sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

"EUA não entendem a Coreia do Norte"


8/1/2011, Yong KwonAsia Times Online
Yong Kwon é analista de assuntos internacionais. 
Vive em Washington.
Traduzido pelo Coletivo da Vila Vudu

O quê, de fato, sabemos sobre a Coreia do Norte [República Popular Democrática da Coreia, RPDC; ing. Democratic People's Republic of Korea, Coreia do Norte]? Se se consideram as declarações e as políticas que brotam em Washington, vê-se que os estrategistas norte-americanos nada fazem além de reagir, sem qualquer objetivo claro de longo prazo para a Península Coreana.

As aberturas diplomáticas e militares, sempre confusas e perplexas, na direção de Piongueangue e Pequim são sinais de que Washington está apenas começando a interessar-se mais seriamente pelo país com o qual vive em confronto há mais de 50 anos. Com ataques norte-coreanos cada vez mais agressivos contra a Coreia do Sul [República da Coreia, RC; ing. Republic of Korea, RK), o preocupante nível de ignorância quanto aos objetivos e à psique de Piongueangue abre espaço para erros letais de avaliação e julgamento.

Seja como for, pode-se ainda reunir informação sobre o que a Coreia do Norte não é; e podem-se eliminar as políticas mais mal pensadas, antes que sejam postas em prática. Atualmente, muitas das políticas pensadas nos EUA para a Coreia do Norte são concebidas a partir de pressupostos e analogias absoluta e fundamentalmente inconsistentes com o pouco que sabemos sobre as percepções e os objetivos do governo norte-coreano. Para resumir: Washington pode ter certeza de que a Coreia do Norte não é ‘estado-fantoche’ nem da China, nem do império japonês, nem da al-Qaeda.

Baseada no papel central que a China desempenhou na Guerra da Coreia, “confirmado” pela excepcional proximidade entre as lideranças chinesa e norte-coreana, Washington investiu fé profunda na ideia de que a China alavancaria Piongueangue. É pressuposto muito evidente na postura do presidente Barack Obama desde o naufrágio da corveta sul-coreana “Cheonan”, no início do ano. Apesar de evidente, é pressuposto profundamente errado, que gerará respostas cada vez mais negativas, de um país que preza muito profundamente sua soberania.

Esse ponto já foi afirmado e reafirmado inúmeras vezes no Projeto de Documentação Internacional da Coreia do Norte (norte-americano), PDICN-EUA [ing. North Korea International Documentation Project (NKIDP-US)]. Dia 8/9/2010, em conferência no Woodrow Wilson Center em Washington, o coordenador do PDICN-EUA James Person voltou a afirmar esse ponto, comentando a evolução política da Coreia do Norte e a interpretação coreana da própria história.

A atmosfera política em Piongueangue mudou drasticamente desde o final da Guerra da Coreia. A começar pelo expurgo das facções pró-chineses e soviéticas nos anos 1950s, Kim Il-sung consolidou o culto à personalidade e reduziu todas as influências estrangeiras que pudessem afetar Piongueangue. Essa linha estritamente ultranacionalista é mantida pelo atual governo e não dá qualquer espaço, sequer para os chineses, para qualquer tipo de ação política. A evidência de que os chineses não têm qualquer grande influência sobre Piongueangue apareceu bem clara, quando Pequim só foi avisada com antecedência de vinte minutos, de que Piongueangue testaria sua primeira arma nuclear. Não é coisa que se faça com irmão “ligado por laços de sangue”.

Telegramas recém publicados por WikiLeaks evidenciam a influência praticamente nenhuma dos chineses sobre Piongueangue; mas os estrategistas políticos norte-americanos já deveriam saber disso há muito tempo. Em artigo para a History News Network dia 6/12/2010, o professor Mitch Lerner escreveu que a Coreia do Norte, historicamente, usa a política exterior para “manipular o povo e perpetuar o regime”, sem qualquer preocupação com os objetivos da política exterior de Pequim. Esse absoluto distanciamento entre aliados que deveriam ser unidos como “lábios e dentes” foi observado repetidas vezes pelos aliados comunistas da Coreia do Norte, ao longo da Guerra Fria. [1]

O isolamento autoimposto é consequência do modo como Kim Il-sung interpretou os acontecimentos da virada do século 19. Viu a relação de convergência entre a Dinastia Joseon (1392-1910) e a China Ming/Qing como principal causa da fragilidade da Coreia e da eventual anexação pelo Japão. A política exterior subsequente da Coreia do Norte, de manter alguma distância até dos seus principais aliados como China e União Soviética, é consistente com essa visão de mundo.

