segunda-feira, 21 de março de 2011

Alvoradas da Odisséia: as “10 mais”

Pepe Escobar

22/3/2011, Pepe Escobar, Asia Times Online 
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

Guerra é paz. Os manifestantes saíram de quadro nas câmeras, a diplomacia dos mísseis está em tela. Embalados em pacotes da mais impoluta moralidade, Tomahawks, Typhoons, Tornados, Rafales, Mirages, B-2s e F-18s – para não falar dos sexy mísseis cruzadores europeus “Tempestade na Penumbra” [orig. European Storm Shadow] e de um possível ator convidado, o jato invisível à prova de radares F-22 Raptor – falam hoje a língua da democracia. Esses “ativos militares”, expondo suas “capacidades de excelência”, estão hoje “protegendo o povo líbio”. Procure abrigo – ou você vira dano colateral. 

Com vocês, então, nossa lista das 10+ Alvoradas da Odisséia: 

10. A volta de Ulisses. “Operação Alvorada da Odisséia”? Tenho de dar à mão à palmatória, aos redatores-fantasma do Pentágono. A Odisséia de Homero é o máximo que a humanidade produziu em matéria de literatura de viagens. Quer dizer, então, que Odisseu/Ulisses vagam novamente pelo Med. A volta dos heróis que conquistaram Tróia é agora a volta dos caras que trouxeram “choque e pavor”. Benghazi é Ítaca, com Trípoli na lista de espera. Muammar Gaddafi no papel de Cíclope. Mas... quem é Circe? Hillary Clinton? O Ulisses homérico passou por um upgrade: de barquinho de pesca, virou o USS Mount Whitney, a nave madrinha da 6ª Frota da Marinha dos EUA. Assim sendo, é justo dar o papel de Ulisses ao Comandante Samuel Locklear III, encarregado de bombardear tudo e todos. 

Em matéria de Homero by Shakespeare, o troféu vai para o comandante dos comandantes do estado-maior dos EUA, almirante Mike Mullen. Disse à CNN que a Operação Alvorada da Odisséia [ing. Operation Odyssey Dawn] “não é para ver [Gaddafi] partir”. Mas depois disse à NBC que Gaddafi que fique, no sentido de “o fim de tudo isso é muito incerto”. Não surpreende que ninguém nessa Odisseia tenha reivindicado o papel de Penélope. 

9. O AFRICOM invisível.  Total silêncio no rádio sobre o comandante do Comando dos EUA na África, AFRICOM, general Carter Ham. É o encarregado daqueles Tomahawks todos, operante no escritório em Stuttgart, Alemanha. Afinal, nenhum dos 53 países africanos ofereceu-se para hospedar o AFRICOM. Depois da atual fase 1, o comando passa do AFRICOM para o duo anglo-francês, ou para a Organização do Tratado do Atlântico Norte, OTAN, em Bruxelas. O principal negócio do AFRICOM é assegurar deslocamento rápido de “tropas de alta mobilidade” – para combater a jamais extinta “guerra ao terror”, mira a laser sobre todos aqueles campos de petróleo, tentando manter longe da África todo aquele ímpeto chinês. Imbatível, em matéria de operação sem-fim. Em resumo: o AFRICOM é o nome da militarização da África pelo Pentágono – vendido suavemente como “para levar paz e tranquilidade”. Tudo, como parte da doutrina “do pleno espectro de dominação” longamente testada. 

8. O enigma R2P. A lista dos principais imperialistas humanitários – ou falcões liberais – dos EUA inclui a secretária de Estado Hillary Clinton, a embaixadora dos EUA à ONU Susan Rice e os altos conselheiros de Segurança Nacional Samantha Power e Gayle Smith. São os fãs da R2P – “responsabilidade de proteger”, nova norma internacional que supostamente evitaria genocídios, crimes de guerra, limpezas étnicas e crimes contra a humanidade. 
R2P ainda é névoa. Quantos civis terão de ser mortos antes de a norma R2P pegar? Alguns milhares? (cálculo por baixo, das vítimas de Gaddafi antes da Operação Alvorada da Odisseia). E depois da R2P? Aqui, uma lista de candidatos: Iêmen. Bahrain. Arábia Saudita. Israel. Uzbequistão. Costa do Marfim. Sudão. Somália. Coreia do Norte. Myanmar. Irã. Paquistão. E relembrem Xinjiang e o Tibet – China. Ninguém espere proteção da ONU, para os civis, em nenhum desses destinos. 

7. A nova doutrina Obama, ou “Bush 2.0”. O governo Obama converteu as guerras de George W Bush no Iraque e no Afeganistão em ocupações sem fim à vista; iniciou uma guerra ar/terra de antiguerrilha no Paquistão; promoveu uma guerra na Somália; promoveu outra guerra no Iêmen; e, agora, iniciou mais uma guerra na Líbia. A guerra Ocidente/Liga Árabe na Líbia encaixa-se perfeitamente na nova doutrina, de duas garras, de Obama – “o braço dos EUA”, combinado com “alteração do regime” (ex “mudança do regime”) – contra “ditadores do mal”, com troca de cadeiras entre “os nossos” filhos-da-puta. 

