sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

A guerra do capital contra a WikiLeaks

Poderá o fenômeno da fuga de informação sustentar o assalto contínuo feito pelo setor empresarial para triunfar na primeira ciber-guerra de sempre?

Por Mark LeVine, Al Jazira
Artigo | 12 Janeiro, 2011 - 16:30
  
Quando o banqueiro suíço nos atira ao mar, sabe-se que se fez alguns inimigos muito poderosos.

Afamado desde há muito por ocultar dinheiro para toda o mundo desde os nazis e barões da droga aos espiões e ditadores, o ramo bancário do governo suíço decidiu que a WikiLeaks e Julian Assange eram realmente demasiado quentes de pegar mesmo para ele.

Cyberwar
E, assim, o PostFinance, que dirige os bancos do país, declarou no início de Dezembro que tinha “terminado a sua relação comercial com o fundador da WikiLeaks, Julian Paul Assange” depois de acusar o Sr. Assange de – falta de ar! – fornecer informação falsa sobre o seu lugar de residência.

Esta jogada seguiu-se a jogadas semelhantes das companhias de cartões de crédito MasterCard e Visa, bem como da PayPal e da Amazon.com, de deixarem de processar pagamentos à WikiLeaks e, no caso da Amazon.com, de deixarem de alojar os seus dados.

No momento em que escrevo isto, o Bank of America juntou-se à onda crescente de corporações que fazem da WikiLeaks alvo, recusando continuar a processar-lhe pagamentos por causa "da crença razoável de que a WikiLeaks pode estar comprometida com actividades que são, entre outras coisas, inconsistentes com a nossa política interna de processamento de pagamentos".
E pouco depois a própria Apple se juntou ao coro, pondo um ponto final a uma aplicação WikiLeaks dias depois apenas de ter posta à venda no seu Sítio Web iTunes. Todos os sectores da economia corporativa, parece, estão a lançar-se na perseguição à WikiLeaks.

Concentrando-se no “neocorporativismo”

Os agentes da CIA, os patrões da máfia e outros clientes bancários suíços desse tipo, os quais foram provavelmente bem menos francos nas suas representações pessoais do que Assange alegadamente é, ter-se-iam também preocupado com a lealdade e a discrição dos seus banqueiros suíços?

Provavelmente não. É que os criminosos do mundo, os autocratas e os espiões fazem bem parte do sistema econômico político global, mesmo se às vezes estão em lados opostos.

Mas a WikiLeaks opera também fora do sistema, procurando ao estilo “Matrix” usar a tecnologia – a Internet – para o “destruir”, metendo o nariz e trazendo ao escrutínio público, expondo as conspirações constantes dos poderosos contra o resto da sociedade.

Esta tarefa, argumenta Assange, é a maneira mais importante de ajudar a libertar milhões de vítimas do sistema muitas vezes cúmplices – ainda que não propriamente de boa vontade – e, ao fazê-lo, “mudar ou anular... o comportamento do governo e dos neocorporativistas”.

Como teórico político, Assange deixa um pouco a desejar. O “Neocorporativismo” descreve um sistema no qual capital e trabalho se enredam numa relação integrada mas, ao fim e ao cabo, dependente dum aparelho de estado poderoso e autónomo – uma atualização da relação triangular que permitiu o crescimento econômico e os ganhos sem precedentes para a classe trabalhadora no Ocidente nas décadas seguintes à Segunda Guerra Mundial.

Ideologicamente, esta espécie de relação de trabalho de proximidade entre governo, grandes empresas e trabalho organizado é a antítese do sistema neoliberal que a WikiLeaks procura combater.

Mas Assange tem razão em que há algo “neo”, se não exactamente novo, na maneira como o setor corporativo está se comportando hoje e na sua relação com o governo. Repousa em abraçar – ou melhor, voltar a abraçar – o capitalismo financeiro, o império militarista e o complexo industrial militar que o sustenta.

Alimentando-se ora de consumidores inconscientes no meio da América, ora de revoltosos suspeitos no Oriente Médio, estes são dois dos setores mais secretos da economia americana. Dependem de o público saber tão pouco quanto possível sobre os seus feitos mais esconsos para garantir a maior liberdade de ação, os maiores poder e lucros possíveis.