Fronteira entre as Coreias
Na mesma linha, o grau de assistência militar e diplomática dos EUA à Coreia do Sul, deslegitima a soberania da Coreia do Sul aos olhos de Piongueangue. Por isso precisamente a Coreia do Norte considera a Coreia do Sul um fantoche dos EUA e prefere manter contato bilateral com Washington, acima de qualquer diálogo intercoreano. Pela mesma razão, a Coreia do Norte não deseja que a China “represente” seu governo, como os EUA representam o governo da Coreia do Sul. Ignorar esses desejos só ajuda a criar impasses cada vez mais complicados.

Assim sendo, a estratégia de Washington, de usar a China como mediadora para alcançar resoluções políticas com a Coreia do Norte, é precisamente o que Piongueangue detesta, e estratégia contra a qual sempre reagirá. Em resumo, a política dos EUA hoje, de tratar a Coreia do Norte como estado-cliente ou como estado-fantoche dos chineses é essencialmente truncada, porque não considera os sentimentos nacionalistas em Piongueangue.

Império japonês pré IIa. Guerra Mundial
Outra das lentes pelas quais Washington interpreta Piongueangue é o pensamento estratégico do império japonês durante a Guerra do Pacífico. Ideologicamente, a Coreia do Norte é uma espécie de broto do império japonês. B R Myers introduziu esse argumento e destacou a autoimagem dos dois estados autocráticos, de defesa ingênua, quase infantil da própria “raça” e de uma “pureza” sempre ameaçada por forças estrangeiras. [2]

Mais pertinente, Victor Cha serviu-se de uma analogia com o império japonês às vésperas do ataque a Pearl Harbor, articulando-a à ameaça de ataque sempre iminente, que a Coreia do Norte impõe ao mundo com seu arsenal nuclear. [3]

Segundo Cha, assim como os japoneses escolheram atacar a frota norte-americana no Pacífico, quando se convenceram de que adiar a guerra seria desvantajoso para o Japão, são semelhantes as razões pelas quais a Coreia do Norte pode decidir atacar agora, ou a qualquer momento no futuro próximo, porque sabe que os padrões decadentes de seu equipamento militar, das competências da população e do potencial de sua economia estão sendo rapidamente superados.

Historiadores como Adam Tooze e Niall Ferguson popularizaram a metodologia de avaliar risco de guerra mediante análise econômica de custos-benefícios. Tooze, Ferguson e Cha concordam que nenhum Estado busca ativamente cometer suicídio, atacando irracionalmente inimigo superior; mas pode acontecer de um Estado ser arrastado a agir desse modo, por racionalidade econômica.

É análise lógica e razoável de como estados militantes agem se forçados a atacar o inimigo – e com certeza é análise mais racional do que crer que os chineses teriam forte influência sobre a Coreia do Norte.

Por outro lado, há vários elementos que enfraquecem essa analogia, no que tenha a ver com a Coreia do Norte. As realizações econômicas e militares da Coreia do Norte perderam importância se comparadas às da Coreia do Sul, e, isso, em tal proporção que torna implausível qualquer iniciativa militar de larga escala.

A Radio Free Asia noticiou que o bombardeio da ilha Yeonpyeong provocou pânico na Coreia do Norte, porque se temeu que os EUA retaliassem militarmente. Segundo o mesmo noticiário, o pânico causou uma corrida em busca de moeda estrangeira, que forçou para cima o preço dos alimentos, iniciando crise semelhante à que foi criada pela revalorização da moeda em dezembro de 2009. [4]

Se os norte-coreanos temessem perder sua vantagem relativa, teriam iniciado invasão em larga escala nos anos 1960s ou 1970s, antes de a economia sul-coreana ter sido revitalizada no governo de Park Chung-hee. Com o custo cada vez maior da barganha coercitiva, os norte-coreanos não jogam hoje um jogo estratégico de soma zero, semelhante ao que o império japonês jogou em 1941, mas jogo de sobrevivência, pós-crise de fome, de soma negativa.

