sábado, 8 de janeiro de 2011

O modo imbecil de estar no mundo

“A depreciação do mundo dos homens aumenta em razão direta da valorização do mundo das coisas”.
(Karl Marx, em fevereiro de 1844)

Quem está vivo (em todos os sentidos) experimenta, a todo o momento, o grande impacto do fenômeno da transição cultural – sob os auspícios do moderno sistema produtor de mercadorias. Os motivos estão perfeitamente identificados: quebra de paradigmas em vários campos da ciência, profundas mudanças tecnológicas, prevalência numérica do trabalho morto sobre o trabalho vivo, produção flexível, hegemonia definitiva do capital financeiro, divinização do dinheiro, intensas mudanças na noção do tempo social, reificação das consciências, etc.

Henry Ford
Esse fenômeno da transição cultural não é – evidentemente – inédito na história do sistema. Apenas sucede a muitos outros. A última ocorrência maciça e consistente do fenômeno foi quando do início da revolução da chamada “produção em massa”, nos primeiros trinta anos do século 20, grosso modo. Motivada pelas novas técnicas de produção introduzidas por Frederick Taylor e Henry Ford (foto ao lado). O primeiro, com seus estudos sobre o tempo-movimento e a lógica do tempo métrico; o segundo, a esteira de montagem e seus operários não-especializados bem remunerados. Saem de cena: o improviso e o artesanato, a produção voltada para valores de uso, o individualismo econômico. Entram em palco: cronometragem e racionalidade no uso do tempo, produção em escala, ênfase no valor de troca da mercadoria, consumo de massa, operário não-especializado, economia programada, consolidação da hegemonia industrial. É o início daquilo que o sociólogo alemão Elmar Altvater chamou de “sistematização fordista”. Uma forma de vida e de relações sociais moldadas pela racionalidade taylorista-fordista. Uma esquina cultural que a promessa iluminista-liberal teve que dobrar sob o comando da unidade entre técnica e ciência, que é igual à tecnologia. A ciência como força produtiva, o tempo como instrumento contábil do valor e o trabalho abstrato como valor de troca em consagração definitiva na história.
Sinclair Lewis

A singular reunião desses fermentos simbólicos na base social produziu, nas esferas da superestrutura, uma espuma de tipos humanos diferentes e originais. Sinclair Lewis (foto ao lado), o grande escritor norte-americano que ganhou o Prêmio Nobel de Literatura em 1930, apanhou muito bem isso tudo; criou uma alegoria que narra como que o nascimento desse indivíduo fordista e sua errante aventura de proto-imbecil sociológico. Seu romance maior é “Babbitt”. Retrata a vida na década de 20, de um americano médio, George F. Babbitt, 46 anos, que “não fazia nada em especial: nem manteiga, nem sapatos, nem versos; mas era perito em vender casas a preços excessivos para a bolsa dos compradores”. Um picareta de imóveis. Socialmente, Babbitt é considerado “um booster – homem de energia e iniciativa, um esteio do progresso”, combinado com aquilo que o alemão desqualifica como “Landsknechtsnatur” (uma expressão idiomática que identifica o sujeito que adula os superiores e dá coice nos subordinados). A mulher (chamada de Sra. Babbitt) é um ser invisível na casa, uma serviçal do lar, embora seja auxiliada pelos novos apetrechos elétricos fabricados em série, e tem “tanto sexo quanto uma freira anêmica”. A crueldade, não raro, abriga-se inocentemente nas dobras da indiferença. Além de cruel, Babbitt é um tolo patrioteiro, temente a Deus, machista, pusilânime e despersonalizado. Uma fraude de si mesmo, uma imitação barata do homem de vanguarda, o industrial fordista. Agora, resta-lhe tão-somente a autenticidade de ser imbecil, “um homem sem qualidades definidas” (Musil).

É o muco pulmonar da América fordista. Uma geração adiante, essa baba serviu de berçário social para tipos como George W. Bush. Lendo Sinclair Lewis se entende melhor o fenômeno Bush - um filho temporão do obsoleto fordismo e da vetusta indústria de combustão de energia fóssil. Pois, essas secreções “babbittianas” de belicistas imbecis é que estão no poder, hoje, nos Estados Unidos. [Seguem no poder, apesar de Obama.]

