domingo, 23 de janeiro de 2011

EUA & a “livre iniciativa”: criar guerras locais e privadas, para exportação

Eric Prince - fundador da Blackwater

Blackwater e as milícias na Somália
20/1/2011, Katharine Houreld e Associated Press, Salon
Traduzido pelo Coletivo da Vila Vudu

Ver também:

● Adam Ciralsky, Vanity Fair, 27/6/2010: Empresário, soldado e espião  (em português) 

● Jeremy Scahill, The Nation, 15/9/2010: “Blackwater & Co.: A negabilidade total” [Blackwater's Black Ops] (em português)

 Guardian, UK, 21/9/2010, “Cowboy Contractors: Armed and Dangerous
(em inglês)

 
Jeffrey Gettleman, Os piratas estão vencendo”, 14/10/2010. New York Review of Books, vol. 57, n. 15  (em português).

Erik Prince, cuja empresa, denominada então Blackwater Worldwide, tornou-se sinônimo de forças norte-americanas privadas de segurança operantes no Iraque e no Afeganistão, silenciosamente já assumiu novo papel: hoje, vende treinamento de guerra a soldados locais, nas áreas sem lei da Somália.

Prince esta envolvido num programa de multimilhões de dólares financiado por países árabes, entre os quais os Emirados Árabes Unidos, para treinar cerca de 2 mil recrutas somalianos para combater os piratas que aterrorizam a costa africana, segundo fonte que conhece bem o projeto e relatório de inteligência que chegou a jornalistas da Associated Press. 

O nome de Prince apareceu no conflito da Somália, no contexto do debate sobre se se deveriam usar empresas privadas de segurança em alguns dos pontos mais perigosos do mundo. Blackwater – cuja empresa mudou de nome para Xe Services – tornou-se símbolo em Washington de empresários envolvidos em incidentes de guerra, dentre os quais o mais conhecido foi a acusação de assassinato de 14 civis, em 2007, em Badgá, feita contra empregados de Prince.

Apesar de os piratas somalianos atacarem navios de várias bandeiras, a maioria dos Estados reluta em mandar soldados por terra para atacar os territórios onde vivem os piratas, numa nação que vive em anarquia, praticamente sem lei, há mais de duas décadas e onde os comandos de paz da ONU não avançam além de alguns quarteirões em torno da capital. As forças que agora estão sendo treinadas visam a preencher esse vácuo. Um dos funcionários disse que já há batalhões prontos para partir à caça de um senhor-da-guerra local, ligado a guerrilheiros islâmicos.

Em resposta a um pedido de entrevista, um porta-voz de Prince respondeu, por e-mail, que o fundador da Blackwater está interessado em “ajudar a Somália a derrotar o fantasma da pirataria” e tem trabalhado como conselheiro em várias operações antipirataria. O porta-voz Mark Corallo disse que Prince não tem “participação financeira” no projeto e recusou-se a responder qualquer pergunta sobre o envolvimento de Prince.

O trabalho de Prince reaviva a discussão sobre o uso de empresas privadas como fornecedoras de forças de combate em situação de guerra. Os críticos dizem que esse trabalho pode minar os esforços da comunidade internacional para treinar e financiar o reequipamento de exércitos somalianos para combater guerrilheiros islâmicos ligados à al-Qaeda.

A União Europeia está treinando cerca de 2 mil soldados somalianos, com apoio de instrutores do exército dos EUA, e há em treinamento uma força da União Africana de 8 mil agentes de pacificação, de Uganda e Burundi.

Com a introdução, nesse quadro, de exércitos privados, “vê-se a privatização da guerra, em que as empresas de segurança operam protegidas por ‘sigilo empresarial’, sem qualquer obrigação de prestar contas à comunidade internacional” – disse E.J. Hogendoorn, analista que trabalha em Nairobi para o International Crisis Group. “A quem essas empresas prestam contas e o que as impedirá de trabalhar para o ‘outro lado’ (no caso, para os próprios piratas), se isso lhes parecer comercialmente mais interessante?"

Embora as preocupações de Hogendoorn sejam ouvidas também entre funcionários do governo dos EUA, o diretor de outra dessas empresas de segurança privada reforça os argumentos a favor do envolvimento crescente de Prince.

“Há 34 países cujas marinhas trabalham para tentar deter os piratas. E já se sabe que só poderão ser detidos em terra” – disse John Burnett, diretor da Empresa Maritime Underwater Security Consultants [Consultores de Segurança Submarina]. “Com a experiência e a grande reputação que Prince acumulou, acho bem provável que tenha sucesso.” 

Prince, que vive agora nos Emirados Árabes Unidos, já não é sócio da Blackwater. Defendeu empenhadamente a empresa. Disse à revista Vanity Fair [endereço acima] que “quando pareceu conveniente, alguém me empurrou para ser atropelado pelo ônibus”. 

Mês passado, a Associated Press noticiou que o projeto para a Somália incluía treinamento de 1.000 soldados de uma força antipirataria no norte da Somália, na região semiautônoma de Puntland, e de guardas presidenciais em Mogadishu, a capital destruída, no litoral. A matéria falava de uma empresa privada de segurança, Saracen International, que estaria envolvida, além de Pierre Prosper, ex-embaixador dos EUA; Michael Shanklin, ex-diretor da CIA; e um Estado muçulmano não identificado, como financiador. Prosper e Shanklin confirmaram que trabalharam como conselheiros do governo somaliano.