A Coreia do Norte conta hoje com dois ativos militares importantes: a capacidade de neutralizar Seul, com a artilharia avançada; e o arsenal nuclear. Ataque semelhante ao feito contra Pearl Harbor, pelos norte-coreanos, envolverá um ou ambos desses ativos. Contudo, há dúvidas sobre se a Coreia do Norte teria seja o know-how seja o desejo de realmente utilizar essas vantagens militares.

Há dúvidas sobre se os dois sensacionais testes nucleares foram de fato bem-sucedidos. Observadores russos e norte-americanos da crise nuclear da Coreia do Norte comentaram a possibilidade de os dois testes terem sido simplesmente “encenados” [orig. fizzled]. Além disso, Piongueangue está muito longe de produzir efetivamente mísseis balísticos intercontinentais que possam transportar o necessário equipamento de detonação nuclear.

Mísseis da Coreia do Norte
Fica-se então só com o ataque direto de artilharia contra Seul como ativo militar estrategicamente relevante a favor da Coreia do Norte. Mas esse ataque seria uso inapropriado da força, se se consideram os objetivos da política exterior de Piongueangue. A Coreia do Norte em vários sentidos desistiu do objetivo inicial de unificar a península nos anos 1970s, quando a liderança da Coreia do Norte reconheceu o atraso econômico relativo do país, se comparado à Coreia do Sul. [5]

Desde então, as políticas de Piongueangue têm andado na direção de barganhas coercitivas que acrescentem legitimação ou a muito necessária assistência econômica ao governo. Atacar Seul criaria novos riscos contra o frágil equilíbrio que há hoje entre a urgente necessidade de subsídios e a guerra.

Em termos de confrontos recentes, o naufrágio da corveta “Cheonan” e o bombardeio contra a ilha Yeonpyeong revelaram fraquezas fatais nas defesas sul-coreanas; mas disso não se conclui que tenha aumentado a força contra a Coreia do Sul, porque o frágil estado norte-coreano não  suportará qualquer golpe físico.

Wada Haruki
Wada Haruki, especialista respeitado em questões da Coreia do Norte, descreveu a Coreia do Norte como “estado guerrilheiro”, considerando não só as origens do regime, mas o estado de ser de todo o país. A forma mental do que se entende por “guerrilha” transparece em todas as atitudes do regime, tanto nas atitudes que visam ao exterior quanto nas relacionadas à autoimagem. Esse traço do regime parece reforçar a imagem popular da Coreia do Norte como “estado bandido” [orig. “rogue state”], que não daria qualquer atenção às normas internacionais.

Além disso, a Coreia do Norte tem história de ter-se servido do terrorismo para alcançar objetivos de política exterior. Dentre os episódios mais conhecidos, cita-se o atentado contra o presidente sul-coreano Chun Doo-hwan e membros do seu Gabinete, em 1987, quando o voo 858 da Korean Airlines foi bombardeado.

Hoje, com a situação em Piongueangue mais desesperadora do que nunca, não seria plausível que a Coreia do Norte utilizasse ataques terroristas para forçar concessões da Coreia do Sul ou dos EUA? Ou, mesmo, que se aliasse a organizações terroristas como al-Qaeda e trabalhasse na direção de proliferar a tecnologia nuclear? [6]. O naufrágio da corveta “Cheonan” e o bombardeio contra a ilha Yeonpyeong serão indicadores de nova onda de terrorismo norte-coreano?

Nicolai Ceaucescu
Nada menos plausível que isso, hoje. Verdade é que vários estados, durante a Guerra Fria, serviram-se do terrorismo de Estado, e de organizações terroristas, para alcançar objetivos de política externa. Por exemplo, Nicolae Ceausescu da Romênia contratou Carlos, O Chacal, para explodir a rádio Free Europe; e a Stasi da Alemanha Oriental usou a seu serviço a facção Exército Vermelho.

Mas essas ações só foram possíveis no contexto da Guerra Fria, quando o impasse nuclear entre soviéticos e norte-americanos ameaçava com a guerra atômica, no caso de algum estado-cliente de qualquer das superpotências ser militarmente agredido. O ambiente pós-Guerra Fria já não favorece a aproximação ostensiva entre estados e terroristas.

