muitas vezes acontece, quando a verdade “vem à luz”, Gobbo-pai pode já estar cego e incapaz de ver o filho. 

Para as centenas de milhares de iraquianos que morreram desde 2003, não há consolo em verdade alguma que venha à luz – ao saber que a guerra é mentira alimentada pela ganância e pela arrogância do império. Motivo pelo qual é importante que a Líbia, com a intervenção proposta pelos EUA, não se converta em mais uma terra ignota de matanças. 

Matéria publicada pelo London Sunday Times, de que uma unidade das forças especiais da Grã-Bretanha teria sido capturada no leste da Líbia chama a atenção para a evidência de que “a verdade”, outra vez está com a cabeça a prêmio. Quem quer que acompanhe os eventos na Líbia já sabia que o controle que Muammar Gaddafi tinha sobre as províncias do leste da Líbia, especialmente em Benghazi, já era muito frágil, no melhor caso. A Líbia é um complexo mosaico tribal e a inteligência ocidental sempre explorou esse calcanhar de Aquiles de Gaddafi. 

A guerra é a única opção 

Liam Fox, secretário da Defesa britânico, publicou recentemente um artigo no London Sunday Telegraph [2] no qual diz que o impacto do levante do Oriente Médio seria de grande alcance e ressoaria por muitos anos; e levantou a questão de como as forças britânicas poderiam responder a situações de crise. Na verdade, Fox prometeu reforçar as forças especiais britânicas para responder à revolta árabe. Aqui, alguns excertos:

Os eventos dos últimos dias podem gerar choque e mudanças estratégicas em como vemos o mundo. A velocidade dos eventos no Norte da África mostrou o quão rapidamente as circunstâncias podem mudar e o quão rapidamente o Reino Unido pode ser arrastado por elas. Uma ilha como a Grã-Bretanha, com tantos interesses em tantas partes do mundo (...) é inevitavelmente afetada pela estabilidade global (...) Se preciso for, podemos mobilizar 30 mil homens, incluindo efetivos da Marinha e da Força Aérea para a intervenção. Embora eu não possa entrar em detalhes, nossas Forças Especiais, respeitadas e duramente testadas em combate, terão suas capacidades significativamente reforçadas.

Não há qualquer dúvida de que a “opção intervenção” está pondo em marcha o juggernaut, a máquina de destruição anglo-americana. Logo atrás veio a França, preocupada com não perder os “dividendos de paz” que acompanham a intervenção – o petróleo líbio. Exatamente tudo que aconteceu na guerra do Iraque, com a única diferença de que, dessa vez, em modo “avançar rápido”. 

Os senadores dos EUA John McCain e Joseph Lieberman empurraram seus planos sobre o presidente Barack Obama imediatamente depois de chegarem de volta a Washington semana passada, depois de consultas em Telavive. Exigiram que Obama reaja rapidamente contra Gaddafi. Lieberman foi claro: “É hora de agir. Não de declarações.” 

McCain exigiu passos específicos: “Os pilotos líbios nem decolarão se houver uma zona aérea de exclusão e podemos por aviões lá para garantir que haja. Reconhecemos algum governo provisório que eles estão tentando por lá, oferecemos ajuda material, mostramos aos mercenários que (...) enfrentarão tribunal por crimes de guerra. Falar grosso e bater firme.” [3] 

E, sim, Obama bateu “firme”. O principal correspondente militar de Politics Daily [4], David Wood, noticiou de Fort Bragg, North Carolina, há quatro dias:

Com ordens da Casa Branca para preparar “todas as opções”, estrategistas militares em todas as forças armadas estão agitados, do quartel general aqui dos XVIII Grupos Aerotransportados [orig. Airborne Corps] e 82ª Divisão Aerotransportada [orig, Airborne Division], ao comando central dos EUA e das Operações Especiais em Tampa, Florida, e às futuras células operacionais da 26ª Unidade Expedicionária da Marinha [orig. Marine Expeditionary Unit], embarcadas no USS Kearsarge, ambiciosa força de ataque rumo à Líbia, a partir do Mar Vermelho (...) Nenhum dos estrategistas envolvidos na operação emitirá declarações à imprensa. 