Depois disso, a Associated Press soube, através de funcionários e documentos, que Prince está envolvido e que há planos para treinar outra força de 1.000 agentes antipirataria em Mogadishu, exércitos oficiais mal treinados e sem armas enfrentam guerrilheiros.

Lafras Luitingh, chefe de operações da empresa Saracen International registrada em Beirute, Líbano, disse que a empresa tentou manter o projeto em segredo, para preservar o efeito surpresa contra os piratas. Disse que sua empresa assinou um contrato com o governo somaliano em março. Não disse se Prince está envolvido, mas disse que ele não é sócio da empresa.

Depois da assinatura desse contrato, assumiu na Somália um novo governo, que já nomeou uma comissão para investigar os negócios da empresa Saracen e outras, disse o ministro de Informação da Somália Abdulkareem Jama. Disse que não tem notícia de qualquer envolvimento de Prince. Em operação separada, a ONU também está investigando se esses contratos com o ex-governo somaliano implicaria desobediência ao embargo imposto contra venda de armas para as facções somalianas.

O dinheiro desloca-se por uma rede de empresas transnacionais, cujos endereços nem sempre puderam sem confirmados, na investigação que a AP fez para verificar se os informes que recebera seriam fidedignos.

Há pelo menos três empresas Saracens – uma registrada no Líbano e duas dirigidas por um sócio de Luitingh e com base em Uganda, onde funcionários do governo disseram à AP que todos os documentos de registro das empresas haviam sumido. Em Beirute, repórter da AP que investigava os dados do mesmo relatório não conseguiu localizar o endereço da empresa de Luitingh que consta do contrato assinado na Somália. Autoridades libanesas desconhecem o endereço da sede de Saracen no Líbano, e sugerem que talvez tenha sede nos Emirados Árabes Unidos.

A empresa Afloat Leasing, que possui dois barcos com os quais a Saracen já trabalhou, disse que a empresa é registrada na Libéria, mas essa informação não foi confirmada em investigação da Associated Press.

A missão da força que está sendo treinada pode ser maior do que enfrentar os piratas.

Um ex-funcionário do governo dos EUA, que pediu que seu nome não fosse divulgado, porque não tem autorização para falar a jornalistas, disse que, além de atacar os piratas, a nova força em Puntland terá a tarefa de caçar um senhor-da-guerra local que se suspeita esteja fornecendo armas a o grupo al-Shabab, o mais temido dos vários grupos guerrilheiros somalianos. Luitingh disse que jamais ouviu falar desse plano.

Luitingh é membro fundador de Executive Outcomes, grupo de mercenários da África do Sul, cujo nome apareceu associado, nos anos 1990s, aos conflitos em Serra Leoa, Angola e até na Papua Nova Guiné.

Disse que a empresa Saracen cuidará para que não se recrutem crianças-soldados, pagará regularmente aos alistados, e prestará contas legalmente ao governo da Somália. Um grupo de 150 recrutas concluiu o treinamento em novembro em Puntland, e outro está na etapa final. Em Mogadishu, os treinamentos ainda não começaram.

Saracen recusou-se a comentar sobre suas fontes de financiamento. Um informante, que conhece o projeto e insiste que seu nome não seja divulgado, por ser proibido de falar à imprensa, disse à Associated Press que Prince supervisiona o treinamento antipirataria.

O relatório de inteligência, no qual os Emirados Árabes Unidos são identificados como financiadores e Prince como participante, foi entregue à AP sob a condição de que nem o autor nem a agência fossem identificados, porque é documento classificado como Confidencial. Vários oficiais de segurança ocidentais disseram, em entrevista, que os dados daquele relatório não são confiáveis.

Os piratas usam largas extensões do litoral da Somália como portos-base, dos quais partem para abordar navios mercantes no Golfo de Aden e no Oceano Índico. O grupo Al-Shabab controla a maior parte do sul e da região central da Somália e grande parte da capital. Os governos ocidentais temem que a Somália venha a ser usada como base para ataques ao ocidente.

Alguns funcionários dos EUA temem que os projetos da empresa Saracen divulguem a ideia de que mais dinheiro e mais armas – em vez de melhores governos e treinamento transparente de defesa nacional – seriam competentes para derrotar a guerrilha. O exército da Somália foi enfraquecido por muitas deserções, porque uma longa sequência de governos corruptos instituiu a miséria entre os soldados, que não recebiam nem soldos nem qualquer apoio.

Os somalianos treinados pela União Europeia receberão 100 dólares por mês. Funcionário do governo dos EUA disse que a empresa Saracen oferece salários de 300 dólares durante o treinamento e de 500 dólares um mês depois de o treinamento concluído, quando o recruta entra em serviço ativo.

“É certo que o exército oficial perderá os quadros mais bem treinados, que acorrerão na direção das milícias mercenárias” – disse aquele funcionário, o que debilitará cada vez mais o exército e fortelecerá as milícias. 

Muitos países, inclusive Estados do Golfo, ofereceram assistência militar à Somália. Muitos Estados árabes, que deram dinheiro, logo descobriram que não havia meios para acompanhar o uso do dinheiro – disse Hogendoorn, analista na Somalia. Por isso, provavelmente, há governantes árabes dispostos a apoiar a empresa Saracen – concluiu. 

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