Vladimir U. Lênin
Tem uma passagem do romance em que Babbitt lê no jornal sobre um boato da morte de Lênin (foto ao lado), que ocorreu, de fato, em janeiro de 1924) e comenta num misto de valentia e bravata: “Ainda bem! Não compreendo como nós não vamos lá e não expulsamos a pontapés esses miseráveis bolchevistas”. Lewis publicou “Babbitt” em 1922.

Mas Antonio Gramsci também escreveu sobre o fenômeno fordista. Foi no conhecido ensaio intitulado “Americanismo e Fordismo”, por volta de 1929. Gramsci, como Marx já o fizera com grande originalidade e arte no “Manifesto”, constata o avanço da racionalidade capitalista na etapa fordista. Contudo, falta-lhe a argúcia literária, a sintaxe poética cortante e a acuidade sociológica do mestre. Fica devendo. Lewis, com humor, graça, alguma arte, e outras lentes, consegue projetar o futuro de um sistema que dava os primeiros passos, através de um personagem síntese. Babbitt é, como Conrad diz do seu personagem Kurtz, um tipo que “toda a América contribuíra para a sua confecção”. Por isso ele é sintético. Passível de ser projetado e traduzido para além da curva do tempo. Onde Lewis é feliz, Gramsci sucumbe. Sua análise é petrificada, óbvia (depois de Marx), por demais objetiva e desgraciosa. Com o seguinte agravante: tanto o projeto nazi-fascista, quanto o projeto stalinista na União Soviética, tiveram como referência de progresso e desenvolvimento econômico modernos, o modelo taylorista-fordista. E ambos executaram esse desiderato programático nos seus países – União Soviética, Alemanha e Itália, ainda que sem a “febre consumista”.

Hannah Arendt
Não é à toa que a Hannah Arendt (foto ao lado) diz que o nazi-fascismo não trouxe nenhuma novidade, seja na política populista, na gestão econômica modernizante, na brutalidade policial-militar, no delírio como norma, ou o genocídio da forma “luta de raças”. Aquilo tudo já havia sido experimentado, em fragmentos, pelos regimes liberais. O nazi-fascismo apenas condensou as coisas em pouco mais de uma década de poder tirânico.

Gramsci, então, não teve a necessária clarividência de verificar esses indicativos que apontavam para fatos que a história acabou por confirmar. No caso da União Soviética, nem precisava de semelhante descortino, bastava acompanhar a política econômica “desenvolvimentista” e modernizante de Stálin. Um taylorismo-fordista com trabalho escravo e “emulação revolucionária”. Assim, até Lula!

Esse abreviadíssimo cotejamento do produto da narrativa de dois admiráveis críticos sociais, ainda que com instrumentais diversos, e com resultados qualitativamente desiguais (em favor da literatura de ficção, a meu ver), reforça a afirmação de Zygmunt Bauman, qual seja: os literatos são capazes de “reproduzir a não-determinação, a não-finalidade, a ambivalência obstinada e insidiosa da experiência humana e a ambigüidade de seu significado”.

E, hoje, quem estará devassando os imbecis do futuro da pós-modernidade e outros fenômenos de maior monta? Serão os Bauman, os Zizek, os Robert Kurz, os Fredrick Jameson, as Agnes Heller? Ou serão os Michel Houelebecq, os Don DeLillo, as Patrícia Highsmith, os Thomas Pynchon?

É preciso reconhecer, a narrativa da atualidade é muito diferente. O banco de categorias de que dispõe as ciências sociais está praticamente insolvente para dar conta das interrogações fragmentárias do momento e do futuro. As disciplinas sociais nascidas e geradas pela modernidade cada vez mais devem contar com a arte e a literatura para sobreviverem.

Theodor Adorno
Ou sucumbiremos passivamente diante da provocação (fomentadora) de Theodor Adorno (foto) de que o pensamento crítico está morto, e que a sociedade e a consciência estão “totalmente reificadas”? Estaria, então, o mundo sob a iminência de uma hegemonia irrecorrível de tolos e basbaques de todo o gênero, em especial os belicistas e endinheirados?

Sábado, 8 de janeiro de 2011
Extraído do blog Diário Gauche 
Enviado por Beatrice 

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