O poder do segredo

O abandono de Assange pelo sistema bancário suíço e pelos seus primos corporativos americanos não é portanto surpreendente. Poucos sectores econômicos usaram o segredo e a falta de clareza mais eficazmente do que a banca, os serviços financeiros e as empresas de cartões de crédito.

De fato, as suas práticas de negócios secretas são centrais para a sua capacidade constante de esgadanhar lucros enormes à custa dos americanos trabalhadores e de classe média através da monopolização dos sistemas comerciais, da cobrança de taxas de juros e comissões usurárias, e entregando-se a outras práticas que fariam corar até o mais insensível tubarão solitário.

Se a grande contratualização entre trabalhadores, capitalistas e governos permitiu que as duas primeiras gerações do pós-segunda-guerra-mundial saíssem do limbo diretamente para a classe média, este caminho foi irremediavelmente danificado nos anos 80, quando a direita neoliberal subiu ao poder pela primeira vez.

À medida que os Estados Unidos entraram na sua longa e dolorosa era de desindustrialização a política externa americana tornou-se mais agressivamente militarista; e assim juntar-se aos militares contra a GM ou a Ford tornou-se uma das poucas vias para garantir qualquer espécie do futuro económico estável (desde que se ficasse no exército).

Sem surpresa, os lucros do setor financeiro ultrapassaram os do setor industrial no início dos anos 90 e não caíram desde então. Mas esses lucros e o crescimento econômico que geraram confiaram desmesuradamente na dívida do governo e dos consumidores e num esvaziamento do sector industrial, o que no seu conjunto ajudou a tornar os EUA "o doente do globo", como disse um economista corporativo sénior.

Pelo seu lado, a GM, a Ford e a Chrysler focaram simultaneamente a maior parte das suas energias na produção de esponjas-de-combustíveis comparativamente lucrativas como os veículos todo-o-terreno, enquanto estabeleciam ramos de serviços financeiros que rapidamente ficaram responsáveis por uma parte substancial dos seus lucros (em alguns anos mais de 90 por cento dos lucros são conseguidos assim).

As suas práticas de empréstimo, vale a pena notar, incluem aquele tipo de empréstimos à habitação “mentirosos”, atribuídos com pouca preocupação quanto à capacidade dos tomadores de empréstimo de os pagar e que precipitaram a crise econômica global de 2007 até hoje.

Financeirização e história

Nenhuma dessas práticas teria resistido à luz do escrutínio público, e foi apenas a corporatização – em boa medida a financeirização – da política americana que permitiu que eles florescessem nos últimos trinta anos. Poucas empresas ameaçam tanto aquele segredo como a WikiLeaks e o seu foco tipo laser numa abertura, razão pela qual as suas ações são examinadas em Washington como “atingindo o próprio coração da economia global”.

A “financeirização” da economia representa a dominação crescente da economia no seu conjunto pelas indústrias financeiras, assumindo “o papel econômico, cultural e político dominante numa economia nacional”.

Crucialmente, este processo não é único nos Estados Unidos; também aconteceu a impérios anteriores, como os impérios dos Habsburgo, holandês e britânico, precisamente nas eras em que eles perderam a sua posição global dominante. Em todos os casos, o financeirismo e o militarismo andaram de mãos dadas, como apontou em primeiro lugar o famoso livro de 1902 do historiador britânico John Hobson “Imperialism: A Study”.

Nele Hobson argumentou que a monopolização do setor financeiro criou uma nova oligarquia que uniu os grandes bancos e as firmas industriais juntamente com os “promotores da guerra e especuladores” que encorajaram o imperialismo a garantir mercados para os produtos excedentes das corporações.

A elevação da América à dominação global veio depois do fim da era imperial e, portanto, não pôde conquistar descaradamente território para criar novos mercados. Mas no momento da sua elevação, os decisores políticos apelaram ao governo para que usasse elevadas despesas militares para garantir um crescimento econômico geral robusto.

Isto coincidiu com a expansão rápida do crédito facilmente obtível, criando dois “buracos negros gigantescos” (nas palavras dos economistas israelitas Shimshon Bichler e Jonathan Nitzan) cujo potencial de expansão foi limitado apenas pela disponibilidade dos cidadãos para apoiar a política que lhes deu aquelas oportunidades, apesar do dano a longo prazo ao bem-estar económico e político das suas sociedades.