Assim se explica que Washington continue a tentar desesperadamente por-se do lado certo da história, pelo menos em um capítulo da grande revolta árabe de 2011 – empurrado por imperativos geoestratégicos que obrigam os EUA a ter, no mínimo, algum controle sobre o curso das revoluções árabes, para poder manter pelo menos um olho e não perder de vista o petróleo. 

Gaddafi, por seu lado, chamou o bombardeio EUA/anglo-franceses de “agressão de Cruzados” e a resistência de seu regime de “uma longa guerra”.  Assim conseguiu meter o Pentágono e a al-Qaeda no mesmo saco, num só movimento de mão. E nós, cá, que sempre pensamos que Pentágono e al-Qaeda fossem inimigos um do outro. O complexo de Gaddafi, Bab al-Azizia, em Trípoli, já foi bombardeado. Pelo menos a família dele não apareceu desenhada em cartas de baralho no Pentágono –, ainda. 

6. Nada de R2P para Israel. No final de 2008, quando ninguém estava olhando, Israel bombardeou Gaza, matou 1.300, a absoluta maioria dos mortos, civis; e destruiu, pelo menos 20 mil casas e prédios. Nenhuma ONU deu-se o trabalho de invocar qualquer “responsabilidade de proteger” , nem se falou de impor ‘no-fly zone’ sobre Gaza para proteger civis (50% dos quais eram crianças). Israel jamais deu qualquer bola a número gigante de resoluções do CSONU. Só para lembrar: George W Bush invadiu o Iraque em 2003, sem qualquer resolução do CSONU. 

5. Nada de R2P para o Iêmen. O presidente Ali Abdullah Saleh é “aliado valioso” na “guerra ao terror” – contra a Al-Qaeda na Península Árabe (AQAP); embora seja o Gaddafi do Iêmen, entra na privilegiada categoria da “alteração de regime”. O presidente Barack Obama disse que “condena fortemente” atiradores matarem civis no Iêmen e disse que os responsáveis “tem de ser processados”. “Os responsáveis” é o governo de Saleh. Problemão: é o mesmo pessoal a quem os EUA dão dinheiro e armas para combater “o terror”. 

4. A“oh, quão democrática!” Liga Árabe. A Liga Árabe aprovou a zona aérea de exclusão sobre a Líbia em decisão unânime. Mas, antes, Argélia e Síria opuseram-se fortemente à ideia. Damasco apresentou-se publicamente como contrária a mais uma intervenção do ocidente em assuntos dos árabes. 

Nada disso deteve as seis ditaduras reunidas no Conselho de Cooperação do Golfo [ing. Gulf Cooperation Council (GCC)] (Arábia Saudita, Bahrain, Kuwait, Omã, Qatar e Emirados Árabes Unidos), que fizeram pesado trabalho de lobby a favor da zona aérea de exclusão. Diplomatas dos EUA e europeus estão desesperados, desejando que a Liga Árabe – não a OTAN – façam alguma coisa, como, por exemplo, embarcar em algum jato diferente e pagar a maior parte das despesas, para que o mundo não veja que o ocidente, mais uma vez, está atacando país muçulmano. 

Washington exigiu esse envolvimento, claramente, do Qatar, dos Emirados Árabes Unidos e da Jordânia. O Qatar e os Emirados Árabes Unidos – que ajudaram a Arábia Saudita a invadir o Bahrain – estão sendo convocados para garantir a democracia com 24 Mirage 2000-9s e F-16s e o Qatar com seis Mirage 2000-5s. 

A Liga Árabe, primeiro, manifestou-se contra um “ataque” contra a Líbia – como se fosse possível implantar uma zona aérea de exclusão com vassouradas, não com bombardeio. Depois, o oportunista supremo, Amr Moussa, presidente da Liga Árabe, criticou a Operação Alvorada da Odisseia por causa do inevitável dano colateral. Depois, desdisse tudo. Ninguém se importa, desde que apareça o carimbo da Liga Árabe nas bombas da Alvorada da Odisseia, para fazer de conta que a operação foi decidida por árabes. 

3. Nada de R2P para o Bahrain. A invasão do Bahrain pela Casa de Saud, para ajudar os “primos” sunitas da dinastia al-Khalifa – que a al-Jazeera ocultou do mundo, depois de muito boa cobertura dos eventos – cheira a negócio entre a Casa de Saud e o emir do Qatar, o que é o mesmo que dizer que aí também houve dedo de Washington. A Casa de Saud, imensamente corrupta e covarde não faz coisa alguma, nada, sem a aprovação de Washington. Al-Jazeera clamou por “um diálogo” entre governo e oposição no Bahrain. No caso da Líbia, nenhum clamor para nenhum diálogo. 

