quinta-feira, 17 de março de 2011

Irã e EUA, juntos, do mesmo lado da cerca

Iranianos cerebrinos “versus” sauditas brucutus

M. K. Bhadrakumar
18/3/2011, *M K Bhadrakumar, Asia Times Online
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu


A luta entre o cérebro e a carne é traço constante da política internacional. Os fluxos de consciência “turco” e “persa” na paisagem da Ásia Central oferecem fino exemplo disso. Os mesmos traços cerebrinos dos iranianos aparecem na luta entre Israel e Irã – e também na luta entre o falecido Saddam Hussein do Iraque e a liderança iraniana. 

Os desenvolvimentos no Bahrain trazem à luz, mais uma vez, a confiança que os iranianos depositam no “cérebro” – utilizam quase sempre excepcionalmente bem os recursos intelectuais que haja, em situações nas quais os mais tolos levam imediatamente a mão ao coldre, tomados de paixão intensa. 

Se alguém em Washington se desse o trabalho de observar, teria visto que, desde 15 de março, os movimentos de Teerã são caso a ser estudado, para alcançar úteis conclusões sobre como o Irã vive e opera.

Mas não andemos nem tanto, nem tão depressa. No momento, o que interessa é ver o que o que o Irã pensa do e o que considera no quadro atual do Bahrain. A população do Bahrain é, na maior parte, 70%, constituída de xiitas, e embora esses xiitas movam-se em busca de orientação espiritual mais no rumo de Najaf no Iraque, que de Qom no Irã, quase 1/3 deles são árabes de origem persa, cujo bem-estar é tema de legítima preocupação em Teerã. 

Em segundo lugar, a 5ª Frota dos EUA tem base no Bahrain e, dentre outras tarefas vitais, lá está para “espionar” o Irã. De fato, fator chave dos laços estratégicos que ligam os EUA e o Bahrain é o cerco de inteligência e espionagem que ambos construíram em torno do Irã. Qualquer “libertação” do Bahrain, das garras da dominação dos EUA, é tema de alta prioridade para a segurança nacional em Teerã. 

Mais ampla, envolvendo tudo isso, há a questão da influência dos EUA em toda a região. E há as aspirações do Irã de ser potência regional, contra a obcecada recusa da Arábia Saudita, que não admite que o Irã tenha lugar no Golfo Persa – recusa que aparece corporificada no Conselho de Cooperação do Golfo [ing. Gulf Cooperation Council (GCC)]. 

O Irã pressiona por um lugar ao sol no Golfo Persa, “lar” comum de todos. Do ponto de vista dos iranianos, qualquer “mudança de regime” [à moda dos EUA] na Arábia Saudita tornará o país mais “autêntico” e muito menos sensível a qualquer acomodação com o Irã. O que mais interessa ao Irã é o contrário disso: qualquer movimento na direção do republicanismo – movimento de afastamento das monarquias arcaicas –, pelos estados regionais, fatalmente tornará aqueles estados mais receptivos às ideologias iranianas de resistência, justiça e liberdade; nesse caso, o papel regional do Irã poderia ganhar novo fôlego. 

Mas ao Irã não interessa nenhum tipo de rompimento com a Arábia Saudita – nem com qualquer de seus vizinhos. A hipótese de as forças da militância religiosa ou do terrorismo explorarem os tumultos regionais para ganhar espaço e prestígio horroriza realmente o Teerã. 

Todos esses são parâmetros tradicionais do modo como o Irã aborda a região do Golfo Persa.

Assim, não se cogita, de modo algum, de intervenção iraniana no Bahrain, nem estrategicamente nem taticamente. (O Bahrain foi desmembrado do território iraniano.) Teerã sabe perfeitamente que, se se adiantar e fizer qualquer movimento na direção de opor-se à presença militar dos sauditas no Bahrain, será como caminhar diretamente para dentro da arapuca. Riad e Washington examinam com pente fino a cena no Bahrain, à caça de qualquer mínimo sinal de envolvimento do Irã. 

Ao raiar do dia seguinte, depois da intervenção militar dos sauditas no Bahrain, Teerã já conhecia detalhadamente todo o roteiro. Foi quase como ver acontecer, afinal, evento longamente esperado. O Irã parece jamais ter tido qualquer dúvida de que a resposta dos sauditas aos desenvolvimentos no Bahrain apareceria no campo “muscular”, “carnal”, da ação militar. A resposta de Teerã será, como sempre, “cerebrada” e política. 

Até agora, já se veem as seguintes “tendências” da estratégia iraniana. 

Em primeiro lugar: a crise no Bahrain não pode ser caricaturada como disputa sectária entre sunitas e xiitas. Essa caricatura empurraria o Irã para um dos lados e o separaria da rua árabe sunita – o que muito agradaria aos detratores do Irã. A aspiração do Irã, de que está identificado com (e, mesmo, que tem algum grau de liderança no) “despertar árabe” estaria condenada ao fracasso. Ainda mais, o investimento político e a confiança nos levantes do Oriente Médio – pró “mudança de regime” – poderiam ser ofuscados. 

Em segundo lugar, considerado o acima exposto, o establishment religioso iraniano absteve-se de qualquer comentário sobre os desenvolvimentos no Bahrain. Atitude inteligente, também, porque quem optou pelo show de músculos e violência é o hoje “Guardião dos Locais Sagrados”. 

Ao Irã interessa deixar que o tempo se encarregue de converter os desenvolvimentos no Bahrain em uma muito aguda “questão muçulmana”. O “Guardião” saudita acertou tiro no pé e atrairá sobre ele o ridículo, tão logo soldados sauditas comecem a ser vistos nas telas de televisão do mundo árabe massacrando civis muçulmanos em terra estrangeira. Nesse momento, de pouco valerá aos sauditas alegarem, à guisa de álibi, que foram autorizados a invadir a Bahrain... pelo Conselho de Cooperação do Golfo! 

Em terceiro lugar, o que mais interessa ao Irã é “internacionalizar” a invasão do Bahrein pelos sauditas; não deixar que passe a ser vista como questão entre o Irã e os sauditas. Disso foi encarregado o ministro das Relações Exteriores do Irã. O ministro Ali Salehi está constantemente ao telefone. O Irã já abordou formalmente a ONU e a Organização da Conferencia Islâmica [ing. Organization of Islamic Conference (OIC)] – e, interessante, também abordou a Liga Árabe, da qual o Irã não é estado-membro. O secretário-geral da Liga Árabe, Amr Moussa pisa em ovos, depois de ter-se manifestado muito estridentemente contra Muammar Gaddafi e o uso da violência na Líbia. Teerã sabe que Moussa jamais terá coragem de levantar nem o dedo mínimo contra Riad, mas que gostará de introduzir na agenda pan-árabe a questão do Bahrain. 

Nas comunicações com a ONU, a Organização da Conferencia Islâmica e a Liga Árabe, Salehi perguntou retoricamente: “Como se pode aceitar que um governo convide exércitos estrangeiros para atacar seus próprios cidadãos?”. Lembrou que “a invasão militar” do Bahrain aconteceu ao arrepio das leis internacionais – e não importa qual seja o país invasor, nem o motivo alegado para invadir. Disse que a ONU está obrigada a deliberar imediatamente e pôr fim à invasão, por respeito à Carta das Nações Unidas, e para defender seus próprios princípios e os direitos básicos do povo do Bahrain. 

Teerã convocou seu embaixador no Bahrain “para discutir os últimos desenvolvimentos”; e o ministro das Relações Exteriores convocou os chefes de missão na Arábia Saudita e no Bahrain, para reunião em Teerã. 

Em quarto lugar, Teerã fará o que puder para empurrar a rua árabe contra a intervenção militar dos sauditas no Bahrain. A cobertura diária pela mídia iraniana dos eventos diários é extensiva e circula amplamente no mundo árabe. Já há manifestações de rua no Líbano, Iraque e nas províncias orientais da Arábia Saudita. 

É grave embaraço para Riad que o importante clérigo saudita xiita Sheikh Hassan al-Saffar tenha manifestado “decepção” com o que está acontecendo no Bahrain – “banho de sangue, locais sagrados violados e o povo agredido e intimidado” – e conclamado ao diálogo e a que se procure solução política. 

Teerã ganhou importante impulso para sua campanha política na 4ª-feira, quando o Grande Aiatolá do Iraque Ali Sistani, que raramente intervém publicamente em questões políticas, exigiu que o regime do Bahrain impedisse agressão armada a civis desarmados. Sistani disse que os problemas têm de ser resolvidos por vias pacíficas. O primeiro-ministro do Iraque Nuri al-Maliki também veio a público para criticar a intervenção dos sauditas. Os seguidores do clérigo xiita Muqtada al-Sadr saíram às ruas em grandes manifestações contra os sauditas. 

As palavras de Maliki merecem atenção, porque trazem alerta oculto dirigido a Washington. Disse que a intervenção saudita “contribui para complicar a situação na região, de tal modo que, em vez de resolver problemas, inflamará as tensões sectárias.” 

Significativamente, o mesmo alerta apareceu também nas palavras do ministro da Defesa do Irã Ahmad Vahidi, que disse que “a invasão” do Bahrain pelos sauditas fará aumentar as tensões e afetará adversamente a segurança e a estabilidade regionais. “Se essas ações erradas, mal pensadas, ilegais e injustificáveis se converterem em norma, a região pode converter-se em centro de incendiarismo (sic), hostilidade e conflito”. Mensagem, parece, claramente endereçada a Washington. 

Teerã parece encorajada pelo animus regional. O presidente Mahmud Ahmadinejad falou pela primeira vez na 4ª-feira, 48 horas depois da intervenção saudita no Bahrein: “Essa intervenção militar é empreitada ensandecida e condenada (...) As nações da região cobrarão contas aos EUA por esse comportamento atroz. Os EUA sufocam as nações, para tentar salvar o regime sionista”. 

A crítica de Ahmadinejad contra os EUA foi visivelmente contida, dadas as circunstâncias, e soa quase como apelo. Curiosamente, uma das primeiras coisas que o ministro das Relações Exteriores do Irã fez foi telefonar ao embaixador da Suíça, encarregado do “Setor Irã” na embaixada em Teerã. 

Seja como for, o presidente dos EUA Barack Obama, ele também, manifestou sua opinião, poucas horas depois da fala de Ahmadinejad. O porta-voz da Casa Branca Jay Carney revelou que Obama falou por telefone com Abdullah e com o rei Hamad do Bahrain e “manifestou profunda preocupação com a violência (...) e acentuou a necessidade de máxima moderação”.  

Carney acrescentou: “O presidente também destacou a importância de um processo político como única via para tratar pacificamente a legítima indignação do povo do Bahrain e levar a um Bahrain estável, justo, mais unido e responsável por seu povo. O presidente reiterou seu apoio à iniciativa de diálogo nacional liderada pelo príncipe coroado do Bahrain, príncipe Salman.” 

Obama sabe do que fala. O Wall Street Journal noticiou na 4ª-feira que Abdullah mandou tropas para o Bahrain em aberta oposição aos conselhos dos EUA. Quem leia as entrelinhas da fala de Teerã, ali verá, claramente, que Teerã entende o dilema de Obama. 

Retórica é uma coisa, e Teerã servir-se-á dela o mais que possa, mas não se deve deixar perdida, nos meandros das “cerebrações” iranianas, a evidência de que, pela quarta vez, em sequência, nas últimas seis semanas, o Irã e os EUA encontram-se lado a lado, do mesmo lado da cerca: aconteceu no caso da Tunísia, do Egito, da Líbia e, agora, no caso do Bahrain. A grande incógnita é se Obama já entendeu isso. 

Embaixador*M K Bhadrakumar foi diplomata de carreira; serviu no Ministério de Relações Exteriores da Índia. Ocupou postos diplomáticos em vários países, incluindo União Soviética, Coreia do Sul, Sri Lanka, Alemanha, Afeganistão, Paquistão, Uzbequistão, Kuwait e Turquia.

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