Mas, privadamente, planejadores, estrategistas e analistas falam de missões para implantar “zonas aéreas de exclusão” e “zonas terrestres de exclusão” [orig. "no-fly" and "no-drive" zones] (...) e também de operações limitadas e de curta duração, de ajuda e socorro humanitários. E, dado que quem planeja tem de prever também os piores cenários, alguns já trabalham em operação de intervenção armada em larga escala.

A agência France-Presse, falando de Atenas na 6ª-feira, noticia que o navio de guerra USS Kearsarge e outro, o USS Ponce, já estão atracados na base naval dos EUA na ilha de Creta e que o grupo anfíbio inclui 800 marines e uma frota de helicópteros. O porta-aviões USS Enterprise (que transporta jatos de combate suficientes para implantar uma zona aérea de exclusão também está de prontidão para enfrentar a crise líbia. 

Definir um momento histórico?

Em resumo, a operação em andamento, em Washington, para pintar um quadro de que os planos para a Líbia acompanharão o desenrolar dos acontecimentos, não convence. Muito claramente, os EUA trabalham para definir um momento histórico: interesses vitais para a sobrevivência econômica do ocidente estão sob ameaça. E só os EUA podem salvá-los, mesmo que o teatro de guerra esteja a poucos quilômetros da Europa, vizinho de praia.

Diferente do que se viu no caso da guerra do Iraque, a Europa em peso apóia os EUA. Dessa vez, não há vozes dissonantes, como a da França de Jacques Chirac ou da Alemanha de Gerhard Schroeder, para zombar da iminente intervenção norte-americana. Há interesses econômicos e comerciais vitais para a Europa, em disputa na Líbia. 

Mas as naves de guerra de Obama recebem ventos também de outros lados. Primeiro, de uma Rússia muito “cooperativa”. A Rússia não se opõe aos planos dos EUA, o que facilita muito as coisas para Obama no Conselho de Segurança da ONU – e afasta o estigma de “unilateralismo”. Diplomatas russos trabalharam muito para fazer aprovar por unanimidade a Resolução contra a Líbia – ajuda nada desprezível, à diplomacia dos EUA. 

Vê-se claramente em operação o “reset” de Obama com Moscou. Obama atendeu com sucesso os pedidos da Rússia, que queria ser tratada como “potência equiparada”. Agora, há de vir ainda mais tratados comerciais EUA-Rússia, nos próximos meses, depois da crise do Oriente Médio. O Irã já manifestou inquietação, por a Rússia ter recomeçado a brincar de esconde-esconde na questão do funcionamento da usina nuclear de Bushehr. 

Seja como for, coincidência ou não, o vice-presidente Joseph Biden dos EUA está em visita a Moscou e os EUA já definiram o escudo antimísseis e a associação da Rússia à Organização Internacional de Comércio como áreas prioritárias das políticas dos EUA em 2011. 

Fato é que esse negócio de democracia e algum “despertar árabe” jamais excitaram muito a Rússia. Na visão-de-mundo “desideologizada” da Rússia, 100% autista no cálculo dos interesses, ninguém exige que o país ande pelo mundo a promover qualquer democracia. Democracia sempre pode espalhar-se, como doença contagiosa, e, afinal, o Grande Oriente Médio e o “mundo muçulmano” também incluem o Cáucaso e as estepes da Ásia Central. 

Na China, é provável que haja algum incômodo com o risco de contágio pelo vírus democrático. É preocupação periférica, no máximo, um incômodo. Mas a China é país único, sem similares, e comportou-se de modo altamente pouco usual ao aprovar a Resolução da ONU a favor das sanções dos EUA contra a Líbia e a denúncia da Líbia à Corte Internacional. 