A vantagem relativa que pesa definitivamente a favor das organizações terroristas é a mobilidade. Caso exemplar, o governo Talibã foi destituído no Afeganistão, mas seus militantes, e a al-Qaeda, permanecem até hoje sem conhecer derrota. O regime de Kim Jong-il não se pode converter em al-Qaeda, porque seu estado centralizado opera sob critérios de controle total no território e não se arriscará a provocar qualquer incidente que leve a retaliação militar.

Assim sendo, apesar da capacidade para executar ataques terroristas contra a Coreia do Sul, Piongueangue nada fez, nessa direção, desde o colapso do bloco comunista.

Até o comportamento coercitivo da Coreia do Norte é calculado e legitima-se na esfera das normas do estado e serve-se da retórica da soberania do estado. O regime nega qualquer responsabilidade no naufrágio da corveta “Cheonan” e alega que as bombas contra a ilha de Yeonpyeong foram resposta a provocações pela Coreia do Sul.

Além disso, Piongueangue já não aborda a tensa situação na península exclusivamente com os recursos da retórica ideológica da unificação sob bandeira socialista, mas fala da legitimidade da Linha Limite Norte [ing. Northern Limit Line (NLL)] e das atividades militares da Coreia do Sul no Mar Amarelo. O regime entende claramente o que a comunidade internacional considera aceitável ou não aceitável.

A probabilidade de a Coreia do Norte partilhar materiais nucleares com a al-Qaeda is também é mínima, porque a al-Qaeda tem praticamente nada a oferecer ao empobrecido último bastião de neo-stalinismo. Apesar da retórica dos “cem ataques de retaliação, por cada ataque sofrido” contra os EUA, Piongueangue precisa do ocidente desenvolvido (inclusive dos EUA e da Coreia do Sul, vizinhos primeiro-mundistas mais próximos) para substituir a União Soviética como fonte de auxílio financeiro e material.

al Qaeda
Atores que sejam estados párias, como a al-Qaeda, não têm meios para apoiar financeiramente a economia da Coreia do Norte. Além disso, matar quatro milhões de civis norte-americanos, como a al-Qaeda deseja fazer, seria devastador para a estratégia geral da Coreia do Norte, da barganha coercitiva para obter os necessários subsídios, sobretudo se Piongueangue for denunciada como apoiadora de terrorismo nuclear.

Por outro lado, a proliferação de material e tecnologia nucleares para Irã e Síria é perigo real, mas são perigos gerados, em parte considerável, pelas estratégias construídas por governos anteriores dos EUA, de simplificar demasiadamente e reunir estados profundamente diferentes em categorias arbitrárias.

É importante lembrar que as exportações de armas são questão de vida ou morte para a Coreia do Norte. São, hoje, uma das únicas fontes de divisas com que o regime conta. Se os EUA incentivarem a Coreia do Norte na direção de encontrar outras fontes de divisas, estarão agindo com muito mais eficácia na direção de impedir que Piongueangue considere a via da proliferação de armas nucleares.

Isso tudo posto, o que se aprende dessas analogias tão problemáticas? Em primeiro lugar, que a Coreia do Norte é estado sui generis. Ainda que essas analogias esclareçam alguns aspectos importantes do regime, mesmo assim são por demais incompletas e inadequadas, para oferecer fundamento confiável a qualquer efetiva avaliação de riscos.

Niall Ferguson
Como Niall Ferguson recomenda, as políticas devem partir de informação histórica e devem considerar os riscos que cada país enfrenta em termos de segurança nacional. Os pressupostos que regem a política exterior dos EUA para a Coreia do Norte são, quase sempre, distorcidos, do ponto de vista histórico; e superestimam – ou interpretam erradamente – o que Piongueangue representaria como ameaça. O governo Obama poderia começar por reconhecer essa insuficiência, e passar a tratar a Coreia do Norte como ela de fato é: caso único no mundo; e problema, portanto, a ser enfrentado com soluções específicas.

NOTAS

2. Myers, BR. The Cleanest Race.

3. Cha, Victor D and Kang, David C. Nuclear North Korea: A Debate on Engagement Strategies. New York: Columbia University Press, 2003.


5. Schaefer, Bernd. "Overconfidence Shattered: North Korean Reunification Policy, 1971-1975." NKIDP Working Paper #2 (2010).

6. Essa preocupação aparece explicitamente no documentário "Countdown to Zero" dirigido por Lucy Walker in 2010.

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