Durante os trinta primeiros anos da era da Guerra Fria a propensão para o militarismo foi equilibrada por uma economia de fabricação robusta e pela relação tripartida governo-trabalho-empresas que a garantiu.

Isto começou a mudar nos anos 70 quando a guerra enormemente cara e lucrativa do Vietnã começou a abrandar.

Como Nitzan e Bichler descrevem no seu livro extremamente importante “The Global Political Economy of Israel”, começou neste período a “haver uma convergência crescente de interesses entre as principais corporações do petróleo e de armamento do mundo. O politização do petróleo, a par da comercialização das exportações de armas, ajudou a formar uma difícil coligação armamentodólar-petrodólar entre estas companhias”.

O mais crucial na análise de Nitzan e Bichler é que uma das formas mais importantes para as indústrias do armamento e do petróleo conseguirem ganhar um desproporcional nível de lucros (“diferencial” como eles o descrevem) foi através da erupção regular de conflitos energéticos no Médio Oriente, que asseguraram tanto preços altos relativos de petróleo como compra de armas.

McDonald's e McDonnell Douglas

À medida que este processo se desenvolveu, os autores explicam que “as linhas que separam o estado do capital, a política externa da estratégia corporativa e a conquista territorial do lucro diferencial, já não parecem muito sólidas”.

O colunista do New York Times Thomas Friedman, diz de forma mais colorida: “a mão oculta do mercado nunca funcionará sem o punho oculto. A McDonald's não pode florescer sem McDonnell Douglas – e o punho oculto que mantém o mundo seguro para as tecnologias de Silicon Valley florescerem chama-se Exército, Força Aérea, Marinha, e Corpo de Marines dos Estados Unidos”.

Isto é o “neocorporativismo” em que Assange e os seus camaradas da WikiLeaks se concentraram, embora hoje, mais de uma década depois de Friedman ter escrito as palavras acima mencionadas, o Master Card seja mais relevante do que a McDonald's.

O problema é que a WikiLeaks não pode, sozinha, virar o jogo neste conflito.

Assange bem poderia ser “um terrorista de alta tecnologia”, como o Vice-Presidente dos Estados Unidos Joseph Biden recentemente lhe chamou, dado o terror com que as suas ações atingiram o coração do sistema político americano.

Mas os EUA são, no fim de contas, um só num grupo de países e corporações poderosos cujos líderes partilham um compromisso fundamental em garantir para eles mesmos tanto lucro e poder quanto possível, por muito que os seus métodos e a política se diferenciem.

De fato, um olhar sóbrio sobre os dados relevantes revela que a quota dos lucros dos setores financeiros fora dos EUA foi quase sempre significativamente mais alta do que nos EUA, o que significa que o resto do mundo está há muito tempo mais “financeirizado” do que a economia dos Estados Unidos.

Como sempre, o capitalismo e poder nunca estiveram tão convenientemente centrados num país ou região como as pessoas imaginam.

Para ter realmente impacto, a WikiLeaks tem de inspirar uma geração inteira de pessoas que produzam fugas de informação noutros países e culturas, que estejam igualmente dispostos a arriscar a sua liberdade, tal como Assange e outra gente por trás da WikiLeaks. A cultura das fugas de informação começou a ganhar raízes, contudo só o tempo dirá se resiste às forças que agem contra o seu desenvolvimento.

Se tal não acontecer – se os seus inimigos corporativos e políticos conseguirem fazer de Assange e dos seus camaradas um exemplo que assuste os que poderiam ser inspirados por ele – o Capital ganhará provavelmente a primeira “ciber-guerra” do mundo, da mesma forma que ganhou a maior parte das guerras antes dela durante a história longa, sangrenta e inimaginavelmente lucrativa da modernidade.

Mark Levine é músico profissional e professor de História do Médio Oriente na Universidade da Califórnia, Irvine. É autor de meia dúzia de livros, incluindo “Heavy Metal Islam: Rock, Religion and the Struggle for the Soul of Islam” (no prelo, Random House/Verso, CD análogo a ser lançado por MI Records).
As visões expressas neste artigo são do próprio autor e não refletem necessariamente a política editorial da Al Jazira.
Tradução de Paula Sequeiros para o Esquerda.net

Extraído do Esquerda.net

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