A China sempre tratou a não-intervenção como cláusula pétrea. Foi consistente nos casos de Myanmar, Zimbabwe ou Coréia do Norte. Estará o espectro de Gaddafi ameaçando a estabilidade, o mais sagrados dos sagrados princípios chineses? Não há dúvidas de que a China atem alto interesse na estabilidade do Oriente Médio e é possível que, no que tenha a ver com a Líbia, os interesses russos coincidam com os interesses do ocidente. 

Mas isso só não explica a nova atitude da China no que tenha a ver com soberania nacional. Explicação possível pode ser que a China tenha percebido que passou boa parte do ano passado na defensiva, pés e mãos presos no tronco (acertadamente ou não), apresentada como poder “assertivo” –. e 2010 acabou por ser o annus horribilis da política externa da China. A Líbia pode estar sendo analisada como boa chance de a China aparecer como “acionista” dos países ocidentais. 

O modo como a China evacuou seus cidadãos da Líbia também é digno de nota. Uma fragata chinesa foi mandada desnecessariamente para lá e quatro militares de transporte decolaram de Xinjiang e surgiram repentinamente nos céus do Mediterrâneo, em movimento sem precedentes. E a China não evacuou só chineses: também ajudou a evacuar centenas de europeus e de cidadãos de Bangladesh e do Vietnã. A China pode ter querido mostrar disposição para arcar com todo o peso de ser potência mundial. 

De um modo ou de outro, a grande questão permanece: foi movimento excepcional, que não se repetirá, ou está chegando o momento de a China se autodefinir como colaboradora, com os EUA, na tarefa de garantir a segurança dos “comuns globais”? Saberemos, quando e se os EUA pressionarem o Conselho de Segurança da ONU a favor de estabelecer-se uma zona aérea de exclusão sobre a Líbia. 

O fato de os EUA e parceiros estarem discutindo fora da ONU a opção “no-fly zone” parece sugerir que Obama ainda não sabe até que ponto a China estaria disposta a ceder, dos limites das suas linhas vermelhas. 

Está tomando forma um quadro sem precedentes e imensamente significativo no que tenha a ver com a segurança internacional. A China tem todos os motivos para manter a introspecção. Como Launcelot Gobbo perguntou ao seu velho pai cego: “Pareço um porrete, uma pá, uma estaca, uma alavanca? Tu me conheces, meu pai?” 

Embaixador*M K Bhadrakumar foi diplomata de carreira; serviu no Ministério de Relações Exteriores da Índia. Ocupou postos diplomáticos em vários países, incluindo União Soviética, Coreia do Sul, Sri Lanka, Alemanha, Afeganistão, Paquistão, Uzbequistão, Kuwait e Turquia.


Notas de tradução

1. O Mercador de Veneza (1596), ato II, cena 2. excelente análise do personagem, didática, em inglês. Talvez ajude a ler-interpretar o artigo, construído sobre metáfora rica e complexa. Infelizmente, é análise longa demais para ser traduzida, pelo menos agora, com todos os tradutores da Vila Vudu ocupadíssimos. Mas sem dúvida é leitura útil, para não deixar passar sem ver a ideia chave desse artigo: que é possível que todos descubramos, de repente, que os EUA “são o pai” da China, mesmo que nem os EUA (o “pai cego” da metáfora) já não sejam capazes de vê-la como tal, hoje. É metáfora temerária, claro, que põe a China como “gerada” pelos EUA e, no limite, pelo capitalismo. É hipótese marxiana “de fundo”. Muitos concordarão e muitos discordarão “no grito”, sem  pensar na complexíssima extensão dessa metáfora. Não se pode dar por garantido que Shakespeare e a China sejam assim tão facilmente aproximáveis, ainda que só por metáfora. A tragédia, mesmo, mesmo, é que NINGUÉM escapará incólume à tragédia brasileira, de ser educado sobre o mundo do século 21, com “lições”de Mervais Pereiras e Williams Waacks e Clóvis Rossi sobre política internacional.




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