As ditaduras reunidas no Conselho de Cooperação do Golfo são como anexos do Pentágono. Desde 2007, compraram nada menos que $70 bilhões em armas – e a conta não parou de crescer. A Líbia é parte da União Africana [ing. African Union (AU)]. Gaddafi pediu apoio da União Africana contra a oposição interna. É exatamente o mesmo que o Bahrain pedir apoio ao Conselho de Cooperação do Golfo. Mas com uma diferença: a União Africana não aprovou uma zona aérea de exclusão sobre a Líbia nem invadiu país vizinho, como fez a Arábia Saudita. 

Os al-Khalifas no Bahrain ficaram tão completamente em pânico ante os movimentos populares de protesto que tiveram de demolir, por a abaixo, fisicamente, o monumento da Pérola, que havia (e já não há) no centro da praça da Pérola em Manama. Já não há ali as seis colunas curvas, no topo das quais havia uma pérola gigante. É como destruir a história do Bahrain. Antes de converter-se em “ambiente amigável para negócios”, o Bahrain foi área de mergulhadores apanhadores de pérolas. Agora, só é Bahrain, “ambiente amigável para tiroteios e bombas”." 

2. Meu ditador não é mais aquele! Há bem pouco tempo, o primeiro-ministro da Itália Silvio "Bunga Bunga" Berlusconi andava, literalmente, beijando as mãos de Gaddafi; deixou que ele armasse sua tenda em Roma. Agora, largou-o no chão como batata quente. O mesmo fizeram os britânicos, que viviam, risonhos, vendendo munição ao coronel. 

Quanto ao neonapoleônico Nicolas Sarkozy da França, Gaddafi foi presente dos céus – permitindo a Sarko posar oficialmente como novo herói nacionalista árabe. A França proibiu a OTAN de intervir nos primeiros passos da operação Alvorada da Odisséia. Sem concorrência, os Mirages de Sarko ficaram com toda a glória. Carla Bruni – que chama o marido de Chou Chou – deve ter ficado impressionadíssima. Quem precisa de bunga-bunga, quando tem bang-bang de verdade? 

1. Uma Arábia Saudita Democrática. O santo graal do medievalismo e da repressão – a Casa de Saud – ter votado na Liga Árabe a favor da democracia na Líbia, ao mesmo tempo em que esmagava todos os movimentos progressistas no próprio reino (e invadia país vizinho), será infâmia eterna, e leva o prêmio Top de Hipocrisia da Grande Revolta Árabe de 2011. 

O bilionário pacote de “reformas” do rei Abdullah – de fato, não passa de suborno e propina – essencialmente só reforça dois pilares estratégicos da Casa de Saud: o establishment de segurança/repressão (60 mil empregos no ministério do Exterior), e os clérigos religiosos (mais dinheiro para a Comissão para Promoção da Virtude e Prevenção do Vício). Conseguiram reprimir com eficácia o “Dia de Fúria” no reino. Ao mesmo tempo, mostraram o quanto, de fato, estão com medo. 

O que poucos sabem é que a operação Alvorada da Odisseia é pessoal – e nada tem a ver com heroísmo grego. Só tem a ver com paixão árabe-beduína. Trata-se, isso sim, de rixa insanável que separa o rei Abdullah e Gaddafi desde 2002, em torno da guerra do Iraque – quando Gaddafi acusou Abdullah de vender o mundo árabe a Washington. 

Não se trata de operação alvorada alguma. Trata-se de Operação Casa de Saud quer a cabeça de Gaddafi. Com todos os lucros que a guerra trará para os envolvidos, claro; e com os manifestantes do leste da Líbia usados como figurantes. 

A Operação Alvorada da Odisseia – uma “guerra justa” – começou exatamente oito anos depois da guerra do Iraque. Em 2003, no início da Operação Liberdade Duradoura – que prossegue e já libertou do peso da vida mais de um milhão de iraquianos –, George W Bush disse “os EUA e a coalizão estão nos estágios iniciais de operações para desarmar o Iraque, para libertar aquele povo e defender o mundo contra perigo mais grave”. 

Esse sábado, no início da Operação Alvorada da Odisseia, Barack Obama disse: “Hoje, somos parte de uma ampla coalizão. Respondemos ao clarmor de um povo ameaçado. Agimos em nome dos interesses dos EUA e do mundo.” 

Talvez o melhor nome da coisa toda seja Operação Odisseia Duradoura. Mandem a conta para a Casa de Saud. 

Um comentário:

  1. Pepe,
    Quem sugeriu o nome de Alvorada da Odisséia para batizar os bombardeios contra a Líbia, deve ter cometido um ato falho.

    Odisseu/Ulisses gastou dez anos da sua vida para destruir Tróia, e mais dez anos para conseguir chegar em casa.

    É mais um atoleiro para os EUA, e algum tipo de "flash back" para os saudosos países ex-imperiais europeus. Seria cômico, senão fosse